Garantias do Consumo

Os riscos do desenvolvimento e a revogação da Lei 14.125/2021

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16 de agosto de 2023, 8h00

Com o reconhecimento da situação de pandemia de Covid-19 pela OMS e a posterior notícia de que alguns laboratórios tinham obtido sucesso na rápida fabricação de vacinas para o combate ao coronavírus, muitos países iniciaram tratativas para a aquisição dos novos imunizantes. Um desses países foi o Brasil, e a esperança era que, em breve tempo, o país recebesse elevada quantidade de doses como forma de reduzir o número de mortes, que já atingia cifras alarmantes.

As negociações para a compra dos imunizantes, porém, esbarravam na resistência dos laboratórios em assumir os riscos decorrentes da aplicação das vacinas, em especial por serem, a rigor, riscos do desenvolvimento, isto é, riscos que só o desenvolvimento técnico e científico poderá, eventualmente, descobrir [1]. A solução encontrada por muitos países e, dentre estes, novamente o Brasil, foi a celebração de contratos com a assunção destes riscos por parte do poder público.

No caso brasileiro, essa assunção de riscos foi referendada pela publicação da Lei 14.125, de 10 de março de 2021. Esta lei dispunha sobre a "responsabilidade civil relativa a eventos adversos pós-vacinação contra a Covid-19 e sobre a aquisição e distribuição de vacinas por pessoas jurídicas de direito privado". Por força desse diploma, os entes federativos ficaram "autorizadas a adquirir vacinas e a assumir os riscos referentes à responsabilidade civil, nos termos do instrumento de aquisição ou fornecimento de vacinas celebrado, em relação a eventos adversos pós-vacinação", desde que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) tivesse concedido o respectivo registro ou a autorização temporária de uso emergencial (artigo 1º, caput; original não grifado). Além disso, também previa que estes mesmos entes federativos poderiam "constituir garantias ou contratar seguro privado, nacional ou internacional, em uma ou mais apólices, para a cobertura dos riscos de que trata o caput deste artigo" (artigo 1º, § 1º).

Essa assunção do risco, felizmente até hoje não confirmado, aproxima-se de uma situação de socialização dos danos, algo que se observa no Brasil, por exemplo, para os danos decorrentes do uso da Talidomida, exemplo clássico de riscos do desenvolvimento que, infelizmente, se converteram em danos [2]. Quanto ao tema, vale recordar que o Brasil, de fato, de forma distinta do ocorrido em outros países [3], promulgou a Lei 7.070/1982, a qual atribui ao Instituto Nacional da Seguridade Social (INSS) a obrigação de pagar uma pensão mensal a tais pessoas após a realização da competente perícia. Este exame pericial destina-se a estabelecer o "grau da dependência" da vítima, sendo avaliados e graduados quatro aspectos, o que determina que o valor da pensão varie entre um e quatro salários mínimos [4]. Esta mesma perícia servirá ainda de fundamento para o pagamento de uma nova parcela, a título de danos extrapatrimoniais, a qual variará entre R$ 50 mil e R$ 400 mil, conforme o grau da dependência da vítima [5]. Tal parcela, paga uma única vez pelo INSS, está prevista na Lei 12.190/2010, a qual também impõe que a vítima assine um "termo de opção" por meio do qual renuncia a qualquer ação judicial em face do fabricante do produto [6].

Com a entrada em vigor da Lei 14.125/2021, a situação, como dito, seria muito próxima a esta, razão pela qual a lei já autorizava o Poder Executivo federal a "instituir procedimento administrativo próprio para a avaliação de demandas relacionadas a eventos adversos pós vacinação" (artigo 3º). Contudo, como, felizmente, não se tem notícia de um elevado número de pessoas que tenham sofrido esses "efeitos adversos pós vacinação", referido "procedimento administrativo" não chegou a ser instituído. Posteriormente, passado o período mais agudo da pandemia, o governo federal editou a Medida Provisória 1.126, de 15 de junho de 2022, a qual teve como única finalidade revogar a Lei 14.125/2021 [7].

A revogação da Lei 14.125/2021 permite, porém, uma oportuna reflexão acerca da responsabilidade civil decorrente de possíveis danos que ainda possam ser atribuídos às vacinas que foram utilizadas no curso da situação de pandemia [8]. Tais danos, como dito, deverão ser considerados como uma consumação dos "riscos do desenvolvimento", pois serão verificados anos após a utilização do produto (vacinas) e confirmados pelas pesquisas posteriormente realizadas. Sendo assim, a eventual responsabilidade do poder público poderá ser afirmada com fundamento no artigo 37, § 6º, da Constituição da República [9], uma vez que tenha importado e aplicado as vacinas, mas sem prejuízo da responsabilidade civil do fabricante ou do importador privado, nos precisos termos do artigo 12 do CDC [10]. Isso porque, é sempre oportuno lembrar, o STJ, em recente precedente, considerou a hipótese de risco do desenvolvimento como um fortuito interno, não sendo admitida, portanto, a exclusão da responsabilidade civil objetiva do fornecedor [11].

 


[1] Sobre o tema seja consentido remeter a Marcelo Junqueira CALIXTO, A Responsabilidade Civil do Fornecedor de Produtos pelos Riscos do Desenvolvimento, Rio de Janeiro, Renovar, 2004.

Entre os inúmeros artigos jurídicos nacionais específicos sobre o tema dos riscos do desenvolvimento podem ser citados: a) Marcelo Junqueira CALIXTO, "O art. 931 do código civil de 2002 e os riscos do desenvolvimento", in Revista Trimestral de Direito Civil – RTDC, vol. 21, Rio de Janeiro, Padma, 2005, pp. 53-93; b) Marcos CATALAN. "Notas acerca do desenvolvimento tecnológico e do dever de reparar danos ignorados no desvelar do processo produtivo". In: STAUT JÚNIOR, Sérgio Said (org.). Estudos em Direito Privado: uma homenagem ao prof. Luiz Carlos Souza de Oliveira, Curitiba, Luiz Carlos Centro de Estudos Jurídicos, 2014; c) Maria Cândida KROETZ e Luiz Augusto da SILVA, "Um Prometeu ‘Pós-Moderno?’ Sobre desenvolvimento, riscos e a responsabilidade civil nas relações de consumo", in Revista Brasileira de Direito Civil, vol. 09, jul./set. de 2016; d) Juliane Teixeira MILANI e Frederico Eduardo GLITZ, "Anotações sobre o risco de desenvolvimento: análise do caso da Talidomida”, in Revista Luso-Brasileira de Direito do Consumo, vol. V, n. 17, março de 2015, pp. 177-205; e) Tula WESENDONCK, “A responsabilidade civil pelos riscos do desenvolvimento: evolução histórica e disciplina no Direito Comparado". In: Direito e Justiça – Revista de Direito da PUC/RS, vol. 38, Porto Alegre, jul./dez. de 2012, pp. 213-227.

 

[2] De origem alemã, tal medicamento foi largamente usado no final dos anos cinquenta e início dos anos sessenta como um eficiente analgésico. Contudo, o avanço dos estudos científicos permitiu afirmar que o seu princípio ativo era capaz de atravessar a placenta e, em consequência, acarretar graves danos ao feto, em especial aos seus membros superiores e inferiores, os quais não se desenvolvem plenamente. Essas pessoas são consideradas como "portadoras da síndrome da Talidomida".

No Brasil, inclusive, foi fundada a Associação Brasileira dos Portadores da Síndrome da Talidomida (ABPST), sediada em São Paulo, e que "está presente em 19 Estados do país e conta com 800 vítimas da talidomida cadastradas" (informações obtidas no site da associação: www.talidomida.org.br, acesso em 21 de julho de 2023).

[3] Para um estudo mais aprofundado das leis nacionais europeias seja consentido remeter a Marcelo Junqueira CALIXTO, A Responsabilidade Civil, cit., pp. 183-190. Na doutrina europeia é recomendável a magnífica obra de João Calvão da SILVA, Responsabilidade Civil do Produtor, Coimbra, Almedina, 1990.

[4] Veja-se, nesse sentido, o disposto no art. 1º da Lei 7.070/82: "Art. 1º – Fica o Poder Executivo autorizado a conceder pensão especial, mensal, vitalícia e intransferível, aos portadores da deficiência física conhecida como 'Síndrome da Talidomida' que a requererem, devida a partir da entrada do pedido de pagamento no Instituto Nacional de Previdência Social – INPS.

§ 1º – O valor da pensão especial, reajustável a cada ano posterior à data da concessão segundo o índice de Variação das Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional ORTN, será calculado, em função dos pontos indicadores da natureza e do grau da dependência resultante da deformidade física, à razão, cada um, de metade do maior salário mínimo vigente no País.

§ 2º – Quanto à natureza, a dependência compreenderá a incapacidade para o trabalho, para a deambulação, para a higiene pessoal e para a própria alimentação, atribuindo-se a cada uma 1 (um) ou 2 (dois) pontos, respectivamente, conforme seja o seu grau parcial ou total”.

A realização da perícia vem prevista no art. 2º da mesma Lei: 'Art. 2º – A percepção do benefício de que trata esta Lei dependerá unicamente da apresentação de atestado médico comprobatório das condições constantes do artigo anterior, passado por junta médica oficial para esse fim constituída pelo Instituto Nacional de Previdência Social, sem qualquer ônus para os interessados'.

[5] Veja-se, nesse sentido, o disposto no art. 1º da Lei 12.190/2010: "Art. 1o É concedida indenização por dano moral às pessoas com deficiência física decorrente do uso da talidomida, que consistirá no pagamento de valor único igual a R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), multiplicado pelo número dos pontos indicadores da natureza e do grau da dependência resultante da deformidade física (§1o do art. 1o da Lei no 7.070, de 20 de dezembro de 1982)".

[6] É o que se lê no art. 4º do Decreto 7.235/2010, de 19 de julho de 2010, o qual regulamentou a Lei 12.190/2010, verbis: "Art. 4o Para o recebimento da indenização por dano moral de que trata este Decreto, a pessoa com deficiência física decorrente do uso da talidomida deverá firmar termo de opção, conforme modelo anexo a este Decreto, declarando sua escolha pelo recebimento da indenização por danos morais de que trata a Lei no 12.190, de 2010, em detrimento de qualquer outra, da mesma natureza, concedida por decisão judicial. Parágrafo único. O termo de opção poderá ser firmado por representante legal ou procurador investido de poderes específicos para este fim".

[7] É necessário recordar que Medida Provisória 1.126/2022 foi, posteriormente, convertida na Lei 14.466, de 16 de novembro de 2022. Ou seja, a rigor desde 15 de junho de 2022 a Lei 14.125/2021 estava revogada.

[8] Neste sentido, vale recordar que alguns sites noticiaram recentemente que o BioNTech, – laboratório que em conjunto com a Pfizer desenvolveu uma vacina contra a COVID-19 aplicada em milhões de pessoas ao redor do mundo –, está sendo demandado, na Alemanha, por consumidores que teriam sofrido danos decorrentes deste imunizante. Estas notícias foram veiculadas, dentre outros, nos seguintes endereços eletrônicos: https://canaltech.com.br/saude/biontech-vira-alvo-de-processos-devido-a-vacina-contra-covid-252544/; https://www.dn.pt/sociedade/biontech-enfrenta-primeiro-processo-por-alegados-efeitos-colaterais-da-vacina-covid-19-16512242.html e https://www.terra.com.br/byte/biontech-vira-alvo-de-processos-devido-a-vacina-contra-covid,e1ab96c3b5ec519c4319b9e421d62dcbz0d748qz.html, todos acessados em 15 de junho de 2023.

[9] Recorde-se o dispositivo: "Art. 37. (…). § 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa".

[10] Afirma o art. 12, caput, do CDC: "Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos".

[11] 4ª Turma, Recurso Especial n. 1.774.372/RS, rel. min. Nancy Andrighi, julgado em 5 de maio de 2020. Neste sentido, merece transcrição o seguinte trecho do voto condutor da relatora, ministra Nancy Andrighi: "Ainda que se pudesse cogitar de risco do desenvolvimento, entendido como aquele que não podia ser conhecido ou evitado no momento em que o medicamento foi colocado em circulação, tratar-se-ia de defeito existente desde o momento da concepção do produto, embora não perceptível a priori, caracterizando, pois, hipótese de fortuito interno" (grifou-se).

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