Opinião

O Maurice Lauré brasileiro

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6 de maio de 2024, 7h05

O francês Maurice Lauré é considerado o pai do IVA por ter formulado e implementado o imposto pela primeira vez na França, há exatamente 70 anos, na época em que era o diretor-adjunto da Direção Geral de Impostos naquele país. Em sua biografia escrita por Denys Brunel [1], o ex-secretário-geral na OCDE Ángel Gurría o descreve como uma pessoa de “inteligência superior”, e Raymond Aron, renomado sociólogo e historiador francês, o qualifica como “um dos homens mais inteligentes da França”.

Maurice Lauré (1917-2001)

Maurice Lauré publicou um livro em 1952 [2] propondo a adoção de um Imposto sobre o Valor Adicionado: tratava-se de um sistema simples, em que as empresas deveriam preencher uma guia mensal declarando, de um lado, as faturas pagas aos fornecedores com o IVA correspondente e, de outro, as faturas emitidas aos clientes, também com o IVA correspondente. A diferença entre o IVA coletado dos clientes e o pago aos fornecedores corresponderia ao montante de imposto que a empresa deveria recolher ao Estado.

A partir de então, Lauré iniciou uma verdadeira cruzada que durou cerca de 14 anos até a total implementação do modelo na França. Conforme sua biografia, “quatorze anos durante os quais Maurice Lauré, um alto funcionário público tão brilhante quanto determinado, lutou ferozmente contra a classe política e os preconceitos econômicos do seu tempo”. Por detrás da conhecida meticulosidade de Lauré e a importância que dava aos pequenos detalhes, “o que, à distância, poderia parecer rispidez, era na realidade um grande gestor, tão hábil quanto modesto. Apesar do sucesso, Lauré raramente falava da sua invenção e nunca contava vantagem”.

Lauré igualmente participou de inúmeras conferências relatando os méritos do modelo, “mas os vários públicos a quem se dirigiu mostraram, em princípio, quase todos, relutâncias”. A começar pelos empresários que, vendo a grande mudança que o surgimento do novo imposto poderia causar, ficaram cautelosos e “temendo que a noiva não fosse tão bonita quanto a descrição”. Por outro lado, Lauré teve também que convencer a administração tributária, que se mostrou igualmente relutante, pois “considerou que a dedução do imposto pago sobre os investimentos constituía uma vantagem muito grande a favor das empresas”.

Por fim, quanto às vantagens do novo imposto, “embora bem apresentadas por Lauré, não convenceram a classe política, que desconfiava de novas ideias, especialmente quando estas pretendiam derrubar todo um sistema, como foi o caso do IVA”. Entretanto, apesar das contrariedades que enfrentou, Lauré não desistiu do seu propósito e, seguro de si, foi pouco a pouco convencendo o governo e a classe política da importância da sua proposta para o país.

Sucesso mundial

Antes da reforma, a França contava com três principais impostos em vigor: um imposto cumulativo sobre o faturamento que tributava a etapa da produção, um imposto sobre a prestação de serviços e um imposto local sobre vendas a varejo. Lauré identificava quatro problemas principais no sistema francês: “sobre-tributação sistemática dos fatores de produção, grande complexidade de aplicação (do sistema) e litígios frequentes, presença de desonerações abusivas, desvantagens da cumulatividade” problemas estes que prejudicavam as exportações e os investimentos e travavam o desenvolvimento econômico do país.

O modelo de IVA criado por Lauré propunha resolver todos esses problemas e foi implementado no país em 10 de abril de 1954. O IVA francês abrangeu inicialmente somente uma parte das empresas. Foi somente em 6 de janeiro de 1966, por sugestão do então ministro da Economia e Finanças, que o IVA francês passou então a abranger o comércio a varejo, o setor de serviços, os artesãos e os agricultores. Desnecessário dizer que o modelo IVA se espalhou pelo mundo e foi um sucesso mundial, hoje presente em 174 países.

Jeito francês

Quando li pela primeira vez a bibliografia de Lauré, há alguns anos, já me veio à cabeça a figura de um brasileiro que também dedicou boa parte de sua vida à reforma tributária: Bernard Appy, atual secretário extraordinário da reforma tributária. Não só pelas suas características pessoais, já que, assim como Lauré, Appy é meticuloso e incisivo, mas sobretudo porque também dotado de uma capacidade intelectual superior, beirando, sem qualquer exagero, a genialidade.

Appy tem algo que considero um “jeito francês”: aquele jeito direto e objetivo, além de um rigor intelectual próprio da cultura francesa, o que me parece ser uma herança familiar, já que seu pai era francês. Apesar desse rigor e seriedade aparentes, quem teve a oportunidade de conhecê-lo sabe que Appy é uma pessoa solidária, humana e descontraída, sempre tendo uma situação engraçada ou interessante para contar.

Desprendimento e modéstia

O brasileiro Bernardo Appy

Quando era diretor do Centro de Cidadania Fiscal, think tank que elaborou a proposta original da PEC 45/19, Appy costumava ser aguerrido na defesa do modelo e direto quanto às críticas, já que sempre indicava prontamente um argumento errado e nunca deixava os opositores da reforma sem a devida resposta.

Eu mesma já fui “vítima” de suas respostas quando Appy publicou um artigo [3] criticando expressamente um dos meus artigos de defesa ao IVA Dual, no exato dia do meu aniversário. Essa postura levou alguns a julgá-lo indevidamente como “intransigente” e a criar certa rejeição ao seu nome durante o governo anterior. Foi uma época — maio de 2021 — em que a Comissão Mista da Reforma Tributária havia sido repentinamente dissolvida na Câmara e que a PEC 45/19 foi totalmente deixada de lado [4].

O pessimismo quanto ao futuro da reforma se abateu sobre todos. Qualquer iniciativa ou participação do Appy ou do CCiF não eram bem-vistas por integrantes daquele governo. Neste período, as discussões da reforma avançaram por meio da PEC 110/19, na qual o IVA Dual foi incorporado na proposta. Mesmo nos bastidores, Appy colaborou muitíssimo para a continuidade das discussões e para o aprimoramento do modelo durante todo esse período, o que somente demonstra o seu desprendimento, modéstia e vontade sincera em contribuir para o país mesmo sem aparecer na linha de frente das discussões.

Essas características ficaram ainda mais aparentes quando Appy foi nomeado secretário extraordinário da reforma tributária. Do ponto de vista técnico, ele teve a abertura e humildade intelectual para entender que algumas das propostas que desenvolveu e sempre defendeu poderiam não ser viáveis politicamente. Primeiramente, percebeu e aceitou que o IVA único do texto original da PEC 45/19 não era tão consensual quanto o modelo de IVA Dual da PEC 110/19.

Também já não insistia mais no modelo ideal de IVA, com alíquota única e sem qualquer benefício ou regimes diferenciados, já que as condições políticas e setoriais não iriam permitir a aprovação da reforma nesses moldes. O que para alguns poderia ser visto como derrotas – o distanciamento daquele modelo ideal proposto e defendido com unhas e dentes por vários anos – para Appy, como mencionou em algumas entrevistas – tratava-se do custo político para que tivéssemos a reforma aprovada [5].

No campo político, Appy se colocou modestamente na postura de coadjuvante: o ator principal da reforma era o Congresso e ele e sua equipe somente prestavam assessoramento técnico aos parlamentares. O protagonista poderia até ser o Congresso, mas todos sabem que uma reforma desse porte não poderia ser aprovada sem uma participação intensa do Ministério da Fazenda e de Appy e de sua incansável equipe.

Interesses conjugados

Este texto foi escrito até aqui em dezembro de 2023. Ao retomá-lo agora, em maio de 2024, não poderia deixar de mencionar o extraordinário processo de preparação da Lei Complementar do IBS e da CBS no âmbito do Programa de Assessoramento Técnico à Implementação da Reforma da Tributação sobre o Consumo (PAT-RTC). Sob a liderança de Appy, pela primeira vez na história da Federação brasileira, mais de 300 representantes dos três entes federativos – União, estados e municípios – reunidos em 19 grupos técnicos, trabalharam por quase três meses para preparar, em conjunto, as normas gerais do IBS e da CBS (PLP 68/2024).

Esse esforço imenso de conjugação de interesses dos três entes federativos em torno de uma regulamentação comum é emblemático e demonstra que a reforma, mesmo antes da aprovação das leis complementares, já inaugurou um novo paradigma de federalismo cooperativo em nosso país. Aqui, mais uma vez, Appy foi a figura central para que essa conciliação de interesses fosse possível e para que o projeto de lei complementar reflita a contribuição efetiva de todos os entes federativos.

Não tenho dúvidas que a aprovação da reforma se deu por conta do esforço de muitas pessoas ao longo destes últimos 35 anos, mas certamente uma boa parte se deve ao trabalho incansável e irretocável do pai do IVA brasileiro, Bernardo Appy. Nosso agradecimento, em nome de todos os brasileiros e das futuras gerações, ao Appy e à sua equipe pelo trabalho inestimável que fizeram pelo nosso país e por terem alcançado, para benefício de todos e de cada um de nós, essa conquista histórica.

 


[1] Todas as citações deste artigo foram retiradas da obra “La TVA invention française, revolution mondiale: l’aventure de Maurica Lauré” de autoria de Denys Brunel e publicada em 2021 pela editora Eyrolles.

[2] Lauré, Maurice. La Taxe sur la valeur ajoutée. Librairie du Recueil Sirey, 1952 (rééd. 1953), 133 p.

[3] https://www.estadao.com.br/economia/reforma-ampla/

[4] https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/601391/noticia.html?sequence=1&isAllowed=y

[5] https://oglobo.globo.com/economia/noticia/2023/11/11/reforma-tributaria-excecoes-sao-custo-politico-e-aprovacao-e-momento-historico-diz-appy.ghtml

Autores

  • é consultora internacional de IVA, consultora para o BID para assessoria à reforma tributária, tendo trabalhado como consultora para organismos internacionais e nacionais, como Banco Mundial, Ipea e CCiF. Foi professora da FGV-Direito Rio, diretora de cursos na York University (Canadá), advogada, doutora pela Université Sorbonne Nouvelle-Paris 3 (França) e autora do livro Reforma Tributária: Ideais, Interesses e Instituições (Juruá, 2014).

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