Anuário da Justiça

Judiciário cresce diante da calamidade e de ameaças ao Estado de Direito

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12 de agosto de 2020, 7h30

ConJur
O presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro José Antonio Dias Toffoli, resumiu os seis meses em que a pandemia do novo coronavírus mudou a vida da humanidade em uma frase: “O primeiro semestre de 2020 não foi fácil”. Na ocasião, ele fazia o balanço semestral de atividades do tribunal que preside e se referia apenas às dificuldades que a corte e o Judiciário brasileiro enfrentaram com a crise sanitária mundial.

Poderia acrescentar que ao lado dos problemas causados pelo vírus o Judiciário teve de enfrentar uma feroz campanha de difamação e descrédito desferida por grupos antidemocráticos integrados até mesmo por autoridades federais. E além de tudo isso, ainda havia, claro, a interminável crise política da nação dividida.

A corte soube enfrentar as duas ou três frentes de batalha e, nas palavras do seu presidente, saiu-se vitoriosa. “Isso prova que a democracia brasileira e o Supremo Tribunal Federal emergem fortalecidos”, concluiu, em seu balanço, referindo-se a pesquisa do Datafolha que constatou que 75% dos brasileiros apoiam a democracia.

No dia 17 de março de 2020, um homem de 62 anos internado num hospital em São Paulo tornou-se a primeira vítima da Covid-19, que nos meses seguintes haveria de matar mais de 100 mil brasileiros. Contra o inimigo invisível, a principal arma adotada foi o isolamento social, que reduziu ao essencial a atividade econômica e limitou ao indispensável a mobilidade e o contato interpessoal. O Judiciário como um todo reagiu prontamente à emergência adequando sua atividade às exigências comportamentais e às demandas judiciais geradas na pandemia.

“Exercer a jurisdição constitucional em um país complexo como o Brasil – com seus 210 milhões de habitantes, 27 estados, 5.570 municípios e 90 tribunais – não é tarefa fácil. Essa missão tornou-se ainda mais árdua em meio a uma pandemia que fragiliza todos nós e que tem ceifado inúmeras vidas”, afirmou Dias Toffoli.

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Em âmbito nacional, a chamada Lei da Quarentena (Lei 13.979/2020), de 6 de fevereiro, estabeleceu as medidas emergenciais de enfrentamento da pandemia. Além dela, cerca de 400 normas, entre leis, medidas provisórias, decretos, portarias e resoluções, a maioria de iniciativa do Executivo Federal, haveriam de regulamentar as questões relacionadas à pandemia.

Seguindo as recomendações das autoridades de saúde mais responsáveis do Brasil e do mundo, o Judiciário brasileiro passou a operar em modo virtual. No dia 19 de março, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução 313/2020 que estabeleceu um regime de plantão extraordinário em toda a Justiça, com previsão de suspensão de prazos e disciplinando expediente, audiências e trabalho remoto.

Ainda na competência do CNJ, foi editada a Recomendação 62, dispondo sobre os cuidados a serem tomados no âmbito do sistema prisional para proteger os presos contra o vírus. Em abril, a Lei 13.994/20 criou a possibilidade de conciliação não presencial nos Juizados Cíveis.

O STF, que há 13 anos já faz uso do Plenário Virtual, aderiu prontamente aos julgamentos do Plenário e das turmas por videoconferência. No Plenário Virtual, o relator coloca o seu voto na página eletrônica do colegiado e durante a semana os outros julgadores, cada um a seu tempo, postam seus respectivos votos. Inicialmente era restrito para o julgamento de determinadas classes e tipos de processo. Com a epidemia, a Resolução 669/2020 autorizou o julgamento de qualquer processo, a critério do relator. No primeiro semestre de 2020, 97% dos julgamentos aconteceram em ambiente virtual.

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A grande novidade, no entanto, foi a adesão aos julgamentos por videoconferência, este sim, reproduzindo o plenário analógico, com cada ministro em sua casa, conectados virtualmente na mesma sessão. “Os julgamentos virtuais são uma realidade cada vez mais presente nas grandes democracias do mundo, sendo propulsores de uma prestação jurisdicional mais célere, eficiente, isonômica, transparente e acessível a todos”, afirmou Toffoli indicando que esta é uma tendência que veio para ficar.

No Superior Tribunal de Justiça, até a chegada da epidemia, as sessões virtuais eram usadas apenas pelos colegiados que julgam matéria de Direito Público e Direito Privado, além da Corte Especial. Depois do coronavírus, os colegiados que decidem matéria de Direito Criminal também passaram a ter a possibilidade. O tribunal, que aderiu plenamente aos julgamentos por videoconferência, também estuda ampliar o uso das sessões virtuais, permitindo as mesmas possibilidades que o STF já oferece.

O Tribunal Superior do Trabalho regulamentou as atividades administrativas e judiciárias, contemplando as formas de prestação dos serviços remotas e presenciais. Também investiu em tecnologia para manter os julgamentos e o trabalho à distância. Definiu um cronograma para a retomada das audiências telepresenciais e recomendou que centros de conciliação continuem as atividades e passem a admitir a mediação pré-processual em conflitos individuais.

Na Justiça Eleitoral, os ministros também fazem as sessões de julgamento à distância, com presença no Plenário físico apenas do presidente. A posse do ministro Luís Roberto Barroso como presidente do tribunal, em maio de 2020, ocorreu por via virtual com a participação dos presidentes da República, Jair Bolsonaro, do Senado, David Alcolumbre, e da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, cada um em seu espaço próprio.

Boa parte da capacidade produtiva adquirida pelos tribunais foi aplicada para atender a demanda gerada pela própria epidemia. Só o STF havia julgado, até julho de 2020, 3.793 ações referentes à pandemia. Como afirmou o presidente Dias Toffoli, “em meio à pandemia, seguimos sendo a Suprema Corte mais produtiva do mundo”.

Os números atestam: das 58 sessões plenárias, 38 foram presenciais ou por videoconferência, e 20 foram virtuais. Dos 2.269 processos julgados, 2.189 (96%) tiveram deliberação em sessão virtual. Dos 6.312 processos julgados pelas turmas, 5.750 (91%) também foram julgadas em sessões virtuais. O Superior Tribunal de Justiça registrou 213.755 decisões proferidas desde que adotou, em 16 de março, o regime de trabalho remoto. No período, o tribunal realizou 80 sessões virtuais.

Marcos Brandão/Senado Federal
A crise é grave: O Judiciário se engajou junto aos outros poderes no enfrentamento da epidemia Marcos Brandão/Senado Federal

Ganhos de produtividade foram registrados nos outros tribunais superiores, em tribunais regionais federais e em tribunais de Justiça, como do Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Minas Gerais e Goiás. Para o presidente do TJ-RJ, Claudio de Mello Tavares, “a pandemia do coronavírus definiu uma nova normalidade para os serviços judiciais: a realidade digital”.

Quando tudo passar, o que se fez e se aprendeu sob o terror do novo coronavírus ficará como um legado do bem. É o que espera o presidente do STJ, João Otávio de Noronha. “Estamos agora em um novo momento e esse novo momento importa em um aprendizado para o futuro, e o futuro é tecnológico.”

Um outro vírus, este mais traiçoeiro do ponto de vista institucional, atacou a integridade física e moral do Judiciário brasileiro, mirando de forma especial no seu órgão de cúpula, o Supremo Tribunal Federal. Deflagrada e fomentada nas redes sociais e materializada em manifestações de rua por um grupo de militantes autointitulado conservador de direita, entre os quais autoridades do Executivo e do Legislativo, a campanha de difamação e ameaças contra a corte suprema, seus membros e familiares, tinha como alvo, na verdade, o próprio Estado Democrático de Direito.

A primeira reação contra a campanha partiu da Presidência do STF. No dia 14 de março de 2019, o presidente Dias Toffoli decretou a abertura de inquérito (Inquérito 4.781) para apurar a existência de crime na divulgação de notícias fraudulentas e declarações difamatórias contra a corte e os ministros.

O inquérito foi aberto com base no artigo 43 do Regimento Interno do Supremo, que diz: “Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do tribunal, o presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição”. No mesmo ato, o ministro Alexandre de Moraes foi escolhido como relator do inquérito.

A iniciativa do presidente do STF gerou forte reação nos meios jurídicos e políticos. Procuradora-Geral da República à época, Raquel Dodge defendeu a nulidade do inquérito, por entender que violava os princípios da separação de Poderes e do juiz natural.

Enquanto isso, o tom da campanha subiu, inclusive com a adesão ostensiva do presidente da República em manifestações claramente hostis ao Supremo. Inquérito aberto pela PGR investiga tais manifestações. Um terceiro apura acusação de Sergio Moro, ao se demitir do Ministério da Justiça e Segurança Pública, de que o presidente da República tentava interferir nas atividades da Polícia Federal.

Essa realidade conflitiva mudou a percepção da sociedade a respeito do mérito do inquérito das fake news, como ele passou a ser reconhecido. O partido Rede Sustentabilidade, que entrara com ação arguindo a inconstitucionalidade do inquérito logo após sua instauração, diante do novo quadro, pediu o arquivamento do processo. O pedido foi negado, a ação foi julgada, e os ministros, com exceção de Marco Aurélio, fecharam questão em torno da validade do inquérito.

Os ministros reafirmaram a responsabilidade institucional do Supremo, defenderam a impossibilidade de ficar inerte diante dos ataques, que enfaticamente classificaram como criminosos. Toffoli afirmou tratar-se “de prerrogativa e de reação institucional necessária em razão da escalada das agressões cometidas contra o tribunal (…) das quais a corte não pode renunciar, em especial quando se verifica a inércia ou complacência daqueles que deveriam adotar medidas para evitar o aumento do número e da intensidade de tais ataques”.

Celso de Mello afirmou em seu voto: “As decisões do Poder Judiciário deverão ser cumpridas e fielmente executadas, qualquer que seja o seu destinatário, especialmente quando proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, que é, por expressa delegação da Assembleia Nacional Constituinte, o guardião supremo da intangibilidade e da exegese da Constituição da República, dispondo, por isso mesmo, o monopólio da última palavra”, escreveu o decano da corte em seu voto.

SCO/STF
Mesa redonda: Ministros do Supremo viveram um ano difícil com acenos a divisões e apelos à moderação SCO/STF

Citando o ministro Luís Roberto Barroso, completou: “Cabe aos três Poderes interpretar a Constituição e pautar sua atuação com base nela. Mas, em caso de divergência, a palavra final é do Judiciário”. Em junho de 2020, pesquisa do Datafolha mostrou que 81% dos brasileiros acreditavam que a campanha de fake news contra o Supremo era uma ameaça à democracia.

E foi um crime cibernético que provocou outro abalo nas estruturas do Judiciário brasileiro: em junho de 2019, o site jornalístico The Intercept Brasil começou a publicar uma série de reportagens que desnudavam as relações incestuosas entre procuradores da República, juízes, delegados e jornalistas que operavam em conluio a chamada operação “lava jato”, a investigação de um gigantesco esquema de corrupção montado para desviar dinheiro público da Petrobras em benefício de políticos, funcionários públicos e empresários.

As informações divulgadas foram obtidas ilegalmente por hackers que interceptaram mensagens do Telegram trocadas entre o ex-juiz federal Sergio Moro, o procurador da República Deltan Dallagnol e demais operadores lavajatistas. As gravações mostraram que juiz e acusação atuavam em cumplicidade com vistas a um objetivo definido que era inviabilizar a candidatura do ex-presidente Lula.

Já em 2020, com Moro fora da 13ª Vara Criminal Federal de Curitiba e também fora do Ministério da Justiça do governo Bolsonaro, que o consórcio ajudou a eleger, e com um novo procurador-geral da República, a “lava jato” começou a desmoronar.

Augusto Aras, o novo PGR, tomou a iniciativa de enquadrar os recalcitrantes aos padrões de procedimento da entidade que dirige. “A lava jato, com êxitos obtidos e reconhecidos pela sociedade, não é um órgão autônomo e distinto do Ministério Público Federal. Para ser órgão legalmente atuante, seria preciso integrar a estrutura e organização institucional estabelecidas na Lei Complementar 75 de 1993.

Fora disso, a atuação passa para a ilegalidade, porque clandestina, torna-se perigoso instrumento de aparelhamento, com riscos ao dever de impessoalidade, e, assim, alheia aos controles e fiscalizações inerentes ao Estado de Direito e à República”, afirmou em nota o procurador-geral, colocando o que parece ser um epitáfio para o glorioso time de justiceiros interessados.

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