Conflitos internos

Mesmo sem maioria, posição de Alexandre sobre invasão de domicílio já afeta decisões

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7 de março de 2024, 8h52

A posição do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, de considerar válida a invasão de domicílio nos casos em que a Polícia Militar identifica “atitude suspeita” já está servindo de fundamento para decisões de tribunais de segunda instância, a despeito de o STF não ter ainda decidido o mérito da discussão.

TJs estão citando voto de Alexandre para fundamentar decisões sobre validade de provas colhidas em invasão de domicílio

O caso concreto é o do Habeas Corpus de um homem que teria corrido para casa ao avistar uma viatura. Por causa dessa atitude, que foi considerada suspeita, ele teve a casa invadida, acabou preso e denunciado por tráfico de drogas.

A maioria do Plenário do Supremo, puxada por Alexandre, não conheceu do pedido por entender que, quando o caso passou pelo Superior Tribunal de Justiça, não foram analisadas questões envolvendo a validade das provas. Além disso, os magistrados entenderam que conceder a ordem seria “indevida supressão de instância”.

Votaram assim, além de Alexandre, os ministros Cristiano Zanin, Kassio Nunes Marques, Dias Toffoli, André Mendonça e Luiz Fux. O relator da matéria, ministro Edson Fachin, votou por conceder o HC de ofício para declarar a nulidade das provas e trancar a ação penal. Ele foi acompanhado pelos ministros Gilmar Mendes, Cármen Lúcia, Luís Roberto Barroso e Rosa Weber (aposentada).

Apesar de Alexandre não ter conhecido do HC por questões formais, parte significativa do seu voto se dedica a defender a validade da invasão de domicílio nos casos em que a PM identifica “atitude suspeita”. Ou seja, o ministro não votou no mérito, mas fez uma incursão no tema durante sua análise.

Toffoli, Zanin e Fux acompanharam o ministro sem apresentar voto escrito. Nunes Marques também mencionou a questão do mérito, mas não conheceu do HC. Já Mendonça não tratou em nenhum momento de aspectos relacionados à validade de provas ou de eventual violação de domicílio, dedicando-se só a fundamentar o voto no sentido de não ser possível conhecer do pedido, também por questões formais.

O julgamento do caso ocorreu no Plenário Virtual e foi encerrado na última sexta-feira (1º/3). O voto de Alexandre foi dado em 15 de setembro de 2023, quando o caso começou a ser analisado. A conclusão demorou porque houve um pedido de vista e o processo só retornou à pauta em 23 de fevereiro.

TJs citam voto de Alexandre

Alguns Tribunais de Justiça já estão citando o voto de Alexandre para fundamentar decisões envolvendo buscas domiciliares sem ordem judicial e justificadas por alegadas atitudes suspeitas.

Em 24 de outubro — antes, portanto, de o STF concluir a análise do Habeas Corpus —, a 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) citou a posição de Alexandre para manter a validade de provas obtidas durante busca pessoal.

O colegiado mencionou o voto do ministro como se fosse uma “decisão”, mesmo que Alexandre nunca tenha dado decisão individual no HC e o relator do caso seja, na verdade, Edson Fachin.

“Em recente decisão, o ministro do STF Alexandre de Moraes, no HC 169.788, entendeu que a ação do indivíduo de correr, ao avistar policiais, constitui fundada suspeita e autoriza a busca domiciliar. Para o ministro, o ingresso dos agentes de segurança pública no domicílio foi devidamente justificado, tendo em vista que o acusado, ao visualizar a viatura policial, saiu correndo em atitude suspeita para o interior de sua residência”, disse o desembargador Paulo Cesar Vieira de Carvalho em trecho do voto.

“Se a ação de correr de policiais constitui fundada suspeita e legitima a busca domiciliar, o mesmo raciocínio se aplica às buscas pessoais”, concluiu o desembargador (clique aqui para ler a decisão).

Embora o julgamento do Supremo tenha sido concluído apenas na semana passada, a posição de Alexandre também foi mencionada em três decisões da 5ª Câmara de Direito Criminal do TJ de São Paulo (TJ-SP). Elas foram proferidas entre os dias 31 de outubro de 2023 e 29 de fevereiro deste ano.

“Insta ressaltar o voto divergente do ministro Alexandre de Moraes, proferido em 15/09/2023, no Plenário Virtual do Supremo Tribunal Federal, durante o julgamento do Habeas Corpus 169.788 — ainda em trâmite, na medida em que houve pedido de vista pelo Ministro Gilmar Mendes —, em caso que muito se assemelha aos fatos em análise”, afirmou o colegiado do TJ-SP nas três decisões que citam a posição de Alexandre.

Todas elas destacam trecho do voto em que o ministro do Supremo diz que “o ingresso dos agentes de segurança pública no domicílio foi devidamente justificado, tendo em vista que o paciente, ao visualizar a viatura policial, saiu correndo em atitude suspeita para o interior de sua residência” (clique aqui, aqui e aqui para ler as decisões da corte paulista).

A 2ª Câmara do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) se valeu do mesmo trecho para validar provas obtidas durante ingresso em domicílio. Em seu voto, o desembargador José Antonio Cidade Pitrez considerou que “digno de nota é o voto do exmo. ministro Alexandre de Moraes, do STF, quando do julgamento do HC 169.788” (clique aqui para ler a decisão).

Não é precedente

Os especialistas no assunto consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico afirmaram que o caso não pode ser tratado como precedente, já que foi julgado em HC e não houve uma decisão sobre o mérito.

“Não é um precedente. Para isso teria de ter sido analisado o mérito. E se fosse, teria de ser analisado na sua especificidade. O Brasil vai levar ainda muito tempo para aprender o que é um precedente. Talvez o erro esteja em pensar que precedente seja coisa feita para decidir casos futuros. Ledo engano. Precedentes cuidam do passado”, afirma o constitucionalista Lenio Streck.

Rafael Muneratti, integrante da Defensoria Pública de São Paulo, concorda. Ele integra o Grupo de Atuação Estratégica da Defensoria nos Tribunais Superiores (GAETs), que atuou no caso julgado pelo STF como amicus curiae.

“O ministro André Mendonça não analisou o mérito do caso. Assim, não pode ser considerado como acompanhando as razões do ministro Alexandre. O HC não foi reconhecido por questões formais.”

Ele pondera, no entanto, que juízes e tribunais se valerão da interpretação de Alexandre para validar buscas policiais.

“Como a decisão foi em HC, não gera efeito vinculante, mas é certo que os tribunais vão se valer dela, mesmo com essa ressalva de não ter alcançado a maioria de seis votos no mérito. O TJ-SP, particularmente, já tinha usado muito esse entendimento, no sentido de que fugir da viatura é justificativa para a abordagem. Não é novidade, era a regra. Nós é que brigamos contra isso.”

STJ

Nos últimos anos, o Superior Tribunal de Justiça consolidou um entendimento diferente do de Alexandre, e endureceu os critérios para aceitar invasões de domicílio. No leading case sobre o tema, julgado em 2021, o tribunal decidiu que para entrar em uma residência a polícia deve registrar, em vídeo e áudio, a autorização do morador.

Também ficou estabelecido que o fato de o tráfico de drogas ser classificado como crime de natureza permanente nem sempre autoriza a entrada sem mandado no domicílio onde supostamente se encontra a droga, só sendo permitido o ingresso em situações de urgência, quando se concluir que o atraso decorrente da obtenção de mandado judicial pode, objetiva e concretamente, levar a ocultação ou destruição de prova do crime (ou a própria droga).

A análise da validade das razões usadas para invadir a casa de alguém é sempre feita caso a caso e dentro dos limites do processo — na maioria das vezes, em Habeas Corpus, que não permite produção de prova e tem cognição limitada. São centenas os recursos que questionam ações do tipo.

A criminalista Maira Machado Frota Pinheiro afirma que o STJ tem construído entendimentos que buscam reduzir casos de abuso de autoridade, e que decisões em sentido contrário acabam por atrapalhar a formação de precedentes e incentivar práticas discriminatórias.

“Essa lógica de atribuir uma presunção de veracidade à palavra do policial é um incentivo para más condutas. Quando a mais alta corte estabelece precedentes nesse sentido, reduz-se o incentivo que os policiais têm para se comportar de maneira republicana. É uma lógica discriminatória que degrada a presunção de inocência”, disse ela.

“Decisões que atribuem presunção de veracidade à palavra do policial são endereçadas ao povo pobre e à guerra às drogas, porque casa de rico tem porteiro e uma série de barreiras. Se o Supremo definir que o que está valendo é o que os agentes falam, teremos um precedente perigoso.”

Eduardo Newton, da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, também ressalta que o STJ avançou de forma positiva na jurisprudência sobre o ingresso em domicílios e as buscas pessoais.

“É preciso acompanhar com atenção os movimentos decisórios do STF, até mesmo para não esvaziar todos os avanços jurisprudenciais do STJ. O conhecimento exato sobre o que aconteceu no julgamento do Supremo é de suma importância para que não se invoque equivocadamente um precedente que simplesmente não existe.”

HC 169.788

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