Território Aduaneiro

O custo da conformidade e as fraudes aduaneiras

Autor

  • Fernanda Kotzias

    é sócia do Veirano Advogados advogada aduaneira doutora em Direito do Comércio Internacional professora de pós-graduação e ex-conselheira titular no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).

7 de maio de 2024, 8h00

Não há dúvidas de que a aduana do século 21 pauta-se por uma necessária mudança cultural na forma como administração e operadores se relacionam, impondo que se estabeleça relações de confiança e cooperação em prol de um comércio mais ágil, transparente e seguro.

O assunto não é novo e já foi abordado em diversos artigos desta coluna, sob diferentes prismas: trade compliance, parceria aduana-empresas no âmbito da OMA, Programa OEA, entre outros. Em todas essas oportunidades, ressaltou-se, ainda que em diferentes contextos, o quanto a aproximação entre operadores e aduana é relevante e que é justamente por meio da avaliação de conformidade que se consegue separar empresas confiáveis e não confiáveis, favorecendo o fluxo operacional das primeiras e direcionando os esforços de fiscalização sobre as últimas.

A conformidade exige investimentos

O que pouco se explorou até hoje é o que podemos chamar de “custo da conformidade”. Ou seja, o ônus incorrido pelas empresas para estabelecer e manter procedimentos corretos e alinhados com as normas e expectativas da aduana. Existe um custo explícito e facilmente calculável, relativo aos dispêndios de compliance, seja por meio de departamentos internos ou consultorias externas, e que se relacionam com a construção e gestão de políticas desenhadas para garantir posturas de integridade e auditoria contínua.

Ocorre que existe um outro custo, este muito menos debatido e mais difícil de quantificar, mas que, certamente, impõe um ônus muito maior: o da concorrência desleal.

Sua mãe — e a minha — já dizia “você não é todo mundo, e não é porque o fulano faz errado que você também vai fazer”. Concordamos. Acontece que, no mercado capitalista, suportar o ônus da conformidade quando os concorrentes não o fazem pode trazer prejuízos e riscos que atingem a própria existência das empresas.

Estamos falando do impacto negativo que práticas ilegais de comércio como o subfaturamento e outras fraudes relacionadas ao preço e ao tratamento da mercadoria importada no mercado interno, o que afeta negativamente não apenas a indústria nacional, mas também os demais importadores que se esforçam e investem em conformidade.

Tal qual as práticas de dumping, subsídios e triangulação, o subfaturamento afeta muito mais do que a habilidade do Estado em arrecadar tributos. Afeta o ambiente de negócios do país como um todo, a livre concorrência, a capacidade das empresas em manterem seus clientes e presença de mercado e, também, de continuarem a manter e ampliar suas políticas de compliance.

Ocorre que, diferente dos exemplos acima citados — em que existem canais formais de denúncia e procedimentos específicos e públicos de investigação e tratamento das práticas ilegais e que causam dano ao mercado interno — o tratamento dos casos de subfaturamento ainda é frágil, superficial e sequer é tido como uma questão de relevância concorrencial.

Faltam procedimentos específicos para combater o subfaturamento

Os casos de subfaturamento devidamente apurados pela Receita Federal recebem o tratamento previsto pelas normas em vigor, que preveem a necessidade de valoração aduaneira para determinar o real preço da mercadoria importada e, assim, a cobrança de diferenças tributárias devidas e as multas cabíveis [1]. Em situações em que se comprove que a fraude foi cometida mediante falsidade documental, a penalidade é agravada e passa-se a aplicar o perdimento [2].

O tratamento legal previsto para lidar com o subfaturamento não é o problema. A dificuldade reside no quão efetivo consegue ser o trabalho da fiscalização na apuração das práticas fraudulentas e na sua punição. Ou, em outras palavras, enquanto a conformidade é premiada e a não conformidade é, de fato, repreendida nesses casos.

Há anos se discute como a questão pode ser melhor trabalhada junto à fiscalização aduaneira e a resposta mais comum era a de que a Receita fazia o melhor trabalho possível diante das limitações operacionais e de pessoal que enfrentava e que a implementação da gestão de risco seria um grande aliado na melhoria do serviço prestado.

Ainda que seja necessário reconhecer os avanços que a gestão de risco trouxe para essas e outras questões afeitas à fiscalização e ao controle aduaneiro, as reclamações sobre práticas de subfaturamento nos mais diversos setores não pararam de crescer.

O papel do Siscori nas denúncias de subfaturamento

Em um primeiro momento, a reação do setor privado foi a de buscar auxiliar a fiscalização, oferecendo denúncias fundamentadas e com provas e indícios concretos que pudessem direcionar as autoridades no caminho a seguir. Minha experiência prática permite dizer que essa estratégia costumava ser eficaz — apesar de cara — já que o caso era “adiantado” pelo setor privado, que auxiliava a Receita com seus próprios recursos.

Ocorre que o sucesso dessas denúncias era, em grande medida, pautado no uso do Siscori. Esse sistema, mantido pela Receita entre 2016 e 2021, permitia o acesso a estatísticas detalhadas sobre o comércio exterior brasileiro, incluindo NCMs, origens e destinos das operações, descrições detalhadas dos produtos, volumes, valores, fretes, seguros, preços unitários das operações e portos de entrada e saída.

Ainda que o Siscori preservasse a identidade dos declarantes e respeitasse as regras de sigilo fiscal, a forma de apresentação das estatísticas aumentou significativamente o grau de transparência e permitiu que o setor privado pudesse unir forças às autoridades no combate das ilicitudes no comércio exterior.

Não obstante, em dezembro de 2021, os operadores do comércio exterior foram surpreendidos com a Portaria SRFB nº 100, que determinava o desligamento do Siscori, sem que houvesse qualquer projeto em andamento para a sua substituição. Além do choque, a notícia foi recebida um pesar, visto que representou um verdadeiro retrocesso em termos de publicidade e transparência de informações e mesmo para a parceria público-privada que estava se consolidando no âmbito do combate às fraudes aduaneiras.

Gargalos dos canais atuais de denúncia

A partir de 2022 tornou-se muito mais difícil realizar denúncias devidamente fundamentadas sobre práticas fraudulentas à Receita, ainda que as mesmas continuassem a fazer parte da realidade do comércio exterior e a ameaçar a competitividade das empresas conformes.

Outro ponto negativo foi a forma como as denúncias passaram a ser recebidas, visto que, após o advento da Lei nº 13.460/2017, a Receita designou que as denúncias não deveriam mais ser recebidas pelas unidades, mas somente via Ouvidoria – o que tornou o caminho a ser percorrido muito mais longo e incerto, sem contar a falta de qualquer feedback ao denunciante, ainda que com as restrições legalmente necessárias.

Nesse contexto, quando a Medida Provisória nº 1.400/2021, conhecida como a MP da modernização do ambiente de negócios, foi enviada ao Congresso para tramitação, uma das principais propostas levadas pelas empresas se referia à criação de um canal de denúncias e seu respectivo procedimento para viabilizar a apresentação e o acompanhamento de denúncias de atos ilícitos praticados em operações de importação e exportação de mercadorias ou de serviços, o que, infelizmente, não foi incorporado à redação final do que veio a se retornar a Lei 14.195/2021.

GI-CEX

Por outro lado, Receita e Secex, por meio da Portaria Conjunta nº 22.676/2020, estabeleceram o chamado Grupo de Inteligência de Comércio Exterior (GI-CEX) com o intuito de identificar indícios de infração à legislação de comércio exterior e propor medidas para detectar e coibir essas infrações.

Ocorre que a Receita não deixou de receber denúncias por seus canais habituais e sequer tem a obrigação de reencaminhar os pedidos recebidos para o GI-CEX — o que representa uma ameaça ao sucesso da iniciativa.

Outro ponto crítico se refere ao fato de que, desde a sua criação em junho de 2020, o GI-CEX só publicou três relatórios de trabalho, os quais, somados, avaliaram um número muito pequeno de casos [3].

A análise do último relatório, publicado em 26/04/2024 e que trata das denúncias recebidas entre novembro de 2022 e dezembro de 2023, é relevante. Os números gerais indicam que, das 13 denúncias indicadas, seis foram consideradas procedentes, uma improcedente, uma parcialmente procedente e as demais continuam em andamento.

O primeiro ponto que chama a atenção se refere ao fato de parte significativa das denúncias foram consideradas procedentes, levando ao combate efetivo de ilícitos pelas autoridades e reforçando a importância dessa parceria público-privada.

O segundo ponto diz respeito a necessidade de popularizar e tornar o canal mais eficiente, visto que a quantidade de casos ainda é pouco representativa se comparada ao universo de problemas desta natureza que as empresas brasileiras enfrentam no comércio exterior.

O terceiro ponto, diretamente relacionado com o item anterior, se refere à necessidade de que existam estatísticas e dados públicos detalhados e de qualidade à disposição dos interessados, uma vez que se trata de condição indispensável para que as denúncias sejam apresentadas de modo completo e fundamentado. No momento atual, após a desativação do Siscori, essa tarefa se tornou um desafio, trazendo prejuízos a todos os envolvidos no processo.

Já o quarto ponto diz respeito ao alto tempo das análises em detrimento do baixo número de casos. Além da reduzida quantidade de relatórios e do lapso temporal entre eles, verificou-se que todas as denúncias apresentadas de outubro de 2023 em diante ainda aparecem como pendentes.

É fato que alguns casos são mais sensíveis e podem demandar um maior tempo de análise. No entanto, não se pode perder de vista que as práticas ilegais em questão desestabilizam o mercado e comprometem a competitividade das empresas conformes, o que justifica a necessidade de que haja um tempo de resposta compatível com a gravidade da situação e que permita que as fraudes sejam coibidas antes que os danos causados ao mercado sejam irreversíveis.

Melhores práticas internacionais

Avaliando as melhores práticas internacionais, verifica-se que existem diversos países que adotam canais de denúncias específicas para ilícitos aduaneiros, separando-os de outras categorias de denúncias fiscais, justamente para permitir que seja dado o tratamento célere e diferenciado que este tipo de caso demanda.

Em alguns casos mais arrojados como o dos Estados Unidos, o denunciante (“whistleblower”) pode até receber benefícios financeiros caso a investigação resulte em retorno aos cofres públicos; ainda que na maior parte dos sistemas, o canal de denúncia serve apenas como uma forma de garantir um ambiente concorrencial saudável e equilibrado.

O que praticamente todos os exemplos encontrados possuem em comum é a ressalva de que denúncias falsas ou infundadas podem implicar processos e penalidades por declaração falsa e prejuízo ao controle e à fiscalização aduaneira — o que parece ser uma forma interessante de manter o sistema acessível aos interessados, mas garantir que não haja um mau uso do instrumento.

Considerações finais

Diante de todos os pontos e preocupações levantados, busca-se enfatizar o fato de que a cultura da conformidade e de parceria aduana-setor privado necessita ir muito além de programas específicos e de vantagens no tempo de despacho — ainda que estas sejam desejáveis.

Há uma latente necessidade de que sejam criados canais efetivos de comunicação que busquem, de um lado, facilitar a cooperação entre autoridades e comunidade aduaneira e, de outro, garantir que todos os instrumentos disponíveis sejam aplicados para que o ônus da conformidade seja revertido, fazendo com que a balança realmente passe a pesar mais sobre as empresas que, de fato, praticam fraudes e ameaçam a concorrência leal do comércio exterior.

 


[1] Art. 108, parágrafo único do Decreto-Lei n. 37/66 c/c com os arts. 689, § 3º-A do Regulamento Aduaneiro e do art. 88 da MP n. 2158-35/2021.

[2] Art. 105, VI do Decreto-Lei n. 37/66.

[3] De acordo com os relatórios disponibilizados, verificou-se que são menos de 30 casos recebidos e analisados. Disponível em < https://www.gov.br/siscomex/pt-br/informacoes/combate-a-praticas-ilegais/gi-cex/relatorios-gi-cex>. Acesso em 05 de maio de 2024.

Autores

  • é sócia do Veirano Advogados, doutora em Direito do Comércio Internacional, advogada e consultora especializada em Comércio Internacional e Direito Aduaneiro e professora de pós-graduação e ex-conselheira titular do Carf.

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