Jurisprudência Ignorada

Para especialistas, desrespeito a precedentes leva a aumento de casos criminais no STJ

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18 de janeiro de 2024, 8h49

Confirmando uma tendência observada nos últimos anos, os processos criminais representaram a maioria dos casos que chegaram ao Superior Tribunal de Justiça em 2023, segundo dados do Boletim Estatístico da corte. Dos dez assuntos mais presentes, seis dizem respeito ao Direito Penal, com destaque para os casos de tráfico de drogas.

Dados do Anuário da Justiça de 2020 mostram que o crescimento é exponencial desde 2014. De lá para cá, o “novo normal” virou a corte receber cada vez mais Habeas Corpus. Os casos envolvendo tráfico lideram a lista, seguidos de processos sobre homicídio qualificado e roubo majorado.

Processos envolvendo tráfico foram os que mais chegaram ao STJ em 2023

Ministros do STJ, defensores públicos e advogados consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico apontam diversos motivos para o aumento de processos criminais. O principal deles, dizem, é o desrespeito à jurisprudência da corte, em especial pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP).

Os especialistas também afirmam que, por vezes, o Ministério Público apresenta recursos usando teses superadas, o que leva a um grande volume de pedidos da Defensoria Pública e de advogados argumentando violação de precedentes por parte de tribunais de segunda instância e de juízes.

“A ausência de uma cultura de observância de precedentes por um ou outro tribunal ou magistrado contribui para o aumento do número de recursos, porque são decisões que, proferidas nos tribunais, contrariam nossa jurisprudência, o que acaba impelindo o advogado ou defensor público a impetrar o HC, porque sabe que provavelmente terá êxito”, diz Rogerio Schietti, ministro do STJ.

O magistrado cita como exemplos os entendimentos sobre reconhecimento pessoal, que, segundo o tribunal, deve observar o previsto no artigo 226 do Código de Processo Penal, e sobre entrada em domicílio sem autorização comprovada do morador ou fundada suspeita.

De acordo com ele, essas situações continuam ocupando o STJ, a despeito de as duas turmas criminais da corte terem entendimentos semelhantes sobre os temas.

“Tudo isso produz um crescimento muito grande dos HCs. E estamos preocupados, porque a quantidade vem crescendo. Recursos do Ministério Público muitas vezes também são contrários à nossa jurisprudência. A Defensoria Pública, especialmente a de São Paulo, está com um volume muito grande porque as decisões nem sempre seguem a nossa jurisprudência”, afirma Schietti.

O ministro, por fim, destaca que o filtro de relevância, criado para diminuir a quantidade de processos que chegam ao tribunal, não afetará a área criminal, já que os casos têm relevância presumida. Com isso, para ele, a solução mais viável é “desenvolver uma cultura de respeito incondicional às leis e à Constituição” e respeitar a jurisprudência dos tribunais superiores.

Para o ministro Sebastião Reis Júnior, também do STJ, há uma série de fatores que influi na quantidade de casos criminais que chegam ao tribunal, também com destaque para o desrespeito aos precedentes e a insistência em “teses superadas”.

“São vários os fatores que, ao meu ver, contribuem para esse quadro atual: insistência em se decidir de forma contrária aos precedentes firmados pelos tribunais superiores; demora dos tribunais em unificar seu entendimento; mentalidade punitivista que predomina em nossa legislação e no dia a dia do Judiciário, bem como em nossa política criminal; pouco investimento em prevenção e em ressocialização; uso abusivo do HC e de recursos em geral etc.”.

“Para uma melhora, todos esses problemas têm de ser enfrentados. Há a necessidade, portanto, não só de uma mudança de mentalidade como também de um investimento financeiro maior para aprimorar a Justiça como um todo (magistratura, Defensoria, MP e polícias)”, concluiu ele.

Mariana Borgheresi Duarte, coordenadora do Núcleo Especializado de Situação Carcerária (Nesc) da Defensoria Pública de São Paulo, diz que o descumprimento da jurispridência do STJ não ocorre apenas nos processos de tráfico, mas também em casos envolvendo abordagens de pessoas por guardas civis municipais; violação de domicílio por policiais; inaplicabilidade do direito da prisão domiciliar a gestantes e mães com filhos de até 12 anos; e inaplicabilidade do princípio da insignificância, entre outros.

“Situações como essas levam a Defensoria Pública a recorrer ao STJ para reverter decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo. Porém, milhares de pessoas permanecem presas de forma degradante em unidades prisionais superlotadas e insalubres até que isso ocorra.”

A defensora pública destaca como exemplo o Habeas Corpus coletivo 596.603, em que o STJ determinou a obrigatoriedade da fixação de regime aberto nos casos de condenação por tráfico privilegiado, com substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.

Apesar do HC coletivo, diz ela, “há enorme resistência” por parte de juízes a cumprir a decisão, o que leva à manutenção das prisões.

“Diante dessa realidade, a Defensoria Pública tem recorrido constantemente ao STJ para fazer cumprir a determinação já estabelecida coletivamente pela corte, mas descumprida de forma reiterada e sistemática em São Paulo, estado que sozinho possui praticamente um terço da população prisional do país.”

Processos recorrentes
Segundo o levantamento do Boletim Estatístico do STJ, o primeiro lugar da lista de assuntos ficou com o tráfico de drogas: entre janeiro e novembro de 2023, o STJ recebeu 43.117 processos que tratam do tema, mais do que o triplo dos casos de homicídio qualificado, que ocupam a segunda posição do ranking, com 13.670 — quase o mesmo número das ações envolvendo roubo majorado (13.529), que ficaram na terceira colocação.

Na sequência, estão os processos que discutem prisões preventivas (9.141), contratos bancários (8.147) e estupro de vulnerável (6.516). Completam a lista dos assuntos mais frequentes: ICMS (5.933), furto qualificado (5.798), temas bancários (5.655) e execução fiscal (5.547).

Nos últimos cinco anos, há certa continuidade nos temas mais comuns na classificação dos processos que chegam ao tribunal.

Os dados divulgados pelo Boletim Estatístico também mostram que, ao longo do ano passado, o Ministério Público de São Paulo (MP-SP) foi o maior litigante no STJ, aparecendo em 55.514 processos. A lista traz, na sequência, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), com 22.203; o Ministério Público de Minas Gerais (MP-MG), com 18.213; e a Fazenda Nacional, com 16.010 processos.

Para o constitucionalista e colunista da ConJur Lenio Streck, essa maioria de processos criminais mostra que “ao contrário do que diz o STJ e determinados professores, não temos uma cultura de precedentes”.

“Há poucos dias demonstrei na ConJur como o mesmo gabinete de uma ministra do STJ divergiu em casos similares em um espaço de 20 dias. Juízes e tribunais não obedecem precedentes e isso multiplica a demanda no STJ. De novo: porque não temos cultura de precedentes. Também não podemos esquecer que o excesso de casos criminais que aportam no STJ não deixa de ser reflexo de um problema que assolou o Brasil nos últimos 15 anos: o recrudescimento da jurisprudência para combater uma pretensa impunidade.”

Para ele, houve “algum avanço” com decisões garantistas proferidas em especial pela 6ª Turma do STJ. Ainda assim, prossegue, há o “sentimento de combate à impunidade enraizada nos tribunais de origem e, fundamentalmente, no juiz de primeiro grau”, o que faz, por vezes, o Judiciário virar uma “máquina de moer gente”.

“Como um recurso especial ou extraordinário chegará às instâncias superiores se existem álibis retóricos que servem para justificar qualquer decisão, como a Súmula 7, no STJ, e a 279, no STF? Evidentemente que essa ‘retranca’ instrumentalista estimula a impetração de HCs quando há uma cegueira constante diante de teses consolidadas dos tribunais superiores. Em resumo, é um problema que, de há muito, denuncio. Não é só por um motivo, mas, sim, por uma junção de fatores.”

Para a advogada Maria Jamile José, mestre em Direito Processual Penal pela USP, nos últimos anos se tornou cada vez mais comum ver matérias criminais liderando a lista de processos do STJ, em especial temas envolvendo tráfico de drogas, dosimetria da pena, execução penal e regime de pena. Outro padrão, destaca ela, é o fato de grande parte dos casos vir de São Paulo.

“Outro padrão que se repete é a origem geográfica dos recursos, que é o Tribunal de Justiça de São Paulo. É sintomático que um dos maiores problemas que o STJ enfrenta atualmente é a não observância da jurisprudência já fixada pelo próprio STJ, que encontra resistência dos tribunais estaduais, especialmente em temas específicos, como tráfico.”

Para a advogada, assim como para os ministros do STJ, para mudar o cenário, “uma modificação necessária e urgente é a real observância da jurisprudência em temas recorrentes e sensíveis, que estão de fato inundando o tribunal”.

Precedente em HC
Com o aumento de casos criminais, o uso de HCs para estabelecer precedentes na seara penal é uma tendência que, ao que tudo indica, veio para ficar.

O tema é espinhoso. Há quem diga que esse é um bom caminho, mas também há quem considere o HC um meio impróprio para a consolidação de precedentes qualificados.

Segundo os ministros e especialistas consultados pela ConJur, a fixação de teses em HC e em recursos em HC se deve principalmente a dois fatores: a tramitação prioritária, em especial quando envolve pessoas presas; e as limitações para interposição e processamento de recursos especiais e extraordinários.

O problema da tese em Habeas Corpus é que o mecanismo tem efeitos limitados. Não é possível produzir provas, nem entrar no mérito da ação penal atacada. O acórdão não pode ser usado como paradigma para a interposição de recurso especial (no STJ) ou extraordinário (no STF), nem servir como base para reclamações.

Em março de 2023, a ConJur publicou reportagem sobre o tema. Na ocasião, o ministro Sebastião Reis Júnior disse que o Direito Penal já é muito mais debatido em HCs do que em recursos extraordinários. Ele citou como exemplos os julgamentos que decidiram que não é crime o plantio de maconha para fins medicinais e que o reconhecimento fotográfico não serve para embasar condenações, além do que determinou restrições às buscas domiciliares a partir de denúncias anônimas.

“Nos últimos anos, o número de HCs tem crescido. E com as dificuldades de conhecimento e processamento dos REsps, a discussão penal e processual se concentra predominantemente nos HCs”, afirmou à época.

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