Justo Processo

Decisão confirmatória da pronúncia nos tribunais de sobreposição e marco interruptivo da prescrição

Autores

  • Daniel Ribeiro Surdi de Avelar

    é juiz auxiliar da presidência do CNJ mestre e doutorando em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil) e professor de Processo Penal (UTP Emap Ejud-PR).

  • Denis Sampaio

    é defensor público titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal) mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

  • Gina Ribeiro Gonçalves Muniz

    é mestre em Ciência Jurídico Criminais pela Universidade de Coimbra e defensora pública do estado de Pernambuco.

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

2 de março de 2024, 8h00

No artigo desta semana, trataremos da análise da decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça a respeito do marco interruptivo da prescrição.

Spacca

A presente discussão — apreciada no HC nº 826.977/SP [1] — gravita em torno da questão: quando o tribunal a quo confirma a decisão de pronúncia, a subsequente decisão do STJ ou STF que, consequentemente, reafirma o encaminhamento do acusado ao júri, pode ser vista como um novo marco interruptivo da prescrição?

O caso envolveu um acusado denunciado pela prática do crime de homicídio qualificado, por fato ocorrido em data de 1/11/2001.

A pronúncia foi publicada em 25/10/2010 e, em 13/8/2012, o TJ-SP manteve a decisão. O acusado interpôs embargos de declaração, recurso especial – ambos não conhecidos — e agravo, o qual foi dado provimento para conhecer em parte o especial e negar-lhe provimento (19/12/2020).

Ofertados novos declaratórios, eles foram acolhidos, porém, sem atribuir-lhes efeito modificativo (27/4/2021), e a sessão de julgamento perante o júri foi designada para os dias 20 e 21/7/2023.

Nesse contexto, a defesa impetrou Habeas Corpus, postulando o reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva.

Para tanto, aduziu que o último marco interruptivo da prescrição teria ocorrido com a publicação do acórdão do recurso em sentido estrito (13/8/2022) que confirmou a pronúncia — com fundamento nos arts. 109, I e 115 do CP — eis que já ultrapassados 10 anos, levando-se em especial consideração a idade do paciente (74 anos).

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Frente este quadro, a decisão proferida pelo STJ que, em sede de agravo em recurso especial, conheceu parcialmente do recurso, mas negou-lhe provimento, pode ser considerada uma decisão confirmatória da pronúncia para efeitos de interrupção da prescrição (CP, artigo 117, III)? Quando o Código Penal, em seu artigo 117, inciso III, fala em decisão, refere-se a qualquer decisão? Inclusive alcançando o pronunciamento oriundo dos tribunais de sobreposição?

Uma vez que os recursos extraordinários não são obstativos da realização do julgamento perante o Tribunal do Júri, seus julgamentos possuem a força de interromper o curso da prescrição?

Não há dúvida de que a prescrição exerce um papel extremante importante no sistema de justiça, servindo como uma forma de sanção pela inércia do Estado e, ao mesmo tempo, garantindo que o acusado não sofra a eternização da persecução penal sem limites temporais. É neste contexto que se destaca a fala do ministro Fachin:

“A prescrição penal atua como relevante instrumento de garantia de segurança jurídica, na medida em que, salvo exceções constitucionais, não se admite que o acusado fique submetido a um deslinde processual penal que não observe balizas temporais previamente fixadas pelo legislador

Inibe-se, dessa forma, que posturas passivas do poder estatal propiciem o excessivo prolongamento da possibilidade de imposições de consequências jurídico-penais frente a determinados fatos tidos como delituosos.

Vale dizer, no campo penal, os prazos prescricionais funcionam como modo de equilíbrio entre a proteção de direitos fundamentais pela via do Direito Penal e a segurança jurídica que veda a submissão indefinida de pessoas ao exercício do poder estatal [2].”

Prescrição
Porém, antes de adentrarmos na discussão do caso, faz-se necessário relembrar o que a legislação penal dispõe no artigo 117 do Código Penal que a prescrição se interrompe pela decisão confirmatória da pronúncia.

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Para o ministro Ribeiro Dantas (relator do HC n. 826.977/SP), a palavra “decisão” alcança todos os tipos de provimentos judiciais, eis que o legislador não operou qualquer tipo de diferenciação entre os vários tipos de decisões e, tampouco, a fase em que são proferidas.

Com isso, “todas as espécies de pronunciamento judicial, seja decisão monocrática, seja decisão colegiada”, proferidas pelos tribunais estaduais/regionais ou superiores, estariam abraçadas pelo referido dispositivo legal.

Com efeito, diante da generalidade do vocábulo, qualquer decisão que conheça da irresignação recursal já teria a força cogente — diante de seu efeito substitutivo — de interromper a prescrição [3].

Diante disso, para o relator, a decisão proferida no agravo em recurso especial também deveria ser considerada confirmatória da pronúncia, interrompendo a prescrição nos termos do artigo 117, inciso III, do CP.

O ministro Reynaldo Soares da Fonseca inaugurou a divergência, pontuando que as hipóteses listadas no dispositivo legal e que possuem força de interromper a prescrição, “guardam íntima relação com o curso da ação penal em primeira e segunda instâncias, que são as instâncias nas quais, em regra, é formada a culpa”.

O único recurso extraordinário passível de interromper a prescrição — acrescentou o ministro — é aquele que restabelece a pronúncia, quando o acusado é anteriormente despronunciado pelo tribunal a quo. O efeito substitutivo dos recursos extraordinários está atrelado a apenas aspectos de direito, eis que, como regra, a discussão fática encontra limite das cortes locais. E concluiu:

“Assim, não obstante a decisão proferida por esta Corte Superior revelar ‘pleno exercício da jurisdição penal’, tem-se que as decisões proferidas pelos Tribunais Superiores não foram contempladas como causas interruptivas da prescrição, mas apenas as decisões proferidas pelas instâncias ordinárias. Trata-se de opção política-legislativa que, a meu ver, não pode ser desconsiderada por meio de interpretação extensiva em matéria que deve ser interpretada restritivamente.”

Acompanhando a dissidência, o ministro Joel Ilan Paciornik colacionou outros argumentos. O primeiro — em perspectiva interpretativa sistemática — pontuou que a decisão confirmatória da pronúncia alcança apenas o acórdão em segundo grau diante do que dispõem os demais incisos do artigo 117, em especial, o inciso IV (“pela publicação da sentença ou acórdão condenatórios recorríveis”).

Spacca

O segundo, em resgate histórico, relembrou que a ideia da interrupção da prescrição a partir da condenação em segundo grau — seja confirmando a sentença, ou aumentando ou reduzindo a sanção — tinha por desiderato evitar o reconhecimento da prescrição intercorrente a partir da subsequente interposição de recursos extraordinários:

Sendo assim, o legislador, ao pontuar expressamente a importância de se considerar como marco interruptivo o acórdão de segunda instância confirmatório da condenação, justamente para reduzir a chance de ocorrência de prescrição intercorrente com a interposição de recursos de natureza extraordinária, afastou logicamente a interpretação no sentido de que os acórdãos proferidos nesta sede recursal também serviriam a interromper o curso prescricional.

O efeito substitutivo da apelação, próprios dos recursos com ampla devolutividade — matéria de fato e de direito — não alcançam, com a mesma intensidade, os recursos especial e extraordinário, os quais possuem uma missão nomofilácica, isto é, de garantia da correta aplicação da lei federal e da Constituição:

“O escopo é a preservação do direito objetivo, isto é, a autoridade e uniformidade de aplicação das normas, e não o direito subjetivo da parte processual que se sinta prejudicada e interponha tais meios de impugnação [4].”

O terceiro e último argumento guarda relação com uma leitura ontológica do instituto da prescrição, a qual está umbilicalmente ligada com a ideia da inércia do aparato estatal na busca da efetivação do poder-dever punitivo e o perecimento da pretensão punitiva ou da pretensão executória da pena.

A prescrição — esclarece o ministro Alexandre de Moraes — “prende-se à noção de perda do direito de punir do Estado por sua negligência, ineficiência ou incompetência em determinado lapso de tempo” [5].

Em uma análise literal de dispositivos do CPP, a realização do julgamento perante o júri apenas seria possível após a “preclusão” (CPP, artigo 421) da decisão de pronúncia, ou, quando de eventual desaforamento, do “trânsito em julgado” (CPP, artigo 428) da decisão.

Porém, não é essa a orientação que predomina em nossas cortes superiores, pois, diante da ausência de efeito suspensivo dos recursos de natureza extraordinária (CPP, artigo 637), já seria possível a designação da sessão de julgamento após o exaurimento do julgamento dos recursos pelo tribunal estadual ou regional [6].

Por esta interpretação, o julgamento de qualquer recurso extraordinário não edificaria obstáculo para a realização da sessão de julgamento perante o júri, sob o argumento de que a pronúncia — decisão interlocutória mista — não é amparada pelos efeitos da coisa julgada, podendo o Conselho de Sentença decidir em sentido contrário ao que nela restou definido.

Neste diapasão, o acusado tampouco pode ser prejudicado pela demora na designação da data do julgamento, sob pena de restar submetido a uma forma de penalização pela eternização dos lapsos temporais.

A robustecer o entendimento acima, vale pontuar que, no caso concreto julgado no já referido HC nº 826.977/SP, o Ministério Público requereu a realização do júri, mas o magistrado optou por aguardar o desfecho do julgamento recursal. Essa escolha judicial caracterizou, a princípio, inércia estatal.

Ao final, a Turma, por maioria, não conheceu do habeas corpus e concedeu “a ordem” de ofício a fim de reconhecer a prescrição da pretensão punitiva e decretar a extinção da punibilidade do paciente.

 

_____________________________________

[1] STJ, HC n. 826.977/SP, relator Ministro Ribeiro Dantas, relator para acórdão Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 5/12/2023.

[2] Parte do voto proferido no julgamento: STF, HC 176.473/RR, Pleno, Min. Alexandre de Mores, j. 27/01/2020.

[3] O ministro Ribeiro Dantas relembrou que no julgamento (EDcl no HC 170646 PB 2010/0076680-0, Quinta Turma, Decisão:13/08/2019), o habeas corpus julgado em substituição ao recurso próprio também foi considerado causa interruptiva da prescrição.

[4] Badaró, Gustavo Henrique. Manual dos recursos penais, 4ª. ed., São Paulo: Thomson Reuters – Revista dos Tribunais, 2020, pp. 41-42. Edição do Kindle.

[5] STF, HC 176.473/RR, Pleno, Min. Alexandre de Mores, j. 27/01/2020.

[6] Confira-se: STF-AgR no HC n. 118.357/PE, Primeira Turma, Relª. Min. Rosa Weber, DJe 27/10/2017 EDcl no AgRg no AgRg no AREsp n. 1.027.534/BA, Relator Min. Felix Fischer, Quinta Turma, julgado em 14/11/2017.

 

Autores

  • é juiz auxiliar da presidência do CNJ, mestre e doutorando em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil) e professor de Processo Penal (UTP, Emap, Ejud-PR).

  • é defensor público, titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal), mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ, investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa, membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ, membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros e professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

  • é defensora pública do estado de Pernambuco e mestre em Ciência Jurídico Criminais pela Universidade de Coimbra.

  • é advogado criminalista, habilitado para atuar no Tribunal Penal Internacional em Haia, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), coordenador da Pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

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