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PLP 68 e as percepções sobre esse novo capítulo do Imposto Seletivo

Autor

  • Elidie Palma Bifano

    é mestra e doutora em Direito Tributário pela PUC-SP professora no curso de mestrado profissional da Escola de Direito de São Paulo–FGV e nos cursos de especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e da Escola de Direito do CEU–IICS e advogada em São Paulo.

8 de maio de 2024, 8h00

O comentário de hoje é, de nossa parte, mais um capítulo na introdução do Imposto Seletivo no país. De fato, em meados de 2023 tivemos a oportunidade de publicar algumas anotações sobre a então Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 45-A, que buscava alterar, por inciativa do Congresso Nacional, o capítulo da Constituição que trata do sistema tributário. Na oportunidade fizemos breve referência aos tributos de competência compartilhada entre estados, Distrito Federal e municípios, no caso o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e o Imposto sobre a Produção, Extração, Comercialização ou Importação de Bens e Serviços Prejudiciais à Saúde ou ao Meio Ambiente, simplesmente nomeado como Imposto Seletivo, sendo que esses dois últimos são de competência da União Federal.

Os novos tributos, até 2032, substituirão os atuais Imposto sobre a Circulação de Mercadorias (ICMS) e Imposto sobre Serviços (ISS), bem como as contribuições sociais devidas ao Programa de Integração Social (PIS) e ao Financiamento da Seguridade Social (Cofins). O Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), na proposta original, também deveria ser extinto, sendo suas funções absorvidas, parte pelo IBS e parte pelo Imposto Seletivo. Com a aprovação da PEC 45-A, entretanto, ele remanescerá associado a operações voltadas à Zona Franca de Manaus e a bens de tecnologia da informação e comunicação previstos na regulamentação da Lei nº 8.248/1991.

Imposto Seletivo, externalidades negativas e o PLP 68

Desde a edição da PEC 45-A, em 2023, nos posicionamos de maneira favorável à introdução desse tributo, assim acompanhando os movimentos legislativos de outros países preocupados com seus cidadãos, seja do ponto de vista de sua saúde, seja do ponto de vista do meio ambiente que os circunda. À época nos filiamos àqueles que vinculam tais tributos às chamadas externalidades negativas, ou seja, o fenômeno representado pelos efeitos de um ato ou negócio que extrapolam das pessoas diretamente neles envolvidas, como é o caso da emissão de poluentes, bem como dos efeitos adversos, para todos os integrantes da sociedade, do consumo de itens que afetam, a largo prazo, a saúde dos cidadãos. Nessas duas hipóteses cabe ao Estado intervir, para proteger a sociedade como um todo, criando sanções legais ou concedendo incentivos, mediante renúncia fiscal e subsídios, para proteger pessoas e ambiente.

Nessa ocasião apontamos como elemento primordial, na regulação desse tributo, a necessidade de se esclarecer o que é prejudicial e causa danos e comprometimento à sobrevivência do ser humano e do meio ambiente e em que grau, para que o Estado não utilize da competência tributária que lhe foi outorgada de forma a taxar, sem qualquer maior fundamento, apenas com o fito de arrecadar. E, mais, que o melhor seria definir uma relação taxativa, suscetível de atualização, de tais bens.

A PEC 45-A foi aprovada e convertida, ao final do ano de 2023, na Emenda Constitucional nº 132, a qual, para ser aplicada, necessita ter sua regulação introduzida por lei complementar. No dia 25 de abril passado, o Poder Executivo, atendendo ao compromisso que assumira com o país, encaminhou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 68, que institui e regula o IBS, a CBS e o Imposto Seletivo, dentre outros temas. Trata-se de material volumoso que contempla 497 artigos, mais de 20 anexos com listas de produtos citados ao longo do seu texto e sua classificação fiscal, revoga um imenso número de disposições que com o seu conteúdo são incompatíveis, mas acima de tudo, regula os tributos sobre o consumo. Desse robusto conjunto normativo representado pelo PLP 68, neste momento interessa-nos apenas o Imposto Seletivo e o tratamento a ele conferido nesse projeto.

Seletividade, limitadores e taxação de veículos

Deixando mais claro o que pretendemos examinar, lembramos que nos estritos termos da Emenda Constitucional nº 132/2023, o artigo 153 do texto constitucional foi alterado para nele ser introduzido um inciso VIII que delega competência para a União instituir imposto sobre a produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, nos termos de lei complementar, função essa hoje buscada pelo PLP 68. Embora a Constituição não utilize a denominação Imposto Seletivo para o tributo que onera as operações relacionadas a bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, o PLP 68 incorporou essa designação. Destaque-se, porém, que o nome seletivo, desse tributo, em nenhum momento se vincula ao princípio da seletividade, desde a metade do século 20 utilizado para fins de oneração pelo IPI, (artigo 153, § 3º) que elege ou seleciona produtos, em função de sua essencialidade. Assim, são menos gravados pelo IPI os bens que respondem, de forma geral, pela maior necessidade de consumo dos cidadãos. O IPI, além de voltado à essencialidade do bem, também objetiva regular o consumo quando há interesse público no bem envolvido, inclusive como instrumento de incentivo, ou não, desse mesmo consumo, sob o argumento de movimentar a economia.

Spacca

O Imposto Seletivo é tratado a partir do artigo 393, do PLP 68, devendo ser observados  os limitadores para ele já trazidos pela Constituição, a saber: não incidência sobre as exportações, bem como sobre operações com energia elétrica e telecomunicações; incidência única; não integração à sua própria base de cálculo; integração à base de cálculo do ICMS, ISS, IBS e CBS. Além disso, por orientação constitucional, o Imposto Seletivo poderá ter o mesmo fato gerador e base de cálculo de outros tributos, tendo suas alíquotas fixadas em lei ordinária, as quais podem ser específicas (importância em dinheiro que incide sobre uma unidade de medida prevista em lei) ou ad valorem (um percentual a ser aplicado sobre a base de cálculo).

O § 1º, do artigo 393, esclarece que para fins de incidência do Imposto Seletivo, consideram-se prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente os bens classificados nos códigos da NCM/SH listados no Anexo XVIII, a saber: veículos, embarcações e aeronaves; produtos fumígenos; bebidas alcoólicas; bebidas açucaradas e bens minerais extraídos. Desses bens considerados como prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, desde já alertamos que neste pequeno texto dedicaremos nosso exame apenas ao item veículos, sejam eles terrestres, aéreos ou náuticos. Assim, a Exposição de Motivos (EM) 038/2024, que acompanha o PLP 68, justifica a oneração de veículos pelo Imposto Seletivo, sob o argumento de serem eles emissores de poluentes que causam danos ao meio ambiente e ao homem, sem, contudo, aportar qualquer melhor referência científica. Não se faz necessário reiterar e a ninguém escapa os danos causados pelo excesso de veículos nas cidades, quer pela emissão dos referidos gases poluentes, quer pelo excesso de ruído, quer pelo congestionamento e suas consequências, inclusive psicológicas. Mas o caminho mais acertado é taxar os veículos? São eles, em si, um mal tão grande, especialmente em termos de prejuízos à saúde humana e ao meio ambiente?

O caso espanhol

O primeiro destaque, a nosso ver, é que o enquadramento dos veículos, terrestres ou não, aqui tratados de forma genérica, pode não residir no veículo, mas no combustível, esse, sim, bem prejudicial à saúde e ao meio ambiente, até porque veículos que se apresentam como movidos à eletricidade, não geram poluição. Com isso, nossa primeira conclusão é que será prejudicial à saúde e ao meio ambiente apenas o que integre a lista trazida pela lei. Logo, são bens prejudiciais aos cidadãos e ao meio ambiente os assim qualificados por definição legal, logo um bem estará sujeito ao Imposto Seletivo, na futura lei complementar, desde que se encontre listado como tal… Seria importante que o poder publico estivesse atento à experiência de outros países, na eleição de bens a serem onerados. É exemplo, para tanto, o documento de proposta da reforma tributária da Espanha (Libro Blanco sobre la Reforma Tributaria), de 2022 que apresenta 19 proposições de mudanças tributárias voltadas ao meio ambiente, dentre outras, todas elas preparadas por professores extremamente renomados, com fundamentos, à exaustão, em pesquisas, estudos, experiências e leis recentes, da União Europeia e de outros países.

Ainda, valendo-nos do caso espanhol, recomenda-se, na hipótese de emissão de poluentes, a tributação desses poluentes e não dos veículos que utilizam esses combustíveis poluentes, com a finalidade de utilizar tais recursos arrecadados, como investimentos na transição ecológica e não com função meramente arrecadatória.

De outro lado, qual seria o critério de seleção adotado pelo poder público brasileiro para incluir os veículos? Diverso, certamente, daquele adotado no modelo proposto na Espanha. Assim, o PLP 68 onera o veículo e não o combustível utilizado, e aí nasce uma primeira decisão fundamental no caso de tributos voltados à proteção da saúde e do meio ambiente: deve-se deslocar o encargo tributário do item onerado para o uso que dele se faz e como tal uso se faz? Um veículo movido a gasolina pode gerar poluição, mas se o combustível for substituído por energia elétrica, é certo que não haverá poluição, logo o bem a ser tributado é o combustível e não o veículo.

Sobrevida do IPI e serviços prejudiciais à saúde

Os poucos argumentos apresentados pelo Poder Executivo para tributar os veículos pelo Imposto Seletivo não se sustentam, ficando claro, com isso, que: (1) considerando o forte impacto que os combustíveis têm na inflação, optou-se por afastar riscos desse tipo, distorcendo a incidência do Imposto Seletivo e afastando-se o pesadelo de combater gastos públicos; (2) tomou-se a lista dos produtos sobretaxados pelo IPI, por força do princípio da essencialidade e, simplesmente, se elaborou a relação de produtos que são prejudiciais ao ambiente e à saúde, onerados pelo Imposto Seletivo, porém com a garantia de se manter a arrecadação apenas mudando o nome do tributo. A decorrência disso é a suposta criação de um novo tributo que dará sobrevida ao vetusto IPI que onera a produção. É de se concluir que o IPI não parece ter sido extinto, em nenhuma hipótese, apenas sua alíquota foi levada a zero, sobrevivendo através do Imposto Seletivo.

De outro lado, nenhum serviço foi listado como prejudicial à saúde e ao meio ambiente, parecendo-nos difícil encontrar tal hipótese, visto que o contrato que objetive obter serviço com essa característica poderia ser questionável por seu objeto prejudicial. Ou o objeto de tributação seria a sua externalidade também negativa atingindo terceiros, por exemplo, serviços de demolição, incineração, dedetização e similares que extrapolam o âmbito das partes envolvidas prejudicando terceiros. O tema serviços deve ser mais bem esclarecido no futuro sob pena de levar a um paradoxo.

Descontos incondicionais e avaliação quinquenal

O fato gerador e a base de cálculo do Imposto Seletivo em nada divergem dos elementos utilizados para fins de IPI e do ICMS, trazendo-se, desde já, como exclusão à sua base de cálculo os descontos incondicionais, se registrados em nota fiscal. O desconto é elemento alheio ao cálculo do tributo, que não poderia alcançar verbas estranhas aos seus elementos legais, como é o caso, ainda que não registrado na nota fiscal. O objetivo é, ao que parece, incorporar experiências e normatização dos tributos em extinção, sem maiores reflexões sobre as recentes mudanças. Na comercialização entre partes relacionadas, há valores mínimos de base de cálculo a serem observados.

O Imposto Seletivo incidirá uma única vez, sem direito de crédito, como nos parece adequado, dada a sua natureza, caracterizando-se como um custo de quem por ele for onerado. Por fim, o Poder Executivo realizará avaliação quinquenal da eficiência, eficácia e efetividade do Imposto Seletivo, enquanto política social, ambiental e sanitária, entregando aos estados e municípios compensação em troca da substituição do IPI pelo Imposto Seletivo.

Função extrafiscal e o PL 29/2024

Não podemos olvidar que o Imposto Seletivo tem função extrafiscal, objetivando organizar condutas e incentivar comportamentos positivos tendentes a proteger a saúde e o meio ambiente. À vista desse fato é oportuno, a nosso ver, comentar o PL 29/2024, de autoria do deputado Luiz Philippe de Orleans e Bragança, que dispõe sobre normas, conceitos e procedimentos gerais referentes à instituição do Imposto Seletivo. O artigo 2º desse projeto dispõe que o Imposto Seletivo terá por finalidade desestimular o consumo de bens e serviços comprovadamente prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, absolutamente alinhado com o propósito constitucional e evidenciando sua função extrafiscal de orientar condutas.

Além de prever a criação de  Lei Complementar Específica, que indicará os aspectos gerais do fato gerador, da apuração, do lançamento e recolhimento, do imposto, essa lei deverá, obrigatoriamente, prever as metas programáticas e objetivos para a definição e incidência do Imposto Seletivo, sendo necessário estabelecer a evolução na mitigação dos impactos inerentes às atividades, bens ou serviços e operações prejudiciais à saúde e ao meio ambiente.

E mais, a Lei Complementar que instituir o Imposto Seletivo deverá prever mecanismos de incentivos, como isenção, compensação ou redução do tributo aos contribuintes que promoverem ações e programas de prevenção, mitigação e conscientização relativos ao consumo saudável ou sustentável referentes aos bens ou serviços tributados, bem como para os investimentos que resultarem em cadeia de produtos e de serviços mais sustentáveis, acompanhando os movimentos mais recentes da União Europeia.

Considerações finais

De forma coerente, o PL 24/2024 estende a não incidência do Imposto Seletivo nas operações ou prestações que envolvem bens ou serviços relacionados em lei como não tributados, a produtos e serviços derivados ou que tenham na sua composição tais bens ou serviços como insumos ou que integrem a cadeia produtiva dos bens e serviços imunes ao imposto. O PL 24/2024, da Câmara, a nosso ver, é uma lição de preocupação com o cidadão e com a economia, prevendo que esse tributo se presta a fomentar as boas práticas em matéria tributária, de saúde e de meio ambiente.

Devemos estar atentos no sentido de que a reforma tributária é um projeto de país, e não de governo ou de partido. Logo, se ela não for corretamente implementada, teremos problemas para todos e por muitos governos.

 

 

Autores

  • é mestra e doutora em Direito Tributário pela PUC-SP, professora no curso de mestrado profissional da Escola de Direito de São Paulo/FGV e nos cursos de especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e da Escola de Direito do CEU—IICS e advogada em São Paulo.

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