Palavras, apenas

Condenação só com base na palavra de policiais legitima abusos no RJ

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19 de março de 2024, 8h51

Permitir a condenação do réu com base apenas em depoimentos de policiais, como faz a Súmula 70 do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), distorce o processo penal, legitima abusos das forças de segurança e amplia a seletividade do sistema criminal, contribuindo para o encarceramento de negros e pobres.

Depoimentos de policiais do Rio têm bastado para levar a condenações

É o que afirmam Salo de Carvalho, professor de Direito Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e Mariana de Assis Brasil e Weigert, professora de Criminologia do programa de pós-graduação da Universidade Estácio de Sá.

Em parecer encomendado pelo Centro de Estudos Jurídicos da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, eles opinam pelo cancelamento da norma ou, em caso de sua manutenção, por uma mudança na redação, no sentido de que “é desautorizada a condenação baseada exclusivamente em depoimentos de autoridades policiais e seus agentes”.

Aprovada pelo Órgão Especial do TJ-RJ em 2003, a Súmula 70 tem a seguinte redação: “O fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação”.

Carvalho e Mariana apontam que o depoimento policial é “um dos pilares de sustentação das sentenças criminais condenatórias, especialmente nos delitos patrimoniais e nos ilícitos relacionados com o Direito Penal das drogas”.

Presunção de regularidade

A Súmula 70, destacam eles, baseia-se na presunção de regularidade da atividade policial e das suas manifestações nos procedimentos administrativos e judiciais apuratórios de crimes. “Em razão do cargo, os agentes do Estado estariam resguardados pela fé pública e os seus depoimentos somente poderiam ser refutados se apresentadas provas que evidenciassem má-fé.” Porém, na América Latina, a regra é a violação, por ação ou omissão, da legalidade por parte de agentes dos sistemas punitivos, ressaltam os professores.

“Em contextos de baixa densidade democrática, nos quais a atividade policial é marcada por situações não esporádicas de abuso de autoridade pelo uso desmedido da força (excesso de violência e letalidade) — como, infelizmente, é o caso do Rio de Janeiro —, entendemos ser impositivo e recomendável uma postura cética quanto à presunção de veracidade dos depoimentos policiais”, afirmam os docentes, citando que o Supremo Tribunal Federal ordenou na ADPF 635 que o governo do Rio elabore plano de redução da letalidade policial.

Eles mencionam como, em diversos casos, agentes de segurança produzem flagrantes para atingir metas de prisões e apreensões, para fazer retaliações ou proteger certas pessoas. Situações como essas, ponderam Carvalho e Mariana, “não podem ser simplesmente desconsideradas pelo Poder Judiciário quando, no processo penal, os depoimentos policiais são a única prova incriminadora”.

Ao mesmo tempo em que os depoimentos de policiais recebem credibilidade exagerada, os de acusados, especialmente negros e pobres, são desvalorizados, fazendo com que eles sofram “injustiça epistêmica”, avaliam os pareceristas. A injustiça epistêmica ocorre quando um ouvinte, por preconceito, atribui a um falante um nível de credibilidade que não corresponde às evidências de que ele esteja falando a verdade, conforme conceito formulado pela filósofa Miranda Fricker.

“Da forma como foi absorvida pela magistratura fluminense, a Súmula 70 institucionaliza um modelo inquisitorial de prova tarifada ao transformar o depoimento policial (prova testemunhal) em prova plena”, dizem os professores. Eles afirmam que tais testemunhos devem ser examinados com prudência, porque agentes buscam justificar sua atuação profissional.

Além disso, os dois apontam que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça vem se consolidando no sentido de exigir que a palavra do policial seja confirmada por provas independentes.

Perguntas e respostas

Assim, os professores forneceram as seguintes respostas às perguntas da Defensoria:

“a) Do ponto de vista empírico (criminológico), quais os efeitos concretos da aplicação da Súmula 70 no sistema de Justiça Criminal?
Resposta: A presunção de credibilidade dos depoimentos policiais, normatizada pela Súmula 70 do TJERJ, e a sua suficiência para formação do juízo condenatório geram consequências bastante nítidas no fluxo do processo penal (microanálise: endoprocessual): (primeira) desativa os filtros que garantiriam o controle da justa causa para a ação penal; (segunda) transforma a prova testemunhal no epicentro da cognição, em detrimento das provas técnicas e independentes; (terceira) incentiva a omissão do Ministério Público na produção de prova autônoma de qualidade; (quarta) reduz o standard de prova, justificando condenações com baixa qualidade de verdade fática; em consequência, ao elevar o nível de injustiça epistêmica, (quinta) distorce o devido processo penal ao converter a verdade policial em verdade judicial; e, de forma geral, (sexta) objetifica o sujeito em todas as fases da intervenção punitiva (policial e judicial).

Em paralelo, no que tange à atuação das agências do sistema penal (macroanálise: exoprocessual), a consolidação do preceito (primeiro) reforça a legitimidade de ações policiais ilícitas como as de fraude processual (p. ex., destruição ou criação de provas, falsas acusações, confissões sob coação física ou moral dentre outras); (segundo) incapacita os mecanismos de controle do excesso nas atividades de repressão e de investigação; (terceiro) consolida práticas discriminatórias e violentas em procedimentos cotidianos como os de abordagem, prisão em flagrante e busca domiciliar; e (quarto) amplia a seletividade do sistema penal, contribuindo decisivamente para o encarceramento em massa da juventude negra periférica.

b) Do ponto de vista normativo (Direito Penal e Direito Processual Penal), a Súmula 70 do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro respeita os princípios constitucionais e a arquitetura legal do devido processo penal?
Resposta: A premissa normativa que deve orientar o tema é a de que a única presunção constitucionalmente válida é a de inocência, disposta no art. 5º, LVII, da Constituição. O estado de inocência fixa standards de prova elevados para garantir uma verdade fática de qualidade na afirmação da culpabilidade do réu. Diferente das demais áreas do Direito, o juízo condenatório criminal depende de uma precisão para além da dúvida razoável. Nesse sentido, a Súmula 70 do TJERJ (primeiro) viola o art. 5º, LVII, da Constituição, ao rebaixar o standard de prova exigido para condenação e não observar o requisito da suficiência (conjunto probatório robusto); (segundo) viola o art. 5º, LVII, da Constituição, ao permitir a antecipação do juízo de culpabilidade apresentado no relato policial, invertendo, pois, o ônus da prova; (terceiro) confunde a presunção de legalidade do ato no exercício da função com imunidade do agente público (policial); (quarto) eleva ao status de testemunha sujeito funcionalmente interessado na justificação do ato de atribuição de responsabilidade criminal ao acusado; (quinto) nega vigência ao art. 155 do Código de Processo Penal visto ser o depoimento judicial do policial apenas a reapresentação do relato da investigação; (sexto) desrespeita a decisão da Corte IDH no caso Favela Nova Brasília vs Brasil e a decisão do STF na ADPF 635, que determinam a ampliação e a sofisticação dos mecanismos de controle da atividade policial; e (sétimo) inefetiva as Leis 5.588/09 e 9.298/21, do Estado do Rio de Janeiro, que determinam a implantação de sistemas de vídeo e áudio nas viaturas e o monitoramento e registro das ações individuais dos seus agentes da segurança pública através de câmeras corporais.

c) Em caso de desrespeito às diretrizes constitucionais e legais, quais os critérios para revisão da Súmula se mantida sua vigência (não cancelamento)?
Resposta: Em razão de sua desconformidade constitucional, o indicado seria o TJERJ cancelar a Súmula 70. Em caso de manutenção da sua vigência, são relevantes as contribuições no sentido de exigir que os depoimentos policiais sejam corroborados com provas autônomas e independentes, como, p. ex., gravação audiovisual. Todavia, em razão da tipicidade sempre aberta das estruturas normativas, inclusive das Súmulas, e da tendência atual de a interpretação judicial ser de restrição (e não de ampliação, como determina a Constituição) de direitos e garantias, entendemos ser fundamental uma mudança substancial na formação da linguagem dos enunciados. Significa dizer que, desde uma perspectiva garantista, ao contrário de proposições que agreguem elementos para justificar o uso de provas que, por si só, seriam ilegítimas, é recomendada uma construção em sentido negativo, ou seja, que limite ou vede determinados elementos probatórios para condenação. Nessa perspectiva, entendemos que uma revisão da Súmula 70 deva seguir esse método constritivo, de forma a consolidar taxativamente o valor constitucional que se pretende preservar, como, p. ex., uma redação clara no sentido de que “é desautorizada a condenação baseada exclusivamente em depoimentos de autoridades policiais e seus agentes”.

Pedido de cancelamento

A Defensoria Pública do Rio pediu, em 2018, o cancelamento ou, subsidiariamente, a revisão da norma ao Centro de Estudos e Debates do TJ-RJ. O então defensor público-geral do Rio, André Luís Machado de Castro, citou a análise de 1.250 acórdãos publicados entre 2013 e 2016, feita pela Coordenação de Defesa Criminal do órgão. O estudo apontou que magistrados vinham interpretando a Súmula 70 no sentido de presumir a veracidade dos depoimentos de policiais.

O defensor público-geral destacou que a normativa não tinha sido seguida por outros Tribunais de Justiça. E ressaltou que a jurisprudência do STF e do STJ considera que os depoimentos de policiais têm o mesmo valor probatório dos de outras testemunhas.

Da forma como vem sendo aplicada, disse Castro, a Súmula 70 “representa a completa subversão do sistema acusatório” porque “desloca o ônus probatório para a defesa, eximindo a acusação de produzir a prova daquilo que verte na denúncia”.

Em parecer enviado em abril de 2023 ao Centro de Estudos e Debates do TJ-RJ, o juiz Marcos Augusto Ramos Peixoto opinou pelo cancelamento da Súmula 70. Subsidiariamente, sugeriu a seguinte redação, em substituição à atual: “Depoimentos de autoridades policiais e seus agentes autorizam a condenação desde que cotejados a outros meios de provas regularmente coligidos aos autos”.

A sugestão foi seguida na íntegra pelo desembargador Marcelo Castro Anátocles da Silva Ferreira, relator do caso. “A fundamentação de uma sentença condenatória unicamente com base no Enunciado 70 da Súmula deste Tribunal de Justiça viola as garantias processuais estabelecidas na Constituição Federal e apresenta-se como uma desigualdade entre as partes no processo penal, tendo em vista que, diante da supervalorização do depoimento policial, fica quase impossível contradizer o que foi alegado”, avaliou Ferreira.

O juiz Alberto Fraga também se manifestou pelo cancelamento do verbete, mas sugeriu outra redação em caso de sua manutenção: “Depoimentos de autoridades policiais e seus agentes autorizam a condenação desde que cotejados a outros meios de provas regularmente coligidos aos autos ou desde que demonstrada a impossibilidade de sua produção, ocasião em que se torna ainda mais necessária a detida análise dos depoimentos.”

Por outro lado, os juízes Alberto Salomão Júnior e Bruno Mazza opinaram pela manutenção da Súmula 70. Porém, eles destacaram que os depoimentos de policiais não são inquestionáveis e que é preciso garantir aos réus o contraditório e a ampla defesa.

O processo está com o desembargador Carlos Santos Oliveira. Não há previsão de retomada do julgamento.

Clique aqui para ler o parecer dos professores

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