Escritos de Mulher

Dever internacional de cooperação e transferência de execução no caso Robinho

Autores

  • Rafaela Azevedo de Otero

    é advogada criminalista em São Paulo no escritório OCM Advogados mestre em Direito Econômico pela Universidade Cândido Mendes-RJ com a dissertação Cooperações internacionais para fins penais: Um Estudo sobre a produção e uso de provas” especialista em Ciências Criminais pela PUC-RS e em Direito Tributário pela LFG com oextensão em Compliance pela FGV-RJ.

  • Adriana Maria Gomes de Souza Spengler

    é advogada criminalista. Vice-presidente nacional da Abracrim. Sócia do escritório Chaves Jr & Spengler. Doutoranda em Ciências Criminais pela Uminho Portugal. Mestre em Ciências Jurídicas pela Univali. Especialista em Direito Penal Empresarial pela Univali. Professora de graduação e pós-graduação em Direito Penal na Univali.

8 de maio de 2024, 11h20

O dever internacional de cooperar

Reprodução

Com a globalização da economia e os avanços tecnológicos houve uma intensificação das interações transnacionais, consequentemente, as modalidades criminosas se diversificaram e se expandiram. Os crimes não são mais restritos a territórios geográficos, envolvem diversos países e pessoas, o que fez surgir o conceito de crimes transnacionais, que são aqueles que ultrapassam a fronteira de um Estado e exigem que as estruturas policiais e judiciais desenvolvam um trabalho com maiores conexões.

Os países que antes eram rigorosos em cooperar com outros Estados precisaram desenvolver suas relações internacionais e, então, cooperar para o combate de crimes transnacionais. Hoje, está estabelecido que existe um dever internacional na prestação de assistência penal.

Em casos que envolvam direitos humanos, o dever de cooperação é reconhecido pela maioria dos países democráticos, entre eles, o Brasil, passando até mesmo a mitigar princípios, como o da territorialidade, previsto no artigo 1º do Código de Processo Penal brasileiro.

Sendo assim, com base neste dever internacional de cooperar, foram desenvolvidos novos princípios de cooperações jurídicas internacionais, valendo mencionar alguns deles que serão importantes para entender a decisão de Homologação de Decisão Estrangeira nº 7.986, do Superior Tribunal de Justiça.

O princípio do devido processo legal internacional prevê que os direitos e garantias do indivíduo devem ser respeitados tanto pelo Estado requerente quanto pelo requerido, sob pena de se negar a cooperação jurídica.

O princípio da confiança tem como fator determinante a adesão dos estados aos tratados internacionais, em especial, aos tratados de direitos humanos. Tendo os estados aderido aos mesmos tratados de direitos humanos, entende-se que reconhecem o seu caráter universal e buscam a adaptação a ordem interna e, portanto, que podem confiar uns nos outros na solução de problemas.

E o princípio da aplicação da norma mais favorável à cooperação decorre da busca de harmonização das legislações dos estados, que considera a cooperação um dever internacional e, por isso, sua não realização deve ser fundamentada em algum impedimento legal, ou em ofensa a outros princípios, como as garantias internacionais dos acusados.

A denegação ao atendimento a pedidos de assistência internacional deve ser devidamente justificada e a impossibilidade de atendimento integral a demanda, por sua vez, não obstaculiza o atendimento parcial ou sua adaptação às regras de direito interno.

O pedido de transferência de execução da Itália no caso Robinho

Parte-se do pressuposto de que já houve trânsito em julgado da condenação de Robinho na Itália e de que, sendo tal país signatário dos principais tratados e convenções de direitos humanos, como a Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH), houve respeito aos direitos e garantias do acusado na ação penal que resultou na condenação de Robinho.

Da mesma forma, procedeu o Ministério da Justiça e Segurança Pública, autoridade central do Brasil que, baseado no princípio da confiança, em 17/2/2023, entendeu pela admissibilidade do pedido italiano de transferência da execução previsto no artigo 100 da Lei nº 13.445/2016 [1] (Lei da Migração),  encaminhando-o ao Superior Tribunal de Justiça para exame e pronunciamento.

Anteriormente, a Itália já havia feito um pedido de extradição de Robinho para que ele respondesse o processo no país, tendo o Brasil negado, sob o argumento que a Constituiçãonão permitia a extradição de brasileiros natos, tendo sugerido à Itália que fizesse novo pedido com base no artigo 6º, I do Tratado de Extradição, entre Brasil e Itália (Decreto nº 863/1993) [2].

Tal informação é relevante, pois demonstra que o Brasil estava ciente do dever internacional de cooperação e já havia se manifestado pela possibilidade da transferência de execução, atendendo ao princípio da lei mais favorável à cooperação e pela aplicabilidade da Lei de Migração brasileira ao caso concreto. Descumprir o que já havia sido informado pela autoridade central brasileira (Ministério da Justiça) à autoridade central italiana seria equivocado e poderia comprometer as relações internacionais entre Brasil e Itália.

O pedido foi recebido pelo STJ e distribuído como Homologação de Decisão Estrangeira nº 7.986 à ministra presidente do STJ, que entendeu estarem presentes todos os elementos para a homologação e que, apesar do STJ ainda não ter se pronunciado por meio de sua Corte Especial acerca da possibilidade de homologação de sentença condenatória para o fim de transferência de execução da pena no Brasil, havia decisão monocrática [3] neste sentido, então, o pedido deveria ser processado.

O julgamento do pedido se deu em 20/03/2024, tendo a Corte Especial, por maioria, deferido a homologação da decisão estrangeira.

Fundamentos da decisão que homologou a sentença condenatória de Robinho

O ministro relator Francisco Falcão, em um voto bastante fundamentado, rebateu os argumentos defensivos e entendeu pela homologação da sentença condenatória.

Robinho

Segundo o ministro, o procedimento de homologação de sentença estrangeira prescinde da análise do mérito, eis que a análise é limitada aos requisitos formais da sentença, previstos nos artigos 963 do CPC, 17 da Lindb e 216-C a 216-F do RISTJ e, tratando-se de transferência de execução de pena, também os requisitos previsos no artigo 100 da Lei nº 13.445/2017 (Lei da Migração) e que todos os requisitos foram atendidos.

O ministro alegou que a transferência de execução penal é um instituto processual de cooperação internacional, previsto em tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, o que resultou na Lei nº 13.445/2017, que contempla de maneira expressa o que já constava nestes tratados.

O pedido é constitucionalmente aceito, uma vez que a Constituição, ao vedar a extradição de brasileiro nato (artigo 5º, LI), não impede o deferimento da transferência de execução a brasileiro nato. Isso ocorre porque não se trata de entregar o indivíduo à jurisdição estrangeira e o cumprimento da pena no próprio país, em tese, resguarda os direitos e garantias do nacional, garantindo que ele cumpra a pena perto da família e seja assessorado por seus defensores.

O entendimento de que a Lei da Migração somente seria aplicável a estrangeiros no Brasil não reflete o posicionamento dos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, até porque impediria a transferência de execução de nacionais que foram condenados no exterior e querem cumprir a pena no Brasil.

O artigo 100 da Lei de Migração buscou possibilitar a transferência de execução da pena imposta no exterior tanto a brasileiros, natos ou naturalizados, quanto a estrangeiros que tiverem residência habitual ou vínculo pessoal no Brasil.

De acordo com o princípio da lei mais benéfica, na impossibilidade de atender integralmente ao pedido de cooperação, como foi o caso da extradição, cabe ao Brasil buscar meios de cumpri-lo ainda que parcialmente e evitar a impunidade de brasileiros natos, assegurando a eficácia da jurisdição penal, como anteriormente foi manifestado expressamente pelo Brasil, com base no artigo 6º, 1 do Tratado de Extradição.

Argumentar que não haveria impunidade, pois o artigo 6, 1 do Tratado de Extradição entre o Brasil e a Itália prevê a instauração de procedimento penal no país requerido em caso de negativa de extradição, é desconhecer que já houve julgamento e condenação pela Itália e, por isso, não é possível haver outro julgamento pelos mesmos fatos, com base no princípio do ne bis in idem, taxativamente mencionado no artigo 100 da Lei 13.445/2017.

O ministro Francisco Falcão também rebate o argumento defensivo de que não haveria tratado internacional que permita a execução, porém, fundamenta que o tratado de assistência mútua entre Brasil e Itália (MLAT de 1989, Decreto nº 862/1993) não impede a transferência de execução e que o Tratado de Extradição entre Brasil e Itália, do mesmo ano, prevê a recusa facultativa no artigo 6, 1 do tratado.

Ainda que exista coerência em seus argumentos, é preciso que se relembre as mudanças nas relações internacionais de 1989 até 2024. Atualmente, é reconhecido pelo Brasil o dever internacional de cooperar, posição expressa com a assinatura dos Tratados de Viena, Palermo e Mérida, bem como pela Lei 13.445/2017. Vale dizer, em respeito ao dever internacional de cooperação, cooperar é a regra e a recusa precisa ser motivada, não sendo possível somente argumentar que inexiste tratado internacional.

Para que o Brasil pudesse recusar o pedido, como fez com o pedido de extradição, seria necessário haver expressamente a proibição da transferência de execução de pena estrangeira, em norma de igual hierarquia dos tratados internacionais assinados pelo Brasil, ou, então, haver violação justificada aos princípios de ordem pública e reserva legal, não podendo arguir genericamente a recusa com base nestes princípios.

Por fim, o ministro entendeu pela retroatividade da Lei nº 13.445/2017, o que, particularmente, entendemos ser o argumento mais frágil. Ainda que a Lei da Migração tenha natureza jurídica de cooperação internacional e, portanto, processual, existem decisões do STJ e STF no sentido da irretroatividade de lei processual penal quando isso represente prejuízo ao réu.

No entanto, considerando o entendimento expresso do Brasil pelo dever internacional de cooperação e que a Lei nº 13.445/2017 somente consolidou este entendimento, a aplicação da Lei nº 13.445/2017 não representaria prejuízo ao réu e pode ser aplicada a fatos pretéritos.

O voto do ministro Francisco Falcão foi acompanhado pelos ministros Humberto Martins, Herman Benjamin, Luís Felipe Salomão, Mauro Campbell Marques, Maria Isabel Galloti, Antônio Carlos Ferreira, Ricardo Villas Bôas Cueva e Sebastião Reis Júnior. Em relação ao cumprimento da pena, a maioria decidiu pelo imediato cumprimento da sentença estrangeira.

Posição contrária: indeferimento do pedido de homologação da sentença estrangeira

Votaram contra o pedido de homologação da sentença estrangeira os ministros Raul Araújo e Benedito Gonçalves.

Para evitar repetições, iremos somente falar dos argumentos que ainda não foram analisamos no decorrer do artigo.

De acordo com o ministro Raul Araújo, em uma consideração prévia interessante, as garantias constitucionais não podem ser mitigadas com base em uma interpretação consequencialista. Ou seja, ainda que se trate de um crime grave envolvendo um brasileiro conhecido no mundo todo, não é possível interpretar a lei, violando garantias constitucionais, para que atenda o interesse público de punição. Sobre este assunto é possível dedicar um artigo inteiro, porém, nos limitaremos a rebater este argumento pelo aclamado dever internacional de cooperar.

Sendo o Brasil signatário de tratados de direitos humanos, entre eles, a Convenção de Belém do Pará de 1994 [4], o Estado brasileiro se comprometeu em contribuir para proteger os direitos da mulher e eliminar as situações de violência contra ela.

A interpretação da lei pela transferência de execução da pena, evitando-se a impunidade, deixa de ser consequencialista e representa o entendimento internacional pela defesa dos direitos humanos, em alusão aos direitos da vítima.

Já o segundo motivo adotado para indeferir o pedido italiano é o artigo 9º da Código de Penal, que trata da eficácia de sentença estrangeira. O referido artigo estabelece que a sentença estrangeira pode ser homologada para efeitos civis e sujeita a medida de segurança.

Ainda que o artigo não proíba expressamente a homologação da sentença para aplicação da sanção criminal, a redação do artigo indica que não seria cabível a homologação de sentença estrangeira para a transferência de execução.

Ocorre que a inclusão do artigo 9º no Código Penal se deu em 1984, quando o Brasil estava em meio a uma ditadura militar e princípios de territorialidade e soberania tinham prevalência em relação aos demais, especialmente, em relação aos direitos humanos.

Não é possível manter um entendimento retrogado como o previsto neste artigo após 40 anos, quando houve uma mudança significativa nas relações internacionais e em respeito aos direitos humanos. O disposto no artigo 9º do Código Penal não reflete a posição atual brasileira sobre a harmonização da legislação aos preceitos internacionais e sua aplicação no ordenamento pátrio, o que pode ser facilmente confirmado pelo Código de Processo Civil de 2015, artigo 26, caput e §2º e artigo 27.

Conclusão

Após uma exaustiva análise do pedido de transferência de execução da pena do ex-jogador Robinho, dando ênfase ao acórdão que homologou o pedido, nossa posição é a de que a decisão do STJ no HDE nº 7986 é acertada e representa o entendimento internacional pelo dever de cooperação entre países.

O Brasil, como signatário de tratados e convenções internacionais de direitos humanos, não pode se utilizar de posicionamentos retrógrados, como o princípio da territorialidade ou soberania nacional, para justificar a recusa em um pedido de cooperação internacional, sobretudo quando a recusa representa a impunidade de um nacional com condenação transitada em julgado.

A transferência de execução não equivale a extradição, assegurando o cumprimento da lei penal e o respeito aos direitos e garantias tanto do condenado quanto da vítima. O Estado brasileiro não pode ser conivente com a violação de direitos humanos, sob pena de violar os tratados e convenção de que é signatário, prejudicando sua posição internacional em relação aos demais países.

O procedimento de transferência de execução da pena é aceito pelo Brasil, signatário de outros tratados e convenções que o preveem e a Lei da Migração somente consolidou este entendimento, não havendo se imiscuir do seu cumprimento com base em leis antigas e retrógradas, que estão superadas pela atual conjuntura nacional e internacional.

Sendo assim, a conclusão é a de que o STJ tomou a decisão que representa o atual dever internacional de cooperar e está em consonância com a valorização dos direitos humanos no âmbito internacional.

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  1. A Lei nº 13.445/2016 entrou em vigor em 25/05/2017, porém, o instituto da transferência de execução já estava previsto nos principais tratados internacionais, como a Convenção de Viena de 1988 contra o Tráfico de Drogas, a Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional (Convenção de Palermo) e a Convenção das Nações Unidas contra a corrupção (Convenção de Mérida), reforçando a sua aceitação como modalidade de cooperação internacional pelos países signatários, entre eles o Brasil, inclusive para os brasileiros natos.
  2. Recusa Facultativa da Extradição 1. Quando a pessoa reclamada, no momento do recebimento do pedido, for nacional do Estado requerido, este não será obrigado a entregá-la. Neste caso, não sendo concedida a extradição, a Parte requerida, a pedido da Parte requerente, submeterá o caso às suas autoridades competentes para eventual instauração de procedimento penal. Para tal finalidade, a Parte requerente deverá fornecer os elementos úteis. A Parte requerida comunicará sem demora o andamento dado à causa e, posteriormente, a decisão final.
  3. 5. HDE nº 5.175, Min. Presidente Humberto Martins, decidido em 19.04.2021
  4. 6. Decreto nº 1973 de 1996.

Autores

  • é advogada criminalista em São Paulo no escritório OCM Advogados, mestre em Direito Econômico pela Universidade Cândido Mendes-RJ com a dissertação Cooperações internacionais para fins penais: Um Estudo sobre a produção e uso de provas” e especialista em Ciências Criminais pela PUC-RS e em Direito Tributário pela LFG, com extensão em compliance pela FGV-RJ.

  • é advogada criminalista. Vice-presidente nacional da Abracrim. Sócia do escritório Chaves Jr & Spengler. Doutoranda em Ciências Criminais pela Uminho, Portugal. Mestre em Ciências Jurídicas pela Univali. Especialista em Direito Penal Empresarial pela Univali. Professora de graduação e pós-graduação em Direito Penal na Univali.

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