Chapéu alheio

CNJ reforçou veto, mas destinação de verbas já era ilegal na 'lava jato'

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8 de maio de 2024, 8h48

O Conselho Nacional de Justiça teve de editar resolução para explicitar que magistrados e integrantes do Ministério Púbico não podem estabelecer livremente a destinação de verbas arrecadadas por meio de condenações e acordos de leniência e de delação premiada. O CNJ foi obrigado a reforçar a regra, apesar de a prática já ser ilegal, devido aos abusos cometidos na “lava jato”, como os praticados pelos ex-juízes da 13ª Vara Federal de Curitiba Sergio Moro e Gabriela Hardt. O órgão decidirá em 21 deste mês se abre processo administrativo disciplinar contra os dois.

Gabriela Hardt

Gabriela Hardt homologou acordo que criava fundação com dinheiro da Petrobras

Em 26 de abril, o CNJ aprovou resolução para limitar a destinação das verbas arrecadadas por meio de condenações, acordos de leniência e de delação premiada e cooperação internacional, além de multas.

A norma proíbe a distribuição de maneira determinada pelo Ministério Público em acordo firmado com empresa ou colaborador. Também veda o uso desses valores para custeio de instituições do sistema de Justiça, promoção pessoal de membros dos três poderes e para entidades associadas a eles. Ainda é proibida a utilização para fins político-partidários.

A resolução foi editada na iminência de o CNJ julgar a abertura de PAD contra a juíza Gabriela Hardt por homologar a criação de uma fundação, abastecida com verbas de acordos, com o objetivo de supostamente organizar atividades anticorrupção coordenadas por lavajatistas. Correição feita pelo CNJ na 13ª Vara de Curitiba concluiu que houve uma “gestão caótica” no controle de valores oriundos de acordos de colaboração e de leniência firmados com o MPF e validados por Sergio Moro.

O CNJ também decidirá se abre PADs contra os desembargadores do Tribunal Regional Federal da 4ª Região Carlos Eduardo Thompson Flores e Loraci Flores de Lima, além do juiz Danilo Pereira Júnior.

Se forem condenados nos PADs, os quatro julgadores vão receber alguma das sanções disciplinares regulamentadas pela Lei Orgânica da Magistratura: advertência, censura, remoção compulsória, disponibilidade, aposentadoria compulsória ou demissão. Se houver indícios de crime de ação pública incondicionada, uma cópia do processo deve ser enviada ao Ministério Público. Como Moro não é mais juiz, o CNJ pode enviar notícia-crime ao MP para dar andamento a uma investigação criminal contra ele.

Destinação ilegal

Mesmo antes da resolução do CNJ, procuradores da República e juízes não podiam definir onde seriam aplicadas verbas arrecadadas em ações penais. “De forma geral, integrantes do MP e magistrados não têm discricionariedade para definir a destinação desses valores. Trata-se de ato vinculado, e não discricionário”, afirma o advogado Diogo Malan, professor de Direito Processual Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Ele aponta que, dependendo do caso, os destinatários de valores arrecadados em processos criminais podem ser o Fundo Penitenciário Nacional ou Fundo Penitenciário de estado (artigo 49 do Código Penal), a União (artigo 91 do Código Penal), o Fundo Nacional Antidrogas (artigo 63, parágrafo 1º, da Lei 11.343/2006), o Fundo Nacional de Segurança Pública (artigo 3º da Lei 13.756/2018) ou entidade pública ou de interesse social (artigo 28-A do Código de Processo Penal), entre outros.

O dinheiro arrecadado em ações e acordos penais “jamais” poderia ser destinado ao MP ou ao juízo que homologou os compromissos. “Isso é um desvio de conduta inaceitável, que deve ser apurado”, opina o advogado Alberto Zacharias Toron, professor de Direito Processual Penal da Fundação Armando Alvares Penteado. Segundo ele, os recursos devem ser repassados à União ou para a entidade diretamente lesada.

O jurista Lenio Streck, professor de Direito Constitucional da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e da Universidade Estácio de Sá, ressalta os abusos cometidos com verbas de acordos na “lava jato”.

“O dinheiro deve ir para a União. Isso é óbvio. Como é óbvio que integrantes do MP e do Judiciário não podem definir o destino de recursos. Aliás, nunca puderam. O caso da ‘lava jato’ é fruto de um desvio hermenêutico de finalidade da norma jurídica. Moro e Dallagnol inventaram um modo de destinação — e a juíza Hardt homologou”, destaca Lenio, avaliando que as verbas deveriam ser aplicadas no combate ao crime e no fortalecimento do sistema de Justiça.

Repasses precipitados

Lenio Streck também afirma que bens e valores apreendidos pela Justiça não podem receber destinação antes do trânsito em julgado da sentença condenatória — como ocorreu diversas vezes na “lava jato” —, salvo se forem perecíveis. “Isso vai contra o próprio devido processo legal. O jogo processual só termina quando acaba o processo”.

Alberto Toron explica que é possível a venda de bens apreendidos pela Justiça, como automóveis, para evitar sua depreciação. Porém, ele ressalva que a medida é questionável em face do princípio da presunção de inocência. Assim, se o acusado for absolvido, terá direito a receber o valor o bem de volta, com juros e correção monetária, além de eventualmente perdas e danos que possa ter sofrido, detalha o criminalista.

Como regra geral, bens e valores não podem receber destinação antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, diz Diogo Malan. “Isso porque a presunção de inocência do acusado implica presunção de licitude de seus bens e valores pessoais, até a condenação definitiva. A alienação antecipada de bens infungíveis é medida tanto drástica quanto irreversível, causando grave restrição a essa presunção”.

“Portanto, a alienação antecipada só caberá para preservar o valor de mercado dos bens apreendidos, desde que presentes dois requisitos legais: (i) risco de deterioração ou depreciação; (ii) dificuldade para manutenção (artigo 4º, parágrafo 1º, da Lei 9.613/1998). Esse risco não pode ser meramente abstrato, conjectural, nem presumido, devendo ser concreto, individualizado e fundamentado, além de sujeito a controle recursal”, aponta Malan.

Histórico de abusos

Em diversos episódios da “lava jato”, procuradores e juízes ilegalmente decidiram a destinação de valores arrecadados em acordos de leniência e delação premiada, além de apreensões, condenações e multas.

O caso mais infame é o da “Fundação Dallagnol”. Lavajatistas assinaram acordo com a Petrobras para a criação de uma fundação que permitiria ao grupo de procuradores gerir recursos bilionários. Em troca, a estatal repassaria informações confidenciais sobre seus negócios ao governo americano. A manobra foi bloqueada por decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal.

Procuradores de Curitiba tentaram repetir o modelo criando uma fundação com recursos do acordo de leniência da J&F. A ConJur noticiou o caso em dezembro de 2020 e, na ocasião, o procurador-geral da República, Augusto Aras, bloqueou um repasse de R$ 270 milhões para a entidade. O arquiteto dessa operação seria o conselheiro da organização não governamental Transparência Internacional e assessor informal da “lava jato” Joaquim Falcão.

Em um memorando, foi registrada a pretensão de destinar parte dos recursos do acordo, no valor total de R$ 10,3 bilhões, a um projeto de investimento na prevenção e no “controle social da corrupção”. Custo dessa “campanha educativa”: R$ 2,3 bilhões.

Procuradores da “lava jato” do Rio de Janeiro fizeram um delator comprar, sem licitação nem autorização da Procuradoria-Geral da República, um equipamento de espionagem israelense que invade celulares em tempo real, como parte do pagamento de sua multa civil.

O empresário Enrico Vieira Machado comprou, sem licitação, o software UFED Cloud Analyzer, desenvolvido pela Cellebrite, para o Ministério Público Federal do Rio. A aquisição foi feita em 5 de dezembro de 2017, por R$ 474.917,00, em Nova Lima (MG). A obrigação de adquirir o programa foi inserida em seu acordo de colaboração premiada, firmado com o MPF e homologado pelo juiz Marcelo Bretas, da 7ª Vara Federal Criminal do Rio.

Argumentando que “combatia a corrupção”, a “lava jato” preservou o patrimônio de delatores. Orlando Diniz pôde manter US$ 250 mil no exterior; Dario Messer recebeu R$ 11 milhões de herança; Alberto Youssef inicialmente receberia R$ 1 milhão para cada R$ 50 milhões recuperados; Antonio Palocci manteve mais da metade de seu patrimônio de R$ 80 milhões.

Olhos fechados

A 7ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro, que era comandada pelo juiz Marcelo Bretas até ele ser afastado do cargo pelo CNJ, já apreendeu centenas de imóveis na operação “lava jato”. Porém, não conseguiu informar o número preciso de bens nem quantos estão sob administração do juízo quando questionada pela ConJur.

Em julho de 2019, a 7ª Vara Federal Criminal do Rio informou que, em 25 desdobramentos da “lava jato”, havia apreendido 699 imóveis, além de navios, aeronaves, joias e R$ 1,7 bilhão.

ConJur perguntou à Justiça Federal no Rio quantos imóveis haviam sido apreendidos por ordem de Bretas e quantos estavam sob administração da 7ª Vara Federal Criminal. A assessoria de imprensa do órgão disse que não poderia precisar o número. “Em contato com a 7ª Vara Criminal nos foi informado que, infelizmente, não há possibilidade para a realização do levantamento no momento”, declarou o órgão. O Ministério Público Federal também informou que não conseguiria apontar o dado.

Administrador de bilhões em valores e bens apreendidos, Bretas vinha se ocupado, sozinho, de alugar imóveis, leiloar veículos e destinar dinheiro para a polícia, por exemplo. Enquanto zelava pelos bens, Bretas ainda tinha de decidir sobre o futuro de réus de renome. E costumava cair em contradições ao adotar penas até 350% diferentes em relação a condutas idênticas, a depender do réu.

Cuidar dos bens de uma clientela abastada ocupava o tempo do titular da 7ª Vara Federal, que despachava até sobre os aluguéis de cada um dos imóveis confiscados. O apartamento da família Cabral no Leblon, por exemplo, foi alugado por R$ 25 mil ao mês, indo R$ 19,6 mil mensais para o proprietário, R$ 5,4 mil para o condomínio e R$ 700 anuais para o IPTU, contou o jornal O Globo.

Em junho de 2018, ele disponibilizou, para o Gabinete de Intervenção Federal no Rio, R$ 1,132 milhão do dinheiro sob os cuidados da vara, para que fossem comprados equipamentos para a Polícia Civil do estado — do que a própria Justiça Federal se ocupou, segundo o jornal Extra.

No mesmo mês, o Centro Cultural da Justiça Federal pediu ao juiz, para custear uma mostra, R$ 18,3 mil dos valores recuperados pela “lava jato”. Ao ser informado, o presidente do TRF-2, André Fontes, censurou a atitude. À ConJur ele disse ter como “princípio intransigível o de que não é possível à administração receber recursos oriundos das partes das ações em tramitação ou julgadas pela Justiça Federal da 2ª Região”.

Além dos valores apreendidos, a conta judicial da vara recebia depósitos de multas impostas em condenações e do pagamento de fianças por réus com prisão preventiva decretada. O banqueiro Eduardo Plass, por exemplo, preso em agosto de 2018, pagou R$ 90 milhões para ser solto. Plass é acusado de participar do esquema de ocultação de bens de Sergio Cabral, diz o portal G1.

De Eike Batista, o juiz bloqueou outros R$ 900 milhões em investigações da “lava jato”. Em 2016, Bretas já havia bloqueado R$ 1 bilhão de Sergio Cabral, da multinacional Michelin e de seus executivos, devido a acusações de concessão ilegal de incentivos fiscais.

Os funcionários da 7ª Vara Federal do Rio não suportaram tamanho grau de envolvimento na administração dos bens, e o juiz pediu à Presidência do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, em maio de 2018, um reforço no quadro. A ideia era criar um setor específico para gerir os imóveis de investigados na “lava jato”.

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