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Ideia de dar competência cível à JMU pode afetar punições disciplinares de militares

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21 de novembro de 2023, 8h51

A Justiça Militar da União julga crimes cometidos por membros das Forças Armadas, e a ideia de ampliar sua competência para casos cíveis foi recentemente defendida pelo procurador-geral de Justiça Militar, Antônio Pereira Duarte, em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico. Uma corrente de especialistas no assunto acredita que isso melhoraria o serviço prestado pelo Poder Judiciário, mas outros advogados da área entendem que a mudança validaria punições disciplinares aplicadas contra militares em processos administrativos feitos sem garantias mínimas de defesa.

STM
STM corresponde ao segundo grau de jurisdição da JMU

A discussão sobre ações cíveis na Justiça Militar da União não é nova. Ela existe desde a Emenda Constitucional 45/2004, que estabeleceu a competência da Justiça Militar estadual para julgar “ações judiciais contra atos disciplinares militares”, mas deixou de fora a JMU. Até então, a JME tinha poucos processos.

Ou seja, a Justiça Militar estadual, que julga policiais e bombeiros militares, tem competência cível, e a maioria de seus casos diz respeito a problemas surgidos ao longo de processos administrativos disciplinares (PADs) e sindicâncias. Os alvos dessas investigações internas das corporações podem recorrer ao Judiciário para apontar irregularidades nos procedimentos.

Já no caso das Forças Armadas, as ações com alegações de nulidades em processos administrativos vão para a Justiça Federal comum. Há diversos exemplos de decisões que anulam atos de comandantes das organizações militares devido a violação do contraditório e da ampla defesa, negativa de acesso aos autos, impossibilidade de produção de provas etc.

Perpetuando irregularidades
A advogada Alessandra Wanderley, presidente da Comissão de Direito Militar da seccional do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ), tem opinião contrária à ideia de atribuir competência cível à JMU. Ela vê pontos negativos para a advocacia que atua na área e para os militares que respondem a processos administrativos.

Segundo a advogada, uma mudança como essa poderia “reforçar a cultura equivocada que muitas vezes é adotada diante de procedimentos administrativos a partir de regulamentos desatualizados e em desobediência aos princípios constitucionais”.

Alessandra explica que, nos processos administrativos, são aplicadas regras regulamentares com prazos não previstos em lei. Há “uma grande necessidade de atualização dos responsáveis pela condução” desses procedimentos, já que muitos atos violam o direito de defesa do militar e resultam até em abuso de autoridade, segundo ela.

Em outras palavras, os militares muitas vezes respondem a tais processos sem garantias mínimas. Na opinião da advogada, eles teriam maior dificuldade na JMU “para anular decisões proferidas pelos comandantes das organizações militares”.

Ela cita um caso em que a organização militar disse que só forneceria cópia dos autos de uma sindicância após a sua conclusão. Mais tarde, uma Turma Recursal da Justiça Federal do Rio de Janeiro considerou que houve impedimento ao livre exercício da advocacia.

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Ditadura militar, Exército, totalitarismo
Militares costumam ser punidos em procedimentos administrativos sem garantias

Em outra situação, ocorrida durante a crise da Covid-19, uma militar, mãe de duas crianças — uma em idade escolar e outra recém-nascida —, foi impedida de sair do quartel por 15 dias. O plantão da Justiça Federal concedeu liminar e determinou a libertação da mulher. Na ocasião, foi levado em conta que a defesa apresentada no processo administrativo não constou da ata de audiência.

Benefícios da Justiça comum
É por isso que Alessandra destaca a importância da Justiça Federal na lógica atual. Segundo ela, esse ramo do Judiciário “tem funcionado como grande braço no alcance da Justiça nos procedimentos e processos administrativos militares dentro das Forças Armadas, diante de soluções totalmente ilegais e em desobediências às questões constitucionais”.

Quando a questão administrativa tem algum desdobramento criminal, o caso é levado à JMU, mas o tratamento não é o mesmo. De acordo com a advogada, no Superior Tribunal Militar (segunda instância da JMU) há “uma tendência maior em manter as decisões proferidas dentro das organizações militares”. O STM é composto, em sua maioria, por militares.

Ela ressalta que a Justiça Federal não invade o mérito das questões administrativas, “sem que a especificidade da matéria militar possa representar diferenças relevantes nesse contexto”.

Há um tabu nas Forças Armadas quanto a militares com doenças psiquiátricas. Em muitos casos, mesmo se o laudo médico recomenda o afastamento das atividades, isso é negado pela organização militar. “Hoje, todos os casos são decididos na Justiça Federal”, explica Alessandra. Isso “evita o retorno de militares inaptos aos serviço, o que colocaria em risco a sua vida e as de terceiros”.

A advogada menciona o caso de um militar que, apesar do diagnóstico de episódio depressivo grave e transtorno de ansiedade generalizada, foi considerado apto para o serviço. O juízo federal de plantão considerou que houve violação do direito à saúde, por isso determinou o restabelecimento da licença médica de 90 dias, com afastamento imediato.

Conhecimento de causa e celeridade
Na entrevista à ConJur, ao sugerir a ampliação da competência da JMU, Antônio Pereira Duarte mencionou a “elevada especialização” desse órgão. Para ele, “não faz sentido e nem é racionalmente sustentável que, existindo uma Justiça especializada em temas militares, a ela não se submetam os conflitos não criminais que venham a surgir no cotidiano da vida militar”.

Já Alessandra alega que os magistrados federais têm “expertise com as demandas cíveis militares das Forças Armadas” e “amplo conhecimento das matérias”, pois esse ramo do Judiciário tem uma vasta jurisprudência sobre diversos temas da área militar (não só punições administrativas, mas também promoções e pensões, entre outros). No Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2, com sede no Rio), por exemplo, há ainda juízes e desembargadores que já foram militares.

Nos procedimentos administrativos, as próprias Forças Armadas e suas assessorias jurídicas elaboram pareceres e dão aval para negativas de acesso aos autos ou de produção de provas. Na visão da advogada, isso comprova que “o fato de estar vinculado à área militar não pode ser lido como sinônimo de que alcançará uma solução justa ou legal”.

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TRF-2 costuma atender às demandas cíveis de militares com celeridade e conhecimento

O PGJM também argumentou que os temas militares hoje sujeitos à Justiça Federal sobrecarregam os juízes federais e os TRFs. Assim, transferi-los para a JMU, “que tem primado pela celeridade de sua atuação”, geraria “enorme ganho e economia para a República”.

Por outro lado, Alessandra destaca que, mesmo com um grande acervo, a Justiça Federal também garante rapidez nos julgamentos, principalmente em liminares.

Paralelo com os estados
O advogado Lucas Silvestre, que atua com Direito Militar, também se opõe à ideia revivida por Duarte. Ele se baseia no exemplo da JME de São Paulo, que tem a tendência de homologar “decisões administrativas que jamais o seriam nas Varas da Fazenda paulista”.

Segundo Silvestre, o Tribunal de Justiça Militar de São Paulo (segunda instância da JME paulista) é um exemplo de como a interpretação das definições de hierarquia e disciplina pode ser “uma carta branca para decisionismos”.

Ele explica que a Justiça Militar costuma limitar tais conceitos às ideias de obediência e escalonamento de autoridades administrativas. Assim, os militares são considerados detentores da ordem, enquanto os paisanos (não militares) representam a “desordem civil”.

“Ao não aprofundar-se na questão, a comunidade do Direito Militar costuma dar espaço ou mesmo emprestar certas nuances sectárias da cultura organizacional militar”, diz Silvestre. “Conhecer do organismo militar vai muito além de entender que a caserna é mero local da autoridade incontestável e da obediência incondicional”.

Para ele, a advocacia que atua nesse ramo “pouco tem a discutir quando a jurisprudência militar se refugia num entendimento sobre a coisa militar como zona autárquica” — isto é, como “mera ‘coisa de soldado’, alheia à cidadania civil”.

Por isso, Silvestre se preocupa com a ideia de “expandir a competência da JMU ao largo de um adequado senso de propósito alinhado com o desiderato político-estratégico do Estado”. 

Ou seja, “uma ampliação da competência da JMU que não compreenda uma apreciação dos atos administrativos das autoridades militares com base nos preceitos democráticos do devido processo legal será mera ampliação dos poderes da autoridade administrativa, o que é absolutamente prescindível”, argumentou o advogado.

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JME é responsável por promover os julgamentos de policiais e bombeiros militares

Especialização bem-vinda
O advogado Fernando Fabiani Capano, que atua na área e já foi presidente da Comissão de Direito Militar da OAB-SP, conta que tem enfrentado dificuldade para anular decisões administrativas na JME paulista. Segundo ele, a lógica de hierarquia e disciplina é muito forte e há a presunção de que a administração militar sempre está correta.

Mesmo assim, Capano considera que seria “salutar” levar a competência cível para a JMU: “Independentemente se os resultados para a advocacia e para a tutela dos interesses dos clientes são melhores ou piores, fato é que a Justiça Militar entrega uma melhor jurisdição”.

Isso porque, de acordo com ele, a Justiça Militar “consegue agregar uma leitura que os outros ramos do Judiciário não têm” — ou seja, conta com um olhar específico para os detalhes do universo militar.

“Para se julgar certas lides militares, exige-se um grau de especialização, especialmente em relação à questão dos valores militares”, continua. “É mais complexo explicar como funciona esse tipo de expediente no ambiente de um quartel para um juiz que nunca esteve em um”.

Na visão do advogado, a lógica é a mesma que justifica a existência da Justiça Eleitoral e da Justiça do Trabalho: “As lides são melhor solucionadas nessas Justiças especializadas porque elas, trabalhando apenas e tão somente essas competências, conseguem prestar melhor jurisdição”.

Leonardo Dickinson, advogado que atua com Direito Militar, também defende a expansão da atuação da JMU para questões cíveis: “Entendo que agregar as competências à Justiça Militar da União, tornando-a ainda mais especializada, mantém a harmonia e a coerência do Poder Judiciário brasileiro, que, a cada ato, incrementa a prestação jurisdicional e aproxima do ideário de Justiça”.

Ele ainda ressalta que essa medida traria “mais eficiência na proporção gasto público/prestação jurisdicional”. Dickinson lembra que opositores à existência da JMU costumam questionar sua demanda atual, por considerá-la incompatível com suas despesas.

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