Opinião

Ministério Público de garantias e a separação entre investigação e acusação

Autor

5 de agosto de 2023, 6h04

Em junho de 2023, o Plenário do Supremo Tribunal Federal iniciou o julgamento do instituto do juiz de garantias (ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305), introduzido no CPP pela Lei 13.964/2019. Provavelmente agora em agosto, no retorno do recesso forense, toda atenção da sociedade estará voltada para a constitucionalidade ou não desse instrumento, bem como seus reflexos. Mas e a atividade do Ministério Público? Deveria dividir a função investigatória da acusatória? Existe Ministério Público das garantias?

Em tese de doutorado defendida em dezembro de 2022, no Ceub-ITE, defendi que sim, pois a Lei 13.964, de 24 de dezembro de 2019, também chamada como "Lei Anticrime" ou "pacote anticrime", introduziu na legislação o instituto do juiz de garantias, permanecendo silente quanto à divisão de atribuições do Ministério Público.

Embora ainda suspenso, o instituto do juiz das garantias, em decorrência do advento da separação entre o juiz de garantias e o juiz do processo judicial, torna-se imperioso revisar na seara criminal a atividade do parquet criminal, especificamente no sentido de aproximar sua configuração da agora separação entre as funções de investigar e de acusar, ora presente no ordenamento jurídico brasileiro.

Seria possível garantir, desse modo, um aprimoramento no respeito à dignidade da pessoa humana e isonomia de tratamento dispensada a todos os acusados, bem como de proteger as garantias processuais dos acusados e, consequentemente, consagrar a dignidade da pessoa humana, essência de uma sociedade organizada.

A perspectiva ora tratada se aproxima grandemente da ideia primordial de um Sistema do Juizado de Instrução, presente nos projetos legislativos inicialmente pensados para que se concebesse um Código de Processo Penal (CPP) brasileiro — instituído pelo Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Brasil, 1941b). No mesmo sentido, avizinha-se de variadas Sistemáticas Processuais Penais passíveis de serem vistas no Direito Comparado, adotadas em ordenamentos jurídicos estrangeiros, como da Alemanha, da França, da Itália, de Portugal e do México — abordados mais adiante neste trabalho.

Nesse sentido, em qualquer Estado democrático de Direito — e não seria diferente no que vige no Brasil e no qual se constitui nossa República Federativa, consoante o estatuído na cabeça do artigo que abre o texto da Constituição, primeira parte (CF/1988, artigo 1º, caput, ab initio)[1] (BRASIL, 1988) —, a justiça penal deve, a partir de uma política criminal dirigida à máxima efetividade, assegurar as garantias processuais tanto do investigado quanto do acusado.

No contexto do Estado democrático de Direito prevalecem os direitos fundamentais, tanto como limites à intervenção estatal nas vidas das pessoas, quanto deveres de agir impostos ao Estado. Na República do Brasil constitui-se a dignidade da pessoa humana como um de seus fundamentos e, mais do que isso, com vértice interpretativo do texto constitucional.

Ocorre que dentre os vários direitos fundamentais assegurados de maneira textual ou implícita pela Constituição de 1988, e pelos tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário, a dignidade da pessoa humana depende, também, de garantias diretamente ligadas a processo.

Estas, por sua vez, encontram-se contidas na cláusula aberta que constitui a noção ampla de devido processo legal que depende, dentre outros, da imparcialidade dos agentes do sistema de justiça criminal, sob pena de ocorrerem intervenções indevidas na vida das pessoas, especialmente naquilo que concerne à sua liberdade e ao seu patrimônio.

Nesse mesmo sentido é que o juiz de garantias, figura recente no ordenamento jurídico nacional, representa uma evolução naquilo que tange ao asseguramento do devido processo legal, notadamente quanto à imparcialidade dos julgadores, cujas funções de condução da investigação preliminar e do processo judicial posterior à denúncia restam separadas.

Diante da instituição da figura do juiz de garantias no ordenamento jurídico brasileiro, a Súmula 234 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que determina a possibilidade de um mesmo e único membro do Ministério Público investigar o réu e, sucessivamente, no mesmo caso concreto, poder vir, in casu, a denunciá-lo, mostrar-se-ia incompatível com o instituto do juiz de garantias, obrigando tal súmula a ser reinterpretada, à luz da sistemática processual penal instaurada pelo disposto na Lei nº 13.964/2019.

Desse mesmo modo, haveria a necessidade de, sob a lente da "Lei Anticrime", proceder-se à reinterpretação jurídica de outros precedentes, caso do Tema nº 184 de Repercussão Geral do Supremo Tribunal Federal, cujo conteúdo, em face da aplicação da Lei do aludido "Pacote Anticrime", apresentar-se-ia igualmente superado.

No tema que se acaba de mencionar, entretanto, não se faz qualquer distinção entre o promotor que investiga e aquele que promove a acusação penal correspondente aos fatos típicos eventualmente apurados — apartação que deveria passar a ser feita entre ambos, com a entrada em vigor, em 23 de janeiro de 2020, da Lei nº 13.964/2019.

No mesmo sentido, sob igual lumiar legislativo o referido entendimento deveria ser reinterpretado, porque também se afiguraria, agora, superado, o artigo (artigo) 2º, inciso (inciso) I, do texto compilado da Resolução nº 181, de 7 de agosto de 2017, proveniente do Conselho Nacional do Ministério Público, que trata da instauração e tramitação do procedimento investigatório criminal a cargo do Parquet.

Tal artigo 2º, já em seu inciso inaugural, permite que o membro do Ministério Público que proceda a investigação de um caso concreto possa ser aquele mesmo que vá, igualmente, propor a ação penal no mesmo caso [2]. Dessarte, aludida normativa também já estaria, do mesmo modo, afetada pela novel legislação processual penal e deveria, por conseguinte, ser condenada, eis que, in casu, tornada obsoleta.

Em que pese possa o Parquet presidir a investigação criminal e, ato contínuo, propor a ação penal no mesmo caso concreto — consoante entendimento consolidado na doutrina e na jurisprudência nacionais —, está a hipótese da necessária separação entre as funções ministeriais de investigar e de acusar, perpetrada pela Lei nº 13.964/2019.

Em decorrência dessa situação é que tal separação funcional encontraria guarida em sistemas processuais penais do Direito Comparado e, ainda, em julgados nacionais obrigaria a que se procedesse também a tal separação no Direito Processual Penal brasileiro.

Ademais, em face princípio da máxima efetividade dos Direitos Fundamentais, há obrigação do Ministério Público em concretizar uma política criminal que assegure o exercício das garantias processuais penais do investigado e do acusado e que, especialmente depois do surgimento do juiz das garantias no Direito Processual Penal brasileiro, pressuponha a separação das funções investigativa e acusatória do Parquet.

A partir da necessidade de atribuírem-se a investigação e a acusação criminais a membros diversos do Ministério Público, uma última hipótese faria com que a Súmula nº 234 do Superior Tribunal de Justiça, o Tema nº 184 de Repercussão Geral do Supremo Tribunal Federal e a Resolução nº 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público não mais pudessem ser considerados compatíveis com o ordenamento jurídico processual penal brasileiro, a menos que se procedesse sua respectiva e devida reinterpretação.

A separação das funções instrutória e judicante, trazida pela Lei nº 13.964/2019, remete ao Sistema do Juizado de Instrução Criminal, defendido desde os projetos legislativos iniciais do atual Código de Processo Penal brasileiro, embora tal sistema não haja sido consagrado na redação final do vigente Decreto-Lei nº 3.689/1941.

Além disso, em que pese seja praticamente pacífico na doutrina e na jurisprudência o entendimento acerca da possibilidade de o Ministério Público comandar a investigação criminal preliminar, tal juízo não se verifica em relação à necessidade da separação das funções investigatória e acusatória do Parquet, o que demandaria um aprofundamento desse ponto, a ser realizado neste estudo.

Apesar de existirem entendimentos doutrinários e, igualmente, decisões jurisprudenciais nesse sentido, a efetiva cisão entre essas atribuições, investigatória e acusatória, desempenhadas pelo Ministério Público, por determinação legislativa, existia, até a Lei nº 13.964/2019, apenas no Direito Comparado, notadamente, no Processo Penal germânico — onde existe a figura do "juiz da investigação" ("der Ermittlungsrichter").

No Brasil, ao contrário, a jurisprudência dominante, corporificada especialmente na Súmula nº 234 do Superior Tribunal de Justiça, no Tema nº 184 de Repercussão Geral do Supremo Tribunal Federal e na Resolução nº 181 de 2017 do Conselho Nacional do Ministério Público, sempre entendeu pela possibilidade de atuação, no processo judicial, do mesmo e único representante do Ministério Público que houvesse presidido a fase da investigação, sem que tal situação implicasse a automática configuração de qualquer nulidade processual.

Nesse sentido e à luz do que se acaba de evocar, indaga-se se a inserção do juiz das garantias no Código de Processo Penal brasileiro em vigor (DL 3.689/1941) poderia representar um dos vários atos de concretização de uma Política Criminal dirigida à proteção das garantias constitucionais do investigado e do acusado e se deveria repercutir na interpretação de todo o sistema de Justiça Criminal brasileiro, reforçando a necessidade de, neste estudo desenvolvido em nível de Doutoramento em Direito, examinarem-se todos os aspectos da questão posta.

Embora não seja pacífica, na doutrina e na jurisprudência nacionais, a imparcialidade do Ministério Público, recorda-se dever o Parquet atuar na defesa dos princípios básicos do Estado Democrático de Direito, como na defesa da ordem democrática, no respeito às instituições e na observância da estrita legalidade.

No mesmo passo, recorda-se que o Parquet deve se desvencilhar da pecha autoritária de "acusador público" e se deva voltar à preservação das garantias fundamentais dos investigados e dos acusados, sem, todavia, abandonar sua função de buscar a aplicação do jus puniendi.

A perspectiva de separação entre as funções investigativas e acusatórias do Ministério Público, em sentido paralelo à sistemática do juiz das garantias, dirige-se de forma direta à ampliação da garantia de um julgamento imparcial e, consequentemente, ao aprimoramento da cláusula geral do devido processo legal.

Os direitos fundamentais constantes, de maneira expressa ou implícita, da Constituição de 1988, demandam uma amplitude interpretativa suficiente para promover sua efetividade, inclusive naquilo que se relaciona às limitações ao poder punitivo do Estado e às suas possibilidades de limitação à liberdade e patrimônio de seus cidadãos.

Não se deve impedir o Parquet de investigar, mas sim, há necessidade de que a divisão do Processo Penal, entre as fases pré e endoprocessuais, seja acompanhada da separação das atuações ministeriais investigativa e acusatória.

A falta de separação entre as esferas de atuação do Ministério Público no Processo Penal, investigativa (preparatória) e acusatória (judicial), pode comprometer a efetividade do próprio instituto do juiz das garantias, defenestrando os objetivos do legislador processual penal.

Mais do que isso, a separação da atuação do parquet no âmbito do Processo Penal, determinando-se que o membro que investigue não possa prosseguir na acusação, após a passagem à fase judicial, confirma o princípio acusatório e, via de consequência, o próprio princípio do devido processo legal.

Concluiu-se que a superveniência do instituto do juiz de garantias no direito processual penal nacional, ao separar as funções do Juiz criminal entre a investigação e o julgamento, demanda a adaptação da Súmula nº 234 do STJ e do Tema nº 184 de Repercussão Geral do STF, bem como a derrogação do artigo 2º, inciso I, da Resolução nº 181/2017 do CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público).

Tal compatibilização, entretanto, ao contrário de determinar a impossibilidade de o Ministério Público investigar, demanda a separação de suas funções ministeriais, a serem exercidas, assim, por membros diferentes. Nesse sentido, a investigação, ou o seu comando, deve ser feito por um membro do Parquet; e a acusação e instrução processual, por outro, trazendo maior dignidade para todos os brasileiros e ampliando a confiança legítima nas atribuições constitucionais do Parquet.

 


[1] Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito […].

[2] Art. 2º. Em poder de quaisquer peças de informação, o membro do Ministério Público poderá: I – promover a ação penal cabível; […].

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!