Embargos Culturais

Os pais fundadores do Direito Tributário brasileiro (2): Silva Maia

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP e advogado consultor e parecerista em Brasília ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

24 de março de 2024, 8h00

José Antonio da Silva Maia (1789-1853) nasceu no Porto, em Portugal, e graduou-se pela Faculdade de Direito de Coimbra. Atuou como político e jurista no Brasil. Representou Goiás no Senado. Foi membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Exerceu a magistratura em Minas Gerais e também o cargo de procurador da Fazenda na corte. Foi ministro da Justiça e da Fazenda na regência de Araújo Lima.

Protagonizou importante papel no modelo jurídico brasileiro no contexto da Constituição de 1824 e dos arranjos políticos e institucionais do Império. A Constituição de 1824 recebeu forte influência da Constituição francesa de 1891. No nosso modelo, o imperador detinha direito de inviolabilidade, sua pessoa era constitucionalmente indicada como sagrada, e ele não estava sujeito a responsabilidade alguma. Era titulado de Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brazil, devendo ser tratado por Majestade Imperial.

Pertenceu ao Conselho de Estado de dom Pedro 2º, quando opinou intensamente sobre vários temas de Direito. No Conselho de Estado, Silva Maia respondeu consultas e avançou propostas sobre assuntos centrais, a exemplo da discussão em torno da Lei de Terras. Um dos problemas principais da época consistia na definição de terras devolutas.

Compêndio

Deixou extensa bibliografia, nomeadamente, uma Memória da Origem, Progresso e Decadência do Quinto do Ouro na Província de Minas Gerais, um estudo sobre a Lei de 4 de outubro de 1831, que cuidou da organização do Tesouro Público Nacional e das Tesourarias das Províncias, um guia para a atuação dos Procuradores da Coroa e, principalmente, um Compêndio de Direito Financeiro.

Publicou o Compêndio, em 1841, reunindo e resumindo, didaticamente, temas de Direito Financeiro, Tributário, Processual Tributário e Administrativo. O livro, tal como um código, é dividido em títulos, capítulos e parágrafos. Silva Maia iniciou seu compêndio com as linhas gerais do Direito Financeiro (Título I). Indicou objeto de estudo, fontes de receita e motivos de despesa. Em seguida, tratou da administração da Fazenda Nacional, então de responsabilidade prioritária da Assembleia Geral Legislativa, com colaboração do Poder Executivo.

Spacca

Esforçou-se para identificar, nos planos financeiro e tributário, o modo como os poderes se relacionavam. Silva Maia explicou a arrecadação, a distribuição e a fiscalização das receitas públicas. Em seguida, tratou das rendas públicas. Com base na lei do orçamento, elencou os vários tributos então cobrados. No mesmo título, Silva Maia descreveu e elencou os bens públicos, então denominados de bens nacionais.

No Título II tratou da administração e fiscalização das rendas públicas, e dos respectivos funcionários, com as respectivas competências. Cuidou, inclusive, da competência e das atividades dos ministros da Fazenda. Orçamento e balanços são tratados nesse título. Nessa parte do livro Silva Maia explicou o Tribunal do Tesouro, indicando as funções e responsabilidades de seu presidente, do inspetor geral, do contador-geral e do procurador-fiscal. Os presidentes de província contam com capítulo próprio, no qual Silva Maia descreveu a função dos chefes do Executivo na fiscalização das receitas públicas.

Em seguida, Título III, Silva Maia cuidou da arrecadação das rendas públicas, que dividiu em ordinárias e extraordinárias. Silva Maia elencou, nesse passo, todas as exações que então se cobravam. Indicou fontes de receita hoje esquecidas, a exemplo das Joias do Cruzeiro, que consistiam na obrigação de que os agraciados com a Imperial Ordem do Cruzeiro tinham para com uma Caixa de Piedade, quando lhes expedisse o diploma honorífico, cujo valor era voluntariamente fixado pelo próprio agraciado.

Silva Maia também compendiou todas as rendas extraordinárias do Império, tratando também de bens de defuntos e ausentes e do ágio de moedas e barras. Há nesse passo um extenso detalhamento das alfândegas, com indicação de todos os cargos que nessa repartição havia. Explicou a mesa de rendas, uma das mais importantes entre as repartições alfandegárias, que funcionavam nos portos.

No Título IV explicou o funcionamento das receitas públicas gerais. Sintetizou conceitos de dívida pública, que dividiu em interna e externa, explicando as respectivas inscrições e liquidações. As apólices da dívida pública foram tratadas nesse fragmento do livro. No Título V resumiu as linhas gerais da contabilidade pública, especialmente quanto aos passos de escrituração e de tomada de contas.

A responsabilidade (e respectivas penas) dos agentes públicos foi também estudada nesse título. Concussão, peita, suborno e prevaricação são tipos de feição penal que Silva Maia explicou, no contexto do Direito Criminal de seu tempo.

Direito Financeiro e as contribuições

Silva Maia definiu Direito Financeiro como “aquele que compreende as regras por que se deve dirigir a Administração Geral da Fazenda Nacional, no que é relativo à receita e despesa do Império, à arrecadação, fiscalização e distribuição das rendas públicas, ao desempenho das atribuições de todos os encarregados da guarda e aplicação dos dinheiros nacionais; à tomada de suas contas, e à maneira de lhes fazer efetiva a responsabilidade”. Nessa acepção há elementos que contemporaneamente são compreendidos por vários campos do Direito, até mesmo pelo Direito Administrativo; é o caso da tomada de contas e de responsabilização do servidor.

Segundo Silva Maia, a receita era composta, basicamente, do produto das contribuições legalmente estabelecidas. Nessa premissa, dois pontos chamam a atenção do intérprete contemporâneo. Já vigia o princípio da legalidade, dado que as exações decorreriam necessariamente de previsão legal. Semanticamente, não havia distinções entre tributos, impostos, taxas, contribuições. Silva Maia utilizava contribuições como gênero, cujas espécies identificou ao longo do livro, com fundamento na lei do orçamento então vigente. O rendimento dos bens nacionais também compunha o elenco das fontes de receita. Silva Maia reconheceu que a receita também era composta do produto de multas, emolumentos e prêmios.

Apetite arrecadatório do Estado e o patrimonialismo

A arrecadação das rendas públicas era inspecionada pelo Tribunal do Tesouro Público, com inspeção especial dos inspetores de Fazenda das províncias. A arrecadação era feita à boca do cofre, quando o contribuinte se dirigia à repartição para recolher o tributo devido ou pelos contratantes, na hipótese de prévia venda da dívida fiscal, circunstância que lembra os modelos contemporâneos de securitização.

As várias receitas públicas, segundo Silva Maia, poderiam ser pagas em diferentes lugares. Não havia um ponto pré-determinado no qual todas as exações e débitos para com o Estado eram recolhidos. Por exemplo, a Casa da Moeda, no Rio de Janeiro, arrecadava os tributos incidente sobre moedas de ouro e prata. Nos Correios se pagavam taxas de porte de cartas, situação que ainda persiste, ainda que contemos com alguma variação de pormenor. Em Londres, na Agência do Império, pagava-se o devido pelas apólices de empréstimos estrangeiros.

Com base nas leis do orçamento Silva Maia elencou as fontes de receita do Governo Central. Entre elas, direitos de importação (15%), impostos sobre bebidas alcóolicas, sobre o chá, sobre a pólvora, direitos de ancoragem, de exportação, impostos sobre o couro (15%), taxas de correio geral, contribuições para o montepio, dízimas de chancelaria, emolumentos de certidões, foros e laudêmios, impostos sobre a mineração do ouro e outros metais, impostos de selo, sisas de bens de raiz, impostos sobre escravos, bens de defuntos e ausentes, joias do cruzeiro.

Silva Maia inventariou um modelo arrecadatório totalmente estranho ao estudioso contemporâneo. Porém, como regra, tratava-se de um modelo com apetite arrecadatório que instrumentalizou um estado patrimonialista, cheio de privilégios. É onde encontramos um dos pilares culturais de uma sociedade desigual, marcada por extremos de opulência e de miséria absolutas.

Autores

  • é advogado em Brasília (Hage e Navarro), livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP, professor titular do mestrado e doutorado do UniCeub (Brasília) e professor visitante (Boston, Nova Délhi, Berkeley, Frankfurt, Málaga).

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