Público & Pragmático

Inconstitucionalidade do artigo 8º, IX, da Lei Complementar nº 173/2020

Autores

  • Gustavo Justino de Oliveira

    é professor doutor de Direito Administrativo na Faculdade de Direito na USP e no IDP (Brasília) árbitro mediador consultor advogado especializado em Direito Público e membro integrante do Comitê Gestor de Conciliação da Comissão Permanente de Solução Adequada de Conflitos do CNJ.

  • Daniel Ribeiro Barcelos

    é auditor federal de Finanças e Controle da Controladoria-Geral da União (CGU) graduado em Administração Pública pela Escola de Governo de Minas Gerais e em Direito pela UFMG e doutorando e mestre em Direito de Estado pela Universidade de São Paulo.

13 de agosto de 2023, 8h00

A Lei Complementar (LC) nº 173, de 27 maio de 2020, em seu artigo 8º, inciso IX, trouxe medida absurda e frontalmente inconstitucional: o sacrifício de direitos patrimoniais ao servidor público, de modo permanente por uma lei transitória, que a rigor deveria apenas reger um exercício orçamentário, o de 2020, porém estendeu-se suas regras até 31 de dezembro de 2021.

Assim estabeleceu a lei:

Spacca
"Art. 8º Na hipótese de que trata o art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios afetados pela calamidade pública decorrente da pandemia da Covid-19 ficam proibidos, até 31 de dezembro de 2021, de:

(…)

IX – contar esse tempo como de período aquisitivo necessário exclusivamente para a concessão de anuênios, triênios, quinquênios, licenças-prêmio e demais mecanismos equivalentes que aumentem a despesa com pessoal em decorrência da aquisição de determinado tempo de serviço, sem qualquer prejuízo para o tempo de efetivo exercício, aposentadoria, e quaisquer outros fins."

Sendo elucidativo, no inciso IX, a lei criou o tempo fictício reverso, que é aquele que o servidor trabalha, mas não é registrado pela administração pública, pensando-se num paralelo com o § 10 do artigo 40 da Constituição (a lei não poderá estabelecer qualquer forma de contagem de tempo de contribuição fictício).

Ainda pensando no dispositivo constitucional citado, numa interpretação a contrario sensu, pode-se dizer que deveria haver a garantia ao servidor de que "A Lei não modificará qualquer forma de contagem de tempo efetivamente exercida, tornando-a fictícia". Talvez por algum cuidado, no que diz respeito ao regime de aposentadoria e por conta do dispositivo ventilado acima, que o legislador houve por bem de fazer a ressalva na parte final do inciso IX, do artigo 8º: "sem qualquer prejuízo para o tempo de efetivo exercício, aposentadoria, e quaisquer outros fins". Acredita-se que ele ainda lembrou o dispositivo constitucional citado.

De toda forma, com a aplicação do regime de tempo fictício reverso, é importante exemplificar os efeitos patrimoniais suportados pelos servidores.

Suponha-se que um servidor tenha férias-prêmio concedidas a cada cinco anos de efetivo exercício. Com a regularidade de sua frequência ao serviço, em seu período aquisitivo de cinco anos, ele gozaria três meses de férias prêmio. Com a aplicação do dispositivo da lei, lhe foram-lhe suprimidos 1/3 da contagem deste tempo de período aquisitivo, o que levaria a perda patrimonial também de 1/3, ou seja, 33,33%, quase um confisco, com uma alíquota superior ao próprio imposto de renda, que é de 27,5%. Lembrando que o imposto de renda é aplicável a todo o brasileiro; e neste caso da LC 173, somente a esta pessoa por sua qualificação como servidor público. O confisco é vedado pela Constituição (artigo 150, IV).

Voltando ainda ao caso da licença prêmio, ela de per si não gera aumenta de despesa, pois não acarreta qualquer alteração no valor nominal ou real dos salários dos servidores, por conseguinte, não gera aumento de despesa. Poderiam argumentar que se o servidor licenciar-se, teria de haver outro servidor para substitui-lo e, portanto, geraria aumento de despesa com pessoal. Nesse sentido, bastava o legislador suspender a concessão de licença prêmio e não remover por infinito sideral a sequencia lógica de tempo para aquisição do direito. O legislador assim não o fez e ademais estava proibida a contratação de substituto, nos moldes do inciso IV do artigo 8º. Portanto, a Licença prêmio não tinha a menor condição de oferecer risco às contas públicas.

Importante frisar que a LCP 173 também não previu a suspensão da concessão da licença prêmio, portanto, o argumento do eventual aumento de despesa não tem qualquer base lógica e assim não estaria acobertada pelas regras do artigo 169 [1] da Constituição Federal. O remédio deveria ter sido a suspensão, e jamais a proibição da averbação de tempo para configuração do período aquisitivo. Chega-se ao absurdo jurídico de que o legislador permitia o gozo da licença, permitindo o "desfalque" do servidor no serviço, mas o tempo ao servidor, o legislador não permite que ele incorpore ao seu patrimônio jurídico.

Assim, a inscrição da expressão "licença-prêmio" no rol dos institutos do inciso IX do art. 8º não tem guarida constitucional, nos termos do artigo 169 da CF, e portanto é de uma inconstitucionalidade flagrante e ofensiva aos direitos dos servidores públicos garantidos na Constituição.

Então qual a razão da proibição da incorporação do tempo ao acervo jurídico do servidor, neste caso? Entende-se que, pela lógica empregada pela LC 173, é apenas punitiva. Gerou-se um direito penal fiscal, neste caso com letras minúsculas mesmo, de tão subversivo à ordem constitucional, em que o servidor está sentado no banco dos réus por ter cometido o delito de ir trabalhar e querer reconhecer aquele tempo como um benefício do seu "contrato de trabalho" com o Estado.

Com o regime de tempo fictício reverso, como dito, gerou-se uma penalização do exercício regular de frequência ao serviço. Estes servidores efetivamente trabalharam — e muitos trabalharam muito mais do que seria o esperado, como professores de rede pública e universidades! — para fazerem jus às suas vantagens funcionais e tiveram por uma lei excepcional e transitória, que dizia respeito a regras fiscais, a supressão de direitos dos seus estatutos funcionais.

É importante frisar que o setor privado, com destaque para o financeiro, não teve um sacrifício de direito pela aplicação dos dispositivos da própria lei complementar (que tiveram apenas uma paralisação das parcelas a serem pagas no período, caso os entes federados fizessem um aditamento contratual, ou seja, o setor financeiro deveria concordar com a negociação, nos termos do artigo 4º ), e nem mesmo a União teve qualquer diminuição de seus recebíveis, pois os valores não pagos foram incorporados aos respectivos saldos devedores em 1º de janeiro de 2022, devidamente atualizados pelos encargos financeiros contratuais de adimplência, para pagamento pelo prazo remanescente de amortização dos contratos (artigo § 1º do artigo 2º), e os estados e municípios receberam volumes vultosos de recursos nos moldes da LCP 173 e possibilidade de reestruturação da dívida (artigos 5º e 6º). Enquanto isso, coube aos servidores um sacrifício compulsório.

Para piorar a situação, o legislador criou duas categorias de servidores, servidores públicos civis e militares da área de saúde e da segurança pública e os demais, sendo os primeiros, não sujeitos ao regime de tempo fictício reverso permanente, enquanto aos demais, caindo-lhes em sobremaneira o regime diferenciado de usurpação de direitos, ferindo em cheio o princípio da igualdade, até mesmo aquele desenhado pela CF no artigo 37, inciso XII (os vencimentos dos cargos do Poder Legislativo e do Poder Judiciário não poderão ser superiores aos pagos pelo Poder Executivo). Chegou-se a criar uma política discriminatória do sacrifício: algumas carreiras têm mais direitos que outras, com sacrifício de direito seletivo.

E o pior, seguindo a linha da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) no ecossistema de contenção de despesas, havia uma regra no arcabouço legislativo que sempre excluía dele os setores de saúde e educação (artigos 22, IV, e 25, § 3º); neste caso, nem mesmo os servidores da educação foram aliviados do sacrifício.

Suspender o pagamento dos adicionais dos servidores durante o tempo da pandemia para eventual equilíbrio das contas públicas seria até mesmo um tanto draconiano, porque deveria ser demonstrado que havia um comprometimento das contas com despesa de pessoal que chegariam a percentuais de 90 a 95% da receita corrente líquida, tal como previsto no mandamento constitucional e na LRF, mas devendo o pagamento ser depois realizado aos servidores, mas proibir a incorporação de tempo efetivamente trabalhado é de uma aberração jurídica sem tamanho.

Importante frisar que a Constituição, artigo 169, não autorizou na calamidade pública ou em qualquer outra emergência, que foi motivo gênese da edição de lei complementar em tela, demitir servidores (como cita o STF — ADI 6.447/DF [2]) em sua decisão ou supressão da concessão de qualquer vantagem ou aumento, mas tão somente quando há o comprometimento do gasto com a despesa de pessoal, retro mencionado, frente à receita corrente líquida (artigo 19), nos termos da LRF.

O que a Lei Complementar nº 173/20 fez foi criar uma presunção de que o limite de gasto de pessoal seria ultrapassado e de imediato a medida "corretiva" já tinha de ser adotada, faltando ao legislador observar o mandamento constitucional. A realidade fática tinha de ser analisada para aplicação do sacrifício de direito, para apenas, eventualmente, "regularizar" o exercício orçamentário (inclusive estes são parâmetros hermenêuticos para a criação e o direito público a partir da Lei federal nº 13.655/18, a Nova Lindb).

Deve-se lembrar que dependia de uma conduta administrativa apurativa da observância dos limites de despesa de pessoal para eventualmente efetivar tal limitação de gastos, esfera de competência do administrador público, no caso, do ordenador de despesa. Devendo, ainda, a administração atuar com adequação de meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público — Lei de Processo Administrativo (LPA), inciso VI do parágrafo único do artigo 2º — e verificando os pressupostos de fato e de direito que determinarem a decisão (LPA, inciso VII do parágrafo único do artigo 2º).

Absurdamente, o legislador simplesmente suprimiu estes dois pressupostos, sendo um deles até mesmo de índole constitucional, criando uma presunção, eliminando qualquer verificação da realidade fática, gerando uma regra uniforme para todos os entes a obedecerem, sem levar em conta as peculiaridades regionais ou locais de aplicação, com caráter permanente no corpo de uma lei temporária e excepcional.

No que pese a ADI 6.447/DF em que o STF declarou a constitucionalidade do artigo 8º, o Supremo também já proferiu decisão sobre as supressões intentadas ao funcionalismo pela LRF no artigo 23, § 2º (§ 2º É facultada a redução temporária da jornada de trabalho com adequação dos vencimentos à nova carga horária.) no bojo da Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.238/DF [3]: "Em relação ao parágrafo 2º do art. 23 da LRF, é entendimento iterativo do STF considerar a irredutibilidade do estipêndio funcional como garantia constitucional voltada a qualificar prerrogativa de caráter jurídico-social instituída em favor dos agentes públicos".

Frisa-se ainda, que no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.447/DF o próprio ministro relator diz da temporariedade da supressão para equilíbrio das contas, que deve ser entendida nos respectivos anos de regência da lei. In verbis o voto (página 43):

"No caso, verifica-se que não houve uma redução do valor da remuneração dos servidores públicos, uma vez que apenas proibiu-se, temporariamente, o aumento de despesas com pessoal para possibilitar que os entes federados enfrentem as crises decorrentes da pandemia de COVID-19, buscando sempre a manutenção do equilíbrio fiscal."

Aliás, foi essa a exegese que deu o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE-SP), e com razão. Em julho do corrente ano, o TCE-SP reconheceu o direito à contagem dos tempos suprimidos temporariamente para o funcionalismo público durante a pandemia de Covid-19 (nos termos da LC 173).

Na votação, que teve base em duas consultas dos municípios de Irapuã e Sales (6395.989.23-9 e 6449.989.23-5), os conselheiros definiram que a Lei Complementar 173, de 2020, possui eficácia temporária, uma vez que se trata de norma geral de direito financeiro, ou seja, não interferindo em vantagens estatutárias dos servidores. Desta forma, cessada a vigência da lei complementar em tela, em 31/12/2021, o tempo de serviço efetivamente exercido entre maio de 2020 e dezembro de 2021 deve ser considerado para todos os fins (como é o caso do quinquênio, licença-prêmio e outros adicionais de tempo), tal como espelha o artigo 100 do estatuto funcional federal: "É contado para todos os efeitos o tempo de serviço público federal, inclusive o prestado às Forças Armadas".

Ainda no tocante ao sacrifício de direito é importante o esclarecimento da doutrina:

"…o sacrifício de direitos envolve situações em que a própria ordem jurídica confere ao Estado a prerrogativa de restringir ou suprimir direitos patrimoniais de terceiros, mediante o devido processo legal e o pagamento de indenização (ex.: desapropriação).
Na responsabilidade civil, a lesão aos direitos de terceiros é efeito reflexo da atuação estatal, lícita ou ilícita. Por outro lado, o sacrifício de direitos compreende atuação estatal, autorizada pelo ordenamento, que tem por objetivo principal (direto) restringir ou extinguir direitos de terceiros, mediante pagamento de indenização" (OLIVEIRA, Rafael Rezende. Curso de Direito Administrativo, 6ª edição, p. 763).

O Direito Administrativo pandêmico, infelizmente, gerou uma série de iniquidades no serviço público. Uma delas, frontalmente inconstitucional, foi aqui examinada e rechaçada de modo fundamentado.

Torna-se imperioso haver uma conduta reparatória do Poder Legislativo e/ou Judiciário, conforme teleológica da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (Lindb), no que dispõe, a este regime de sacrifício de direito; num reconhecimento de que os servidores foram atingidos por ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, detêm natureza anormal e excessiva (par. único do artigo 21), devendo haver um regime de regularização estatal reparatório.

Nesta sequência, deve ser realizada uma autorização judicial ou legislativa para reconhecimento do gravame imposto aos servidores de forma extremamente desproporcional, desarrazoada e fora das hipóteses permissivas constitucionais, com a aplicação de um regime de reconhecimento de despesas de exercícios encerrados, nos termos do artigo 37 da Lei nº 4.320, também uma lei fiscal.

 

 


[1] Art. 169. A despesa com pessoal ativo e inativo e pensionistas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios não pode exceder os limites estabelecidos em lei complementar.

§ 1º. A concessão de qualquer vantagem ou aumento de remuneração, a criação de cargos, empregos e funções ou alteração de estrutura de carreiras, bem como a admissão ou contratação de pessoal, a qualquer título, pelos órgãos e entidades da administração direta ou indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo poder público, só poderão ser feitas:

[2] AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE n. 6.447/DF. Relator: MIN. ALEXANDRE DE MORAES. DJ Nr. 55 do dia 23/03/2021.

[3] AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE n. 2.238/DF. Relator: MIN. ALEXANDRE DE MORAES. DJ Nr. 235 do dia 24/9/2020.

Autores

  • é professor doutor de Direito Administrativo na Faculdade de Direito na USP e no IDP (Brasília), árbitro, mediador, consultor, advogado especializado em Direito Público e membro integrante do Comitê Gestor de Conciliação da Comissão Permanente de Solução Adequada de Conflitos do CNJ.

  • é auditor federal de Finanças e Controle da Controladoria-Geral da União (CGU), mestre em Direito de Estado pela Universidade de São Paulo (USP) e graduado em Administração Pública pela Escola de Governo de Minas Gerais.

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