Opinião

Seria a ação declaratória de legalidade uma boa ideia?

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5 de maio de 2024, 15h19

Enquanto a reforma tributária vem ganhando novos episódios — o último com a divulgação do que seria o texto das leis gerais que regulamentarão os novos tributos que foram criados a partir da edição da Emenda Constitucional (EC) nº 132/23 —, o governo federal pensa em como diminuir o custo com a inevitável litigância que será instaurada no decorrer da promulgação das leis sobre o novo ordenamento tributário.

Nesse contexto, foi noticiado recentemente que a Advocacia-Geral da União, em conjunto com o Ministério da Fazenda, vem trabalhando na edição de uma nova proposta de emenda à constituição (PEC) para adicionar ao texto constitucional a possibilidade de ajuizamento da chamada “ação declaratória de legalidade” (ADL).

Em razão da inegável similaridade com a já conhecida ação declaratória de constitucionalidade (ADC), a ADL provavelmente apostará no caminho da fama já trilhado por sua “irmã” e terá como partes legítimas para ajuizamento o presidente da República, a Mesa do Senado Federal, a Mesa da Câmara dos Deputados ou o procurador-geral da República.

ADL e o meio tributário

A iniciativa é muito louvável e poderá representar importante peça nova no tabuleiro de xadrez que é o contencioso tributário.

Como sabemos, a ADC vem sendo utilizada estrategicamente pela Fazenda para combater a conhecida “fábrica de teses tributárias”, cujas lareiras já estão empilhadas de lenha desde o início dos debates sobre a reforma tributária, aguardando apenas a faísca inicial que virá das regulamentações da EC nº 132/23.

Em resumo, a estratégia consiste no seguinte: ao observar o movimento entre os contribuintes de questionar uma determinada tributação – o que geralmente ocorre mediante a impetração de mandados de segurança ou ajuizamentos de ações declaratórias abordando o mesmo assunto –, a Fazenda aposta todas suas fichas em uma ação única perante o Supremo Tribunal Federal, ao invés de litigar em todas as instâncias judiciais em milhares de processos distintos.

Spacca

Ou seja, sabedora de que a discussão tributária — geralmente de natureza constitucional — encontrará no Supremo a sua resolução final, a Fazenda antecipa a chegada da discussão naquela corte mediante ajuizamento de ADC, requerendo, ainda, a suspensão de todos os casos em território nacional que versem sobre a mesma matéria.

A tática, por exemplo, foi muito bem implementada na ADC nº 84, oportunidade em que a União conseguiu suspender todas as decisões judiciais que afastavam a tributação do PIS e da Cofins sobre receitas financeiras.

Ocorre que, mesmo com o trâmite de ADCs para reunião da discussão acerca da constitucionalidade de determinadas exações, o problema da litigiosidade tributária em massa não foi totalmente resolvido, especialmente porque algumas questões não possuem natureza constitucional e, por vezes, a respectiva cobrança se torna indevida por ferir exclusivamente texto de lei.

Além disso, é de se notar que o STF vem sistematicamente deixando de apreciar alguns temas tributários por considerá-los como de natureza infraconstitucional, mesmo que isso represente contradição com o entendimento da própria corte — situação que ficou muito clara quando se reconheceu a natureza constitucional da discussão acerca da inclusão de benefícios fiscais de ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins (Tema nº 843 das repercussões gerais) e, por outro lado, a natureza infraconstitucional da inclusão desses mesmos valores na base de cálculo do IRPJ e da CSLL (Tema nº 957).

Com isso, a Fazenda enxergou a necessidade de criar uma ferramenta para unificar rapidamente o entendimento sobre matéria tributária de natureza infraconstitucional, evitando, assim, a multiplicação de litígios e decisões conflitantes sobre assuntos que, ao final, seriam resolvidos pelo STJ.

É nesse cenário que o governo parece ter pensado ao iniciar o esboço da ADL: consolidar a jurisprudência a respeito do Imposto sobre Bens e Serviços, da Contribuição sobre Bens e Serviços e do Imposto Seletivo no campo infraconstitucional de maneira mais rápida e reduzir o risco de conflitos entre decisões de diferentes instâncias sobre uma mesma questão tributária.

A possível novidade merece algumas observações (ressalvando que o presente texto não pretende, e nem poderia, esgotar a matéria).

Contribuintes

Primeiramente, é importante destacar que, por mais que a estratagema fazendária de centralização das discussões tributárias possa parecer uma boa ideia, especialmente sob o ponto de vista de segurança jurídica, ela acaba por excluir por completo a participação dos contribuintes na formação do convencimento dos tribunais.

Isso porque, ao invés de a discussão chegar no STJ após longos debates travados em duas instâncias, oportunidade em que o tema em discussão amadurece a partir da participação das partes e magistrados, a ADL será iniciada diretamente no STJ, de modo que a própria Fazenda estará à frente dos argumentos que serão analisados (afinal, é ela a legitimada para ajuizar a ação).

A escolha de “casos maduros” para a extração de julgados com caráter vinculante foi, inclusive, uma grande preocupação do legislador ao editar o CPC de 2015, que apenas autorizou o julgamento de recursos repetitivos quando observada a multiplicidade de demandas sobre o mesmo assunto, fazendo-se necessário, ainda, a seleção de dois ou mais recursos representativos da respectiva controvérsia (vide-se artigos 976 e 1.036 do CPC).

A ADL, por outro lado, se seguir os passos da ADC, poderá ser ajuizada perante o STJ tão logo a Fazenda queira se resguardar de uma eventual multiplicidade de demandas, o que abre espaço para que a matéria proposta na ação seja julgada de forma vinculante e sem que os argumentos para tanto estejam suficientemente maduros.

Além disso, ao contrário da ADC, que necessariamente deve ter como base um dos 250 dispositivos constitucionais, a ADL terá um leque de opções infinitamente maior, mesmo que se o seu cabimento esteja limitado à declaração de conformidade com legislação de natureza complementar.

Ainda há o risco de os contribuintes exigirem de seus representantes uma “contrapartida” à criação da ADL (afinal, o contencioso é um jogo de xadrez), que seria um tipo de ação direta de ilegalidade, tal como já ocorre com a ação direta de inconstitucionalidade.

A ADL pode, assim, representar um tiro no pé para a própria Fazenda e ainda criar certa indisposição com o STJ, que muito já reluta em receber demandas sem o esgotamento das instâncias ordinárias, como se observa nas super restritivas hipóteses de cabimento das reclamações, por exemplo.

É claro que não se pode retirar o mérito da ADL de querer unificar imediatamente o entendimento jurisprudencial sobre determinada tributação, o que, na teoria, traria maior segurança jurídica para todos os contribuintes. Porém, há de se sopesar a pretendida segurança com a formação de precedentes vinculantes precipitados e sem qualquer representatividade, por não contarem com a participação efetiva de ambos os lados.

Assim, fundado o estado brasileiro em princípios inafastavelmente republicanos e democráticos, e respondendo à indagação feita no título desse texto, a criação da ADL pode não parecer uma boa ideia, vez que fará do STJ (nomeado como Tribunal da Cidadania, lembre-se) um mero formador de precedentes vinculantes sem o devido envolvimento do cidadão/contribuinte.

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