Tribunal do Júri

HC e recurso em casos de homicídio: análise estatística nos tribunais superiores

Autores

  • Gina Ribeiro Gonçalves Muniz

    é defensora pública do estado de Pernambuco e mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra.

  • David Metzker

    é sócio do escritório Metzker Advocacia advogado criminalista professor e palestrante pós-graduado em Direito Penal e Criminologia pela PUC-RS e MBA em Gestão Empreendedorismo e Marketing pela mesma instituição diretor cultural e acadêmico da Abracrim-ES.

  • Denis Sampaio

    é defensor público titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal) mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

  • Daniel Ribeiro Surdi de Avelar

    é juiz de Direito mestre e doutorando em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil) professor de Processo Penal (UTP EJUD-PR e Emap) e professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

11 de novembro de 2023, 8h00

Em pesquisa de David Metzker, que diariamente monitora o deferimento de HCs e RHCs nos tribunais superiores, constata-se com relação ao crime de homicídio que, no período compreendido entre 1º de janeiro e 30 de setembro de 2023, foram concedidas 716 (623 HCs e 93 RHCs) ordens no STJ e 35 (31 HCs e 4 RHCs) ordens no STF, conforme gráficos demonstrativos abaixo.

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O propósito deste artigo é desvendar o que existe por trás dos números apresentados na pesquisa.

Inicialmente, é crucial destacar que os gráficos em questão são elaborados com base em um banco de dados. Este, por sua vez, é alimentado por uma planilha que contém diversas variáveis relevantes para a análise jurídica. Entre elas, estão: a classe processual, o número do processo, o ministro relator, o órgão julgador ao qual o caso pertence, a data de publicação no Diário Oficial, se a decisão superou ou não a Súmula 691, se a decisão foi proferida de forma colegiada ou monocrática, o tema jurídico abordado, o tipo de crime em discussão, a qualidade do impetrante, o estado de origem, a data de autuação e, por fim, um resumo da decisão judicial. A quantidade de dias que a ordem levou para ser concedida também é registrada.

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O primeiro ponto digno de nota diz respeito à superioridade numérica de HCs em relação aos RHCs. A ampla utilização do habeas corpus como sucedâneo recursal de recursos de natureza extraordinária explica-se pela maior eficiência aliada à exigência de menos requisitos formais para o processamento do writ. Conforme se depreende dos deferimentos, o remédio heroico surte o efeito almejado — liberdade do paciente — ainda que não seja o meio de impugnação tecnicamente mais apropriado para a situação em concreto.

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O conhecimento de um habeas corpus pode encontrar obstáculos na Súmula 691 do STF, que estabelece que o Supremo Tribunal Federal não tem competência para julgar um habeas corpus impetrado contra a decisão de um relator que indeferiu a liminar em um habeas corpus encaminhado a um tribunal superior. Os dados da pesquisa demonstram que os tribunais superiores raramente abrem exceções a esse entendimento sumulado, o fazendo apenas em casos de manifesta ilegalidade.

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Dos números extraídos dos gráficos também se percebe que a imensa maioria das ordens são concedidas monocraticamente. No STJ, de um universo de 716 processos, 685 foram decisões monocráticas. No STF, em um conjunto de 35 processos, apenas duas decisões foram colegiadas. Esse cenário revela a ausência de uma cultura de respeito aos precedentes no processo penal.

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Como é cediço, somente há decisões monocráticas diante de situações em que há um entendimento consolidado dos tribunais superiores. Se por um prisma, os magistrados das instâncias ordinárias se valem da premissa do livre convencimento motivado para se esquivar dos precedentes, por outro lado a defesa — pública ou privada — recorre ao “remédio constitucional” para sanar as ilegalidades. Destarte, importantes teses são firmadas em julgamento de habeas corpus.  Tais precedentes são desprovidos de força vinculante e, por conseguinte, não são reproduzidos nas instâncias inferiores. O resultado desse ciclo que se retroalimenta é conhecido de todos: um abarrotamento de habeas corpus nos tribunais superiores. Excetuado o período de recesso, o STJ defere, em média, 50 a 60 ordens por dia; nos casos de homicídio, a média é de seis ordens diariamente.

Do total de 716 ordens deferidas no STJ, foram concedidas 75 liminares: 56 pela sexta turma, 15 pela quinta turma e quatro pela presidência. A quinta turma, embora conceda menos liminares que a sexta turma, em regra, é mais célere na análise do mérito da causa.

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Uma listagem dos principais temas que substanciam a concessão de HCs e RHCs nos tribunais superiores robustecem a tese de falta de adesão das instâncias ordinárias aos precedentes em matéria penal.

Iniciaremos pelo STJ:

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No Tribunal da Cidadania, a imensa maioria (33%) das ordens deferidas relaciona-se a equívocos na dosimetria da pena. É frequente, por exemplo, a exasperação da pena-base com fundamento em considerações genéricas e inerentes ao próprio tipo penal, a despeito do entendimento pacificado do STJ em sentido contrário (EDcl no HC nº 777.205/PB, relator ministro Antonio Saldanha Palheiro, sexta turma, julgado em 6/6/2023, DJe de 14/6/2023.). Também é comum, embora inaceitável, o reconhecimento de agravante sobre circunstâncias que, em tese, configurariam uma qualificadora do crime de homicídio, mas não constou da tese acusatória, e, por conseguinte, não foi quesitada aos jurados (HC nº 800.217, ministro Rogerio Schietti Cruz, DJe de 28/02/2023.).

Em seguida à dosimetria da pena, os temas que mais ensejam concessão de ordem no STJ, com relação ao crime de homicídio, são a revogação da prisão preventiva por falta de fundamentação idônea, relaxamento da prisão por excesso de prazo, apreciação de habeas corpus pelo tribunal local, revogação de preventiva em razão de desnecessidade e ausência de contemporaneidade, prisão automática e excesso de linguagem. Essa constatação empírica vai ao encontro do que escrevemos aqui[1] sobre a banalização do uso da prisão cautelar nos crimes de homicídios dolosos contra a vida.

A pesquisa revela ainda que percentual considerável (11%) das ordens concedidas visa cassar decisão de pronúncia lastreada nas palavras de testemunhas “de ouvi dizer” (hearsay testimony) ou embasada exclusivamente em elementos informativos colhidos na fase investigatória.

A decisão de pronúncia não é uma homologação da anterior decisão de recebimento da denúncia. Caberá ao juiz togado, com base nas provas produzidas sob o crivo do contraditório, decidir se a persecução que se desenvolveu até o fim do judicium accusationis desfruta de legitimidade para prosseguir.

O STJ tem posicionamento firme no sentido de que a decisão de pronúncia calcada apenas em elementos informativos viola o artigo 155 do CPP (STJ, REsp 1.916.733, relator ministro Ribeiro Dantas, 5ª Turma, julgado em 23/11/2021; STJ, HC 589.270, relator ministro Rogério Schietti Cruz, 6ª Turma, julgado em 23/02/2021).

Ainda consoante entendimento do STJ, “o depoimento testemunhal indireto não possui a capacidade necessária para sustentar uma acusação e justificar a instauração do processo penal, sendo imprescindível a presença de outros elementos probatórios substanciais” (HC nº 752.618/RJ, relator ministro Sebastião Reis Júnior, sexta turma, julgado em 6/6/2023, DJe de 12/6/2023.). Ora, se as palavras das testemunhas “de ouvi dizer” não são suficientes para sustentar o recebimento da denúncia, quiçá para pronunciar um réu.

Para arrematar a questão, colacionamos recente decisão da sexta turma: “Para a decisão de pronúncia, exige-se elevada probabilidade de que o réu seja autor ou partícipe do delito a ele imputado, não se aplicando o princípio in dubio pro societate” (REsp 2.091.647-DF, relator ministro Rogerio Schietti Cruz, julgado em 26/9/2023). Aqui[2] na Coluna, já demonstramos a evolução jurisprudencial em busca de uma maior racionalidade da decisão de pronúncia.

Passemos para o STF:

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No STF, o tema (gritantemente) mais recorrente na concessão do HCs e RHCs é a manutenção da absolvição do réu com base no quesito genérico (artigo 483, III, do CPP) após recurso do Ministério Público.

Esse artigo não tem por objetivo adentrar à discursão sobre (im)possibilidade de recurso contra a decisão absolutória do júri, questão que será deliberada pelo Plenário da Suprema Corte, no julgamento do ARE 1.225.185, já tendo sido reconhecida a repercussão geral da matéria (sessão virtual, tema 1.087).

Ponderamos, contudo, que ainda que o STF firme entendimento pela possibilidade de apelação contra veredicto absolutório, o manejo de tal recurso deve restringir-se a situações nas quais a decisão dos jurados seja totalmente divorciada das provas dos autos, e não apenas por entender o órgão acusatório que a escolha popular não foi correta.

Do contrário, as estatísticas ora apresentadas serão mantidas, ocupando-se a nossa corte constitucional com questões jurídicas que poderiam ser resolvidas nas instâncias ordinárias, bastando se aplicar o entendimento de que a cassação do veredicto só é possível quando absolutamente desprovido de provas mínimas.

Na seara penal, em regra, imputa-se (exclusivamente) à defesa a responsabilidade pelo congestionamento de processos nos tribunais superiores, sob a crença de que advogados e defensores públicos impetram habeas corpus em números excessivos e recursos meramente protelatórios.

De fato, é inegável que existe um abarrotamento de processos nos tribunais superiores. Contudo, eventual reforma do sistema processual brasileiro deve focar não apenas nas consequências dos problemas, mas sobretudo nas causas. A pesquisa apresentada no presente artigo descortina uma delas: a falta de adesão das instâncias ordinárias aos precedentes, a ensejar o uso dos meios de impugnação cabíveis.

Nos crimes de homicídios, os tribunais superiores tem posicionamentos consolidados sobre vários temas importantes, como, por exemplo: 1) não é possível a exasperação da pena-base com fundamento em considerações genéricas e inerentes ao próprio tipo penal; 2) se uma circunstância não foi utilizada pelo órgão acusatório como qualificadora, ela não pode ser reconhecida como agravante pelo juiz-presidente; 3) a gravidade em abstrato do crime não é fundamentação idônea para decretação de prisão preventiva; 4) a decisão de pronúncia não pode ser respaldada exclusivamente por testemunho indireto ou elementos informativos colhidos na investigação; 5) só é possível recurso contra veredicto absolutório no caso de total dissonância com as provas apresentadas no plenário. Se as instâncias ordinárias trilharem por estes caminhos, já será uma contribuição para o desafogamento dos tribunais de sobreposição.


[1] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-out-07/tribunal-juri-acusados-homicidio-tambem-sao-presumidamente-inocentes

[2] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jul-23/tribunal-juri-maior-racionalidade-pronuncia-evolucao-jurisprudencial-final

Autores

  • é defensora pública do Estado de Pernambuco e mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra.

  • é advogado, professor universitário, pós-graduado em Direito Penal e Criminologia pela PUCRS e especialista em Gestão pela mesma instituição. Membro da Comissão da Advocacia Criminal e de Política Penitenciária da OAB-ES.

  • é defensor público, titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal), mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ, investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa, membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ, membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros e professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

  • é juiz de Direito, presidente do 2º Tribunal do Júri de Curitiba desde 2008, mestre em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE Centro Universitário, UTP e Emap), professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

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