Verdade gravada

Uso de câmeras policiais deveria levar ao cancelamento da Súmula 70 do TJ-RJ

Autor

20 de março de 2024, 8h53

A implementação de câmeras nas fardas e viaturas de policiais militares deveria levar ao cancelamento da Súmula 70 do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, pois as imagens devem prevalecer sobre os depoimentos de agentes de segurança. Assim, os testemunhos deles não devem bastar para fundamentar condenações, de acordo com os especialistas no tema ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.

Polícia Militar do Rio está implementando câmeras em uniformes de agentes e viaturas

Aprovada pelo Órgão Especial do TJ-RJ em 2003, a Súmula 70 tem a seguinte redação: “O fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação”. A pedido da Defensoria Pública do Rio, a corte fluminense discute o cancelamento ou a revisão da norma.

Por ordem do Supremo Tribunal Federal (ADPF 635), a Polícia Militar do Rio começou, no início de janeiro, a implementar câmeras nas fardas e nas viaturas. As imagens podem ser acompanhadas em tempo real por outros policiais e ficam armazenadas por um ano. Não é possível desligar as câmeras, nem editar as imagens.

No primeiro mês com as câmeras nas fardas, as mortes por intervenção de policiais caíram 45% no estado do Rio, em comparação com janeiro de 2023, segundo dados divulgados pelo Instituto de Segurança Pública.

O uso dessas câmeras deveria levar ao cancelamento da Súmula 70, segundo Janaina Matida, professora de Direito Probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile) — que defende a revogação da norma mesmo se não houvesse a instalação dos equipamentos, já que não se pode presumir a verdade das declarações de ninguém.

“A crescente implantação das câmeras corporais é útil ao bom policial, que não tem nada a esconder e que entende a necessidade de que o seu relato seja confirmado por outras provas externas e independentes. Além disso, as câmeras corporais protegem os bons policiais de falsas acusações e, na hipótese de que sejam atacados (inclusive fisicamente), servem para reconstruir esses fatos. As câmeras corporais são um mecanismo de auditabilidade da atuação policial, e isso é fundamental para o fortalecimento da democracia brasileira.”

As decisões do STF na ADPF 635 e da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Favela Nova Brasília x Brasil determinam a ampliação e a sofisticação dos mecanismos de controle da atividade policial, segundo Salo de Carvalho, professor de Direito Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Devido a tais sentenças, foram editadas as Leis fluminenses 5.588/2009 e 9.298/2021, que estabeleceram a implantação de sistemas de vídeo e áudio nas viaturas e o monitoramento e registro das ações dos agentes de segurança pública por meio de câmeras corporais. Além disso, destaca o docente, o Superior Tribunal de Justiça vem condicionando a validade dos depoimentos policiais ao complemento de prova audiovisual. “Todas são medidas que demonstram a inadequação da Súmula 70”, diz Salo de Carvalho.

“Infelizmente, a utilização das câmeras corporais não vai levar necessariamente ao cancelamento da Súmula 70”, lamenta a advogada Cristiana Cordeiro, juíza criminal aposentada. Segundo ela, a norma é muito usada por integrantes do Ministério Público e magistrados. “E acredito que seja por comodidade, pois eles preferem acreditar fielmente na palavra dos policiais a buscar outras provas (caso do MP) ou absolver por falta de provas.”

Os policiais raramente narram as ocorrências de forma fiel aos fatos, ressalta Cristiana. E isso nem sempre ocorre por má-fé — os agentes promovem inúmeras prisões no dia a dia, e é difícil lembrar precisamente dos episódios quando são ouvidos nas audiências, muitos meses depois.

Mas é claro que também há os casos de policiais que “mentem deliberadamente, para forjar um flagrante ou ocultar seus próprios atos”, diz a ex-juíza. “Existindo somente a palavra dos policiais, sem outras provas, penso que a solução justa é a absolvição (in dubio pro reo)”.

Contradição com as imagens

Caso os depoimentos dos policiais estejam em contradição com as imagens captadas pelas câmeras em seus uniformes ou viaturas, as gravações é que devem ser consideradas pelos magistrados. Isso porque, em confronto de provas, geralmente a prova técnica apresenta uma maior qualidade de verdade fática para a decisão judicial, de acordo com Salo de Carvalho.

Em caso de contradição entre o testemunho de agentes de segurança e as filmagens, afirma Cristiana Cordeiro, os juízes têm duas opções: extrair as gravações e encaminhá-las ao MP, para apuração do crime de falso testemunho, ou determinar a perícia do vídeo, para que um especialista em imagens possa esclarecer as divergências.

Nenhuma declaração deveria, por si só, ter valor probatório. Assim, se os depoimentos policiais não coincidirem com as imagens, não devem ter credibilidade, segundo Janaina Matida.

“O magistrado deve se manter alerta a dois aspectos. Em primeiro lugar, aos erros honestos que qualquer pessoa pode cometer ao tentar se lembrar de um fato. Qualquer um pode errar, se confundir, esquecer, e policiais não estão livres disso. Em segundo lugar, a eventuais motivos escusos que possam ter animado o oferecimento de versões que não correspondem à verdade dos fatos, como por exemplo o interesse em legitimar atuações abusivas e violadoras dos direitos humanos”, analisa a professora.

Decisões do STJ

O STJ vem consolidando o entendimento de que condenações criminais não podem ser exclusivamente fundamentadas em depoimentos de policiais.

​Por avaliar que houve violação do direito ao silêncio e uma série de injustiças decorrentes da origem social do acusado, a 6ª Turma da corte superior absolveu, em junho de 2023, um jovem que foi condenado por tráfico de drogas apenas com base no depoimento de policiais que fizeram a prisão em flagrante (Recurso Especial 2.037.491).

De acordo com o colegiado, o acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) adotou raciocínio enviesado ao considerar como verdade incontestável a palavra dos policiais que fizeram a abordagem, adotando, assim, interpretação que considerou mentirosa a negativa do acusado em juízo. Essa postura teve seu ponto de partida no silêncio do acusado na fase investigativa.

Relator do caso, o ministro Rogerio Schietti Cruz destacou que o TJ-SP cometeu “injustiça epistêmica” ao atribuir excesso de credibilidade aos depoimentos dos policiais e ao desvalorizar a palavra do réu, um jovem negro e pobre. A injustiça epistêmica ocorre quando um ouvinte, por preconceito, atribui a um falante um nível de credibilidade que não corresponde às evidências de que ele esteja falando a verdade, conforme conceito formulado pela filósofa Miranda Fricker.

“O tribunal incorreu em injustiças epistêmicas de diversos tipos, seja por excesso de credibilidade conferido ao testemunho dos policiais, seja pela injustiça epistêmica cometida contra o réu, ao lhe conferir credibilidade justamente quando menos teve oportunidade de atuar como sujeito de direitos”, afirmou Schietti.

Em outro caso, a 5ª Turma do STJ anulou, em 2022, uma condenação do TJ-RJ baseada apenas em depoimentos de policiais e fundamentada na Súmula 70 (AREsp 1.936.393). Relator da matéria, o ministro Ribeiro Dantas propôs limitar a presunção de validade dessa prova: a palavra do agente público tem fé pública, mas sua validação como prova dependerá da gravação em áudio e vídeo do momento da abordagem para demonstrar qualquer dos elementos do crime.

Em voto-vista, o ministro Joel Ilan Paciornik divergiu. Para ele, não se pode supervalorizar, tampouco desvalorizar, o testemunho do policial. Em vez disso, essa prova deve ter o mesmo valor de qualquer outro testemunho levado aos autos. Ao juiz, caberá valorar o conteúdo junto com os demais elementos dos autos para aí, sim, determinar a importância da prova.

O julgamento na 5ª Turma, porém, terminou sem uma definição clara sobre qual das posições deveria prevalecer. Isso porque ambos os votos tiveram a mesma conclusão no caso concreto: entenderam que o réu por tráfico de drogas deveria ser absolvido. E os demais ministros prometeram reflexão sobre o tema.

Por considerar pouco críveis os relatos de policiais, a 6ª Turma do STJ trancou, em fevereiro, a ação penal contra um homem acusado de tráfico de drogas depois de ter sua residência invadida pela polícia (HC 861.086).

Os ministros entenderam que a experiência e o senso comum tornam difícil acreditar que uma pessoa atende ao chamado de policiais, autoriza a entrada deles em casa, confessa que faz parte de uma facção criminosa e indica em qual cômodo armazenou grande quantidade de drogas.

A 3ª Seção do tribunal, por sua vez, deve analisar neste ano o caso que discute a condenação de réu por furto baseada apenas em confissão extrajudicial informal, obtida pelos policiais no momento da prisão, e em reconhecimento fotográfico que não seguiu as exigências legais (AREsp 2.123.334). O STJ entende que o reconhecimento, nessas condições, não pode servir de base para uma condenação — a particularidade do caso é a confissão extrajudicial informal.

Parecer de professores

Permitir a condenação com base apenas em depoimentos de policiais, como faz a Súmula 70 do TJ-RJ, distorce o processo penal, legitima abusos das forças de segurança e amplia a seletividade do sistema criminal, contribuindo para o encarceramento de negros e pobres.

É o que afirmam Salo de Carvalho e Mariana de Assis Brasil e Weigert, professora de Criminologia do programa de pós-graduação da Universidade Estácio de Sá.

Em parecer encomendado pelo Centro de Estudos Jurídicos da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, eles opinam pelo cancelamento da norma ou, em caso de sua manutenção, que tenha redação modificada, no sentido de que “é desautorizada a condenação baseada exclusivamente em depoimentos de autoridades policiais e seus agentes”.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!