Ofensiva sobre precedentes

'Trabalho policial sem respeito aos direitos fundamentais é o que gera impunidade'

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22 de janeiro de 2024, 8h48

Com mais de 834 mil pessoas privadas de liberdade, o Brasil tem, hoje, a terceira maior população carcerária do mundo. Não obstante, o discurso de que há “impunidade” permanece aceso nas rodas de conversa, nas esferas pública e privada.

O promotor do MP-PR, Jacson Zilio

Neste contexto, no âmbito da Justiça Criminal, os dados disponíveis mostram que, enquanto as primeiras e segundas instâncias tendem a ser mais complacentes com os órgãos de acusação, os tribunais superiores acabam assumindo, na prática, posição de controle das ilegalidades provenientes das sentenças e acórdãos e os precedentes não são respeitados.

No meio deste fogo cruzado, o promotor Jacson Zilio, titular da 9ª Promotoria de Justiça Criminal do Foro Central da Região Metropolitana de Curitiba (PR), foi alvo, no ano passado, de um pedido de remoção compulsória, feito pela corregedoria do MP-PR, por seguir precedentes estabelecidos pelo Superior Tribunal de Justiça. A corregedoria alegou “precipitação” de Zilio no uso dos precedentes em casos concretos, antes mesmo do início da instrução processual, citando 15 processos de rejeição e cinco de alegações finais.

A discussão é espinhosa, e revela o abismo de entendimentos entre as instâncias do Judiciário. Sinal disso é o fato de que o Tribunal da Cidadania, responsável pela uniformização de decisões, concedeu, em média, 43 Habeas Corpus por dia em 2023  quase metade (45%) em casos de tráfico de drogas.

“As instâncias inferiores ainda não internalizaram que o papel do juiz no Estado Democrático de Direito não é o de colaborar com as forças de segurança, mas sim controlar os poderes estabelecidos. O juiz deve ser um obstáculo às políticas criminais, porque, antes de qualquer coisa, tem como principal função garantir que os direitos individuais não sejam consumidos pelo discurso dos direitos sociais”, diz Zilio à revista eletrônica Consultor Juríico.

A própria corregedoria do MP-PR afirmou, no processo administrativo, hoje suspenso pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que o órgão acusador “não pode se curvar, indistintamente, aos entendimentos firmados pelo Superior Tribunal de Justiça”, explicitando as razões da abertura do procedimento.

O conflito com o sistema de precedentes, diz Zilio, é o que, de fato, fomenta a percepção de que os crimes não são punidos. “Na verdade, o que gera impunidade é a realização de trabalho policial sem respeito aos direitos fundamentais, pois será fatalmente anulado. Trabalho mal feito é trabalho perdido”, argumenta.

“A uniformização da jurisprudência é fundamental para que o Direito Penal seja aplicado de forma igualitária. Aliás, justamente por isso é que existe a dogmática penal. É preciso estruturar uma dogmática penal crítica, aberta não apenas às concepções progressistas da criminologia, como também às exigências político-criminais, de modo a perfeitamente constituir-se como labor criativo de limitação do poder punitivo.”

A discussão respinga em outro ponto delicado à atividade do Ministério Público, que é o controle da atividade policial. Conforme já reportado em pesquisas, diz o promotor, não é exagero afirmar “que tem havido alguma omissão de parte do MP frente às sistemáticas ilegalidades e violações de direitos que caracterizam a ação policial”.

Leia a seguir a entrevista na íntegra:

ConJur — Como conciliar a aplicação dos precedentes com as críticas de que isso, supostamente, gera impunidade?
Jacson Zilio — É exatamente o contrário. Na verdade, o que gera impunidade é a realização de trabalho policial sem respeito aos direitos fundamentais, pois será fatalmente anulado. Trabalho mal feito é trabalho perdido. As atividades de policiamento ostensivas e investigativas devem ser realizadas com o absoluto respeito aos direitos fundamentais, entre eles os direitos à intimidade, à privacidade e à liberdade. A verdadeira impunidade está na persecução penal livre, sem limites, incontrolada, que só provoca mais dor, violência e aviltamento dos direitos fundamentais. Quem quer mais estado penal, quer menos direitos humanos.

ConJur — Ainda nesta temática, o sr. acredita em impunidade no país? Se sim, qual a razão para que as ações penais não prosperem?
Jacson Zilio — Não há impunidade no Brasil. Eu vejo exatamente o contrário desse argumento insensível. O Brasil prende muito e prende muito mal: os delitos sem violência pessoal não deveriam, em nenhuma hipótese, ser punidos com pena privativa de liberdade. Além disso, estou convicto de que o tempo de prisão deveria ser reduzido bruscamente, porque a prisão provoca danos pessoais e sociais irreversíveis. Prender os indesejados aos olhos dos detentores do poder econômico e/ou político, hoje, infelizmente constitui o núcleo duro de funcionamento da política penal brasileira. Com isso eu não quero dizer que o Direito Penal deva ser redirecionado a partir de classes sociais. A história recente já mostrou que o uso político do Direito Penal é tão seletivo quanto a criminalização da pobreza. O problema não é de direção, mas de fundamento.

ConJur — Qual sua percepção sobre o sistema de precedentes no país? Há efetividade?
Jacson Zilio — A uniformização da jurisprudência é fundamental para que o direito penal seja aplicado de forma igualitária. Aliás, justamente por isso é que existe a dogmática penal. É preciso estruturar uma dogmática penal crítica, aberta não apenas às concepções progressistas da criminologia, como também às exigências político-criminais, de modo a perfeitamente constituir-se como labor criativo de limitação do poder punitivo. Logo, quando incorporada por valorações realistas, político e socialmente comprometidas, a dogmática penal pode escapar do mero rótulo de instrumento do poder constituído. Assim também acontece com a materialização da dogmática na jurisprudência. Mas é preciso empenho para construir um sistema de precedentes penais sob o terreno de dogmática crítica, porque o Direito Penal, como política legislada, deve estar na base de qualquer construção teórica, principalmente em tempos de exagerado poder interpretativo. Eu fico estarrecido com o empobrecimento da dogmática penal brasileira. Hoje sequer o princípio da legalidade é respeitado.

ConJur — O STJ concedeu 43 HCs por dia em 2023, sendo quase metade por tráfico. A que se deve tamanha intervenção nas instâncias inferiores?
Jacson Zilio — Grosso modo, pela crença religiosa na nefasta política penal de guerra às drogas e também pela persistência de interpretação aberta e equivocada da Lei 11.434/06. Em todo mundo, pelo menos na parte que eu conheço, a política penal de guerra às drogas só provocou encarceramento massivo, inclusive de mulheres, confrontos bélicos e mortes seletivas. Os próprios policiais são vítimas dessa política irracional. No Brasil, para piorar, a Lei 11.434/06 permite uma ampla discricionariedade policial na hora de definir quem é o “traficante perigoso”, com a porta aberta para indicativos de classe e raça. Some-se a isso um certo grau de falta de humanidade ou gozo pela perversidade, como se viu nas críticas à juíza do TJ-RR no caso do preso com frio.

ConJur — Por qual razão, na visão do sr., há tantas reformas de decisões de instâncias inferiores no STJ, principalmente em relação a tráfico de drogas?
Jacson Zilio — Porque, em parte, as instâncias inferiores ainda não internalizaram que o papel do juiz no Estado Democrático de Direito não é o de colaborar com as forças de segurança, mas sim controlar os poderes estabelecidos (do Executivo e do Legislativo) e os poderes selvagens (os poderes particulares do mais forte sobre o mais fraco). O juiz deve ser um obstáculo às políticas criminais, porque, antes de qualquer coisa, tem como principal função garantir que os direitos individuais não sejam consumidos pelo discurso dos direitos sociais. Do contrário, a democracia material do Estado de Direito (que protege as minorias das maiorias) seria desmanchada pela democracia formal do Estado Totalitário (que protege as maiorias das minorias). Por isso mesmo é preciso insistir no fortalecimento da autonomia e independência do judiciário e do MP, como postulado fundamental para superar a implantação do Estado preventivista, a fim de proteger os direitos básicos dos cidadãos derivados do Estado de Direito e do legado do Iluminismo.

ConJur — Dentro deste contexto, o MP exerce, efetivamente, o controle sobre a atividade policial?
Jacson Zilio — O CNMP estabeleceu regras mínimas de atuação do MP no controle externo da investigação de mortes decorrentes de intervenção policial e disciplinou essa função constitucional. Mas, apesar disso, uma parcela do MP, em alguma medida, tem ainda muita relação de proximidade com as agências policiais. Como mostraram [a socióloga e ex-diretora do diretora do Departamento do Sistema Pentitenciário do Rio de Janeiro] Julita Lemgruber e outras pesquisadoras, não parece exagero dizer que tem havido alguma omissão de parte do MP frente às sistemáticas ilegalidades e violações de direitos que caracterizam a ação policial e o funcionamento do sistema prisional no Brasil. Segundo elas afirmaram, há, sem dúvida, iniciativas louváveis visando à reversão desse quadro, como as do próprio CNMP, mas provêm de indivíduos ou grupos, não de um esforço concentrado da instituição para enfrentar os graves e crônicos problemas dessas duas áreas.

ConJur — Há muitas críticas direcionadas a órgãos superiores, como o Supremo e o STJ, em relação a HCs, soltura de supostos criminosos, etc. Como o sr. vê essas críticas? 
Jacson Zilio — A crítica não deve ser algo preocupante. A ausência dela, sim. Penso que precisamos discutir melhor e mais publicamente as decisões judiciais. O problema está em se concentrar apenas nas decisões dos tribunais superiores e, ainda, só quando se trata de concessão de liberdade. Isso imuniza as instâncias inferiores e os problemas das decisões repressivas. Há muito mais espaço para crítica nas decisões de primeira e segunda instâncias e naqueles casos de aplicação errada, abusiva e desproporcional do poder punitivo. Mas toda crítica deve partir, no mínimo, de conhecimentos básicos sobre a organização e funcionamento do sistema legal.

ConJur — Como recebeu as informações do pedido de remoção e do PAD contra o sr.? Já imaginava que teria relação com seus posicionamentos processuais?
Jacson Zilio — Recebi sem nenhuma surpresa. A ideologia de defesa social é hegemônica no MP brasileiro e na própria magistratura. Ela forja, dentro de uma lógica mercadológica expansionista do capital, potencializada no neoliberalismo, uma espécie de sujeito autoritário-burocrático, aquele mesmo tipo de personalidade a que se dedicava [o filósofo alemão Theodor] Adorno, que não suporta qualquer divergência intelectual, justamente porque se constitui num padrão de comportamento antidemocrático de senso comum. Por isso, eu penso que esse comportamento persecutório seletivo ideológico porque representa uma organização de opiniões, atitudes e valores está longe de ser raro. Por outro lado, também não me surpreendeu a receptividade ideológica da imprensa televisiva, porque compartilham das mesmas opiniões, atitudes e valores reacionários. Mas eu confesso que o mais gratificante talvez tenha sido a resistência enfática da comunidade jurídica, inclusive de parcela de membros da instituição, que depois da “lava jato” já não suporta mais tantos abusos.

ConJur — Tendo em vista que seus posicionamentos têm relação com os precedentes do STJ, a que o sr. credita os procedimentos na corregedoria?
Jacson Zilio — Credito essa resistência aos precedentes ao completo desconhecimento das razões pelas quais o STJ e o STF endureceram, nos últimos anos, os critérios de buscas pessoais e domiciliares. Bastava lerem atentamente, antes de qualquer tentativa de patrulhamento ideológico, o voto esclarecedor do ministro Schietti (RHC 158.580). Lá, ele reconhece que o policiamento ostensivo se concentra em grupos marginalizados definidos por fatores subjetivos, como idade, cor da pele, gênero, classe social, local da residência, vestimentas etc. É então essa discricionariedade policial na identificação de suspeitos de práticas criminosas que fragiliza os direitos à intimidade, à privacidade e à liberdade. Os precedentes rigorosos do STJ e do STF sobre buscas pessoais e domiciliares existem exatamente para evitar que as abordagens aleatórias tenham preferência racial e classista.

Penso também que os procedimentos estão baseados em dois equívocos jurídicos corriqueiros: primeiro, é o de dar relevância à quantidade de drogas quando o problema central está na ilegalidade prévia; segundo, de achar que o momento de recebimento da denúncia (admissibilidade da ação penal) é prematuro. O próprio STJ já afirmou que pouco importa a quantidade de drogas encontrada, dado que, em processo penal de um Estado Democrático de Direito, os fins não justificam os meios, não se podendo legitimar a ação cometida por agentes públicos a aspectos aleatórios decorrentes da gravidade maior ou menor do crime descoberto.

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