Opinião

Doação é a melhor opção para transmissão do patrimônio empresarial em vida?

Autor

  • Gustavo de Moraes Roehe

    é advogado do setor consultivo tributário e societário no escritório Charneski Advogados graduado pela Universidade do Vale do Rio do Sinos (Unisinos) e pós-graduado em Direito Tributário pela PUC-RS.

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4 de maio de 2024, 6h37

Dados do IBGE e do Sebrae mostram que 90% das empresas no Brasil possuem perfil familiar. São elas as responsáveis pela produção de 65% do Produto Interno Bruto (PIB) e dispõem de cerca de 75% da força de trabalho empregada no país [1].

Nesse contexto, muitas famílias valem-se de ferramentas de planejamento sucessório para transmitir o patrimônio empresarial aos seus herdeiros, dentre as quais destaca-se a figura da holding. Através dessa estrutura, o titular do patrimônio transfere bens e direitos ao capital social da sociedade e recebe em troca quotas ou ações, passando a holding a deter todo o patrimônio recebido pelo titular.

Depois, o titular pode optar pela doação de sua participação societária da holding aos herdeiros, estruturando a sucessão em vida e reduzindo o custo tributário do ITCMD, que, em regra, é menor na doação do que na sucessão.

No entanto, uma possibilidade pouco explorada em planejamentos sucessórios é a cessão onerosa da participação societária da holding aos herdeiros. O presente artigo busca explorar a viabilidade dessa opção, mensurando o custo tributário envolvido na operação e de que forma o fisco se comporta frente a esse planejamento tributário.

1. Da incidência do ITCMD sobre a doação de participações societárias e a apuração do valor venal pelas Receitas estaduais

O Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) de quaisquer bens ou direitos encontra fundamento constitucional no artigo 155, inciso I, da Constituição Federal de 1988. De acordo com o inciso II do seu §1º, o imposto relativo a bens móveis, títulos e créditos, compete ao Estado onde se processar o inventário ou arrolamento, ou tiver domicílio o doador, ou ao Distrito Federal.

Valendo-se da competência outorgada pela CF/88, o estado do Rio Grande do Sul determina que o ITCMD é devido quando as ações ou quotas sociais forem transmitidas em decorrência de doação em que o doador tiver domicílio neste Estado, conforme artigo 3º, inciso IV, da Lei Estadual nº 8.821/89.

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Em relação à base de cálculo do ITCMD, o artigo 38 do CTN preceitua que será o valor venal dos bens ou direitos transmitidos. Uma vez que a competência para instituição do ITCMD pertence aos estados, cabe a estes definir, através de suas legislações, o conceito de valor venal, bem como os métodos e critérios para sua aferição.

O artigo 12 da Lei Estadual nº 8.821/89 dispõe que o valor venal dos bens transmitidos será apurado mediante avaliação procedida pela Fazenda Pública estadual ou avaliação judicial (em caso de transmissão causa mortis), obedecidos os critérios fixados em regulamento.

Por sua vez, a Instrução Normativa DRP nº 45/98, editada pelo Diretor do Departamento da Receita Pública Estadual, estabelece em seu Título II, Capítulo II, Seção 6.0, o procedimento legal de determinação do valor venal de quotas de capital e ações de capital fechado transmitidas por doação ou por sucessão.

O item 6.4 consigna que as quotas de sociedades empresárias e ações de sociedades anônimas de capital fechado “terão seu valor venal apurado de acordo com as normas técnicas que orientam a prática de avaliação de empresas, o qual poderá considerar, para efeitos de seu cálculo, o ajuste de registro contábil, quando estiver em desacordo com os valores praticados pelo mercado na data da avaliação”.

Portanto, o procedimento permite que a autoridade fiscal desconsidere o valor contábil histórico do patrimônio líquido da sociedade, e efetue o ajuste de registro contábil conforme avaliação “a valor de mercado” da empresa.

Tomando como exemplo os ativos imobiliários de determinada sociedade, o artigo 183, inciso V, da Lei das S.A., e o item 23 do Pronunciamento Técnico CPC 27, estabelecem que os direitos classificados no ativo imobilizado serão inicialmente avaliados a seu valor de custo de aquisição, que equivale ao preço à vista na data do seu reconhecimento.

No entanto, para fins de apuração do valor venal da sociedade, o fisco estadual está legitimado a reajustar o registro contábil do ativo imobilizado, reavaliando os bens ao seu valor de mercado e majorando (ainda que fictamente) o patrimônio líquido da empresa, o que acarreta o aumento da base de cálculo do ITCMD.

Mesmo antes da previsão desse procedimento, já existia julgamento do TJ-RS pelo qual a 21ª Câmera Cível entendeu que o método do fluxo de caixa descontado é o mais adequado a aferir o valor venal das sociedades [2].

Contudo, a aplicação do método do fluxo de caixa descontado para apurar o valor venal da participação societária doada não se revela o critério mais adequado, na medida em que a capacidade de geração de lucros (ao se projetar o fluxo de caixa da empresa prospectivamente) pode ensejar a aplicação de critérios subjetivos e submeter o contribuinte à tributação mais gravosa, uma vez que o valor do ativo pode ser superavaliado pelas autoridades fiscais [3].

Diante da ausência de critérios objetivos de valuation das sociedades na legislação gaúcha, surgem dúvidas sobre a alternativa da cessão das participações aos sucessores, em substituição à doação, pelo seu valor nominal. Sendo onerosa a cessão, esta não se sujeitaria ao ITCMD, nem ao respectivo procedimento de avaliação fiscal.

Para tanto, é necessário examinar como a legislação tributária regula a cessão onerosa de participação societária, para mensurar a carga fiscal que incidirá sobre essas transações e compreender o impacto econômico envolvido.

2. Da tributação sobre o ganho de capital na cessão onerosa de participações societárias

A pessoa física que aliena sua participação societária em sociedade empresária está sujeita a apuração do ganho de capital, que, por sua vez, é grandeza econômica tributável pelo Imposto de Renda.

Em suma, o ganho de capital é o resultado obtido na alienação de bens ou direitos, calculado pela diferença entre preço de venda (valor de alienação) e o custo de aquisição, conforme estabelece o artigo 3º, §2º, da Lei nº 7.713/88 e o artigo 21 da Lei nº 8.981/95. Para as pessoas físicas, o custo de aquisição de participação societária é aquele constante de sua DIRPF, nos termos do artigo 136 do RIR/18.

Portanto, eventual ganho de capital apurado pela pessoa física decorrente da alienação de quotas ou ações de sociedade empresária, por preço acima do seu valor nominal, sujeita-se à incidência do Imposto de Renda.

Considerando essas disposições legais, em tese, se determinado contribuinte alienasse sua participação societária por preço equivalente ao seu custo de aquisição, conforme declarado na DIRPF, o ganho de capital seria equivalente a zero, e por essa razão, inexistiria acréscimo patrimonial apto a atrair a incidência do Imposto de Renda.

Nesse sentido, se o detentor da participação societária efetuar a transmissão do ativo aos seus herdeiros por meio de alienação pelo preço de custo do investimento, poderia escapar à tributação não só do ITCMD, mas também do Imposto de Renda, uma vez que inexiste ganho de capital na operação hipotética ora imaginada.

Contudo, tal situação vem sendo interpretada pela Receita Estadual do Rio Grande do Sul como caracterizadora de planejamento tributário abusivo, sujeitando o contribuinte a eventual desconstituição do negócio jurídico, recebendo a alcunha de “doação simulada”.

3. A controvérsia da cessão onerosa pelo custo de aquisição: doação simulada e tratamento dado pela Receita estadual do Rio Grande do Sul

Conforme referido, a alienação de participações societárias pelo valor de custo pode ser interpretada pelos fiscos estaduais como uma operação simulada, que busca ocultar a doação mediante a realização de contrato simulado de compra e venda das participações.

Nesse sentido, serão analisados dois acórdãos do Tribunal Administrativo de Recursos Fiscais (Tarf) do Estado do Rio Grande do Sul, nos quais essas operações foram detidamente examinadas pelos conselheiros das Câmaras do órgão colegiado.

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Primeiramente, verifica-se o teor do Acórdão nº 202/22, julgado em 20/4/2022 pela Primeira Câmara do Tarf [4]. No caso concreto, o contribuinte constituiu diversas holdings integralizando bens imóveis e dinheiro ao capital social dessas empresas, e em menos de 10 meses, retirou-se de todas as sociedades, mediante venda de suas quotas sociais aos seus herdeiros por valor abaixo do custo de aquisição.

Ainda, em razão da ausência de capacidade financeira das adquirentes, foi pactuado em contrato que o pagamento das quotas seria feito mensalmente com recursos provenientes das próprias empresas.

Diante disso, o fisco estadual concluiu que a alienação se tratava de negócio jurídico simulado para ocultar as respectivas doações, desconstituindo a operação realizada.

Para chegar nessa conclusão, o fisco considerou diversos elementos, dentre os quais se destaca: (i) grau de parentesco das partes celebrantes do negócio; (ii) descompromisso entre o valor de mercado das quotas e o valor pactuado; (iii) pagamento com recursos das empresas, denotando a ausência de capacidade financeira dos herdeiros adquirentes; e (iv) inexistência de efetivo pagamento.

Ao julgar o caso, o conselheiro relator Luciano Coelho Guimarães consignou que “embora formalizada como cessão onerosa, foram transmitidas quotas sociais sem que os supostos adquirentes pagassem qualquer valor pela suposta aquisição e no qual todos os familiares estavam plenamente cientes de que efetivamente se tratava de uma doação de quotas sociais que possibilitaria a transmissão do patrimônio do contribuinte de forma gratuita, tendo como consequência a evasão do pagamento do ITCD”.

Ainda, no que diz respeito ao preço da transação, o valor representou somente 20% do valor nominal do capital social das sociedades. Nesse sentido, o conselheiro relator arremata que “somente essa diferença de valor já seria elemento extremamente relevante para indicar uma intenção de ambas as partes em promover a cessão gratuita do capital social”.

Desse modo, o lançamento do ITCMD foi mantido pela 1ª Câmara do Tarf, determinando a aplicação da penalidade de multa de 60% do valor do imposto devido, conforme artigo 9º, inciso II, da Lei Estadual nº 6.537/73.

Na mesma linha segue o Acórdão nº 395/22, também julgado pela 1ª Câmara do Tarf na data de 17/8/2022 [5]. No caso analisado, o contribuinte celebrou contrato de cessão de quotas sociais com seus três filhos e genro, sendo o preço pactuado pela venda equivalente ao custo de aquisição da participação societária, sem levar em conta o valor venal – valor de mercado, ou ainda, valor justo – do ativo.

Por essa razão, considerado também o descompromisso do preço da transação com o valor justo das quotas, assim como o grau de parentesco entre os contratantes, a fiscalização concluiu que a intenção real das partes era de promover a doação das quotas, ainda que o negócio formalizado fosse a compra e venda.

No caso, o voto proferido pelo conselheiro relator Rodrigo Maciel de Souza consigna que “há fortes elementos nos autos que dão amparo à tese do fisco de que estamos diante de doação (cessão gratuita) das quotas sociais e não de venda, como quiseram fazer parecer as partes envolvidas. Neste sentido, temos: a diferença de mais de 11 vezes entre o valor informado e o valor da avaliação (…)”.

Importa destacar relevante trecho do voto, pelo qual o conselheiro relator constou que “é vedado às partes realizarem um negócio jurídico, chamando-lhe de um nome diverso, inaplicável ao caso, a fim de obter os efeitos jurídicos de outro, com o claro desiderato de se evadir da obrigação tributária correspondente ao negócio jurídico efetivamente realizado. Se as partes queriam as consequências tributárias da compra e venda de quotas sociais deveriam ter realizado, de fato, a venda das quotas, a preço de mercado e com a efetivação do pagamento, elementos condizentes com esse tipo de operação”.

Diante disso, a 1ª Câmara do Tarf manteve o lançamento do ITCMD lavrado pela autoridade fiscal estadual, dando parcial provimento ao recurso voluntário do contribuinte tão-somente para reclassificar a infração qualificada para básica, com previsão legal no artigo 9º, inciso II, da Lei Estadual nº 6.537/73.

4. Considerações finais

Diante do exposto, é possível verificar que a alienação de participações societárias pelo preço de custo de aquisição, em contextos de planejamento patrimonial e sucessório, pode não representar uma boa alternativa de planejamento tributário.

O fisco estadual do estado do Rio Grande do Sul vem afastando e desconstituindo tais operações, desconsiderando a titulação formal do negócio jurídico entabulado entre os contratantes e prezando pelo aspecto volitivo da operação, buscando depreender a real intenção das partes na transação.

De outro lado, o contribuinte pode avaliar se a operação de alienação de participação societária pelo seu valor justo, recolhendo o Imposto de Renda sobre o ganho de capital apurado na operação, é mais vantajosa do ponto de vista fiscal do que o recolhimento do ITCMD sobre o valor venal do ativo em caso de doação, apurado pelas autoridades fiscais estaduais competentes, que pode não refletir o valor justo do investimento e gerar uma supervalorização da participação societária.

Portanto, o contribuinte que deseja planejar em vida a transmissão do seu patrimônio aos seus sucessores deve avaliar todas as nuances expostas no presente artigo, especialmente a legislação estadual de domicílio do doador para examinar o tratamento tributário do ITCMD incidente sobre a doação de participações societárias, de modo a evitar possíveis complicações a operação que, a princípio, deve ser utilizada para garantir a perpetuidade do patrimônio familiar.

 


[1] SEBRAE. Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas. Disponível em: https://sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/ufs/ms/artigos/pais-e-filhos-os-desafios-e-valores-entre-geracoes-de-empreendedores,f646cf80c782c710VgnVCM100000d701210aRCRD.

[2] RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Apelação Cível 70084410463. Relator: Desembargador Marcelo Bandeira Pereira. Data do Julgamento: 28 de agosto de 2020.

[3] POHLMANN, Marcelo; TESSARI, Cláudio; PAGLIOLI, Ana Carolina Ballesteiros. Análise e críticas ao novo critério utilizado pelo estado do Rio Grande do Sul para tributação pelo ITCMD das ações, quotas, participações ou quaisquer títulos representativos do capital social de empresas de capital fechado. In: Revista de Estudos Tributários. v. 139. São Paulo: Síntese/IET, mai./jun. 2021, p. 09-27. Disponível em: https://tessaripohlmann.adv.br/artigos/

[4] RIO GRANDE DO SUL. Tribunal Administrativo de Recursos Fiscais. Acórdão nº 202/22. Relator: Conselheiro Luciano Coelho Guimarães. Data de Julgamento: 20 de abril de 2022.

[5] RIO GRANDE DO SUL. Tribunal Administrativo de Recursos Fiscais. Acórdão nº 395/22. Relator: Conselheiro Rodrigo Maciel de Souza. Data de Julgamento: 17 de agosto de 2022.

Autores

  • é advogado do setor consultivo tributário e societário no escritório Charneski Advogados, graduado pela Universidade do Vale do Rio do Sinos (Unisinos) e pós-graduado em Direito Tributário pela PUC-RS.

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