Opinião

Admissibilidade pode se confundir com negativa de seguimento?: Tema 1.246/STJ

Autores

  • é pós-doutor doutor e mestre em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA) professor do Centro Universitário do Pará (Cesupa) e do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP/DF) procurador do estado do Pará e advogado.

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  • é doutorando e mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) (com ênfase em Direito Processual Civil) pós-graduado em Direito Processual Civil pela Faculdade Baiana de Direito pesquisador do Grupo de Pesquisa CNPq/UnB Processo Civil Acesso à Justiça e Tutela dos Direitos membro da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil (ABPC) integrante e orador da primeira equipe da UnB na 1ª Competição Brasileira de Processo (CBP) e advogado.

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6 de maio de 2024, 6h01

É possível haver repetitivo sobre questão atinente à admissibilidade do recurso especial? Quem fez essa indagação recentemente foi o professor José Miguel Garcia Medina, em vídeo que comenta a recente afetação do Tema 1.246, para apreciação e julgamento na sistemática dos recursos especiais repetitivos.

Este texto, portanto, é uma contribuição ao debate que será travado no Superior Tribunal de Justiça e uma homenagem ao próprio professor Medina, por provocar na comunidade acadêmica reflexões sobre o importante papel dos repetitivos no nosso país.

A pertinência da questão é imensa, especialmente pelo fato de já ter havido uma certa discussão sobre isso (só que no contexto da repercussão geral) quando o Supremo Tribunal Federal teria elaborado e posteriormente cancelado o Tema 1.155/STF (que foi objeto de estudo específico pelos ora subscreventes [1]).

Ademais, também há relevância nesse debate por se tratar de uma barreira que corriqueiramente é enfrentada pela advocacia: os requisitos de “admissibilidade” e de “negativa de seguimento” de recursos excepcionais.

Direto ao ponto

Para compreender de forma eficiente o presente texto, é necessário que o leitor tenha uma clara noção da distinção entre “negativa de seguimento” e “inadmissibilidade”, isso no que concerne à apreciação feita nos recursos especial e extraordinário pela presidência ou vice-presidência do tribunal local, nos termos do artigo 1.030, do CPC.

Embora ainda sejam alvos de marcante confusão jurisprudencial, esses conceitos são relevantíssimos para uma compreensão mais palatável da sistemática de interposição recursal contra o pronunciamento do tribunal que realiza o primeiro juízo de prelibação do recurso excepcional. Um interessante artigo sobre o tema é o do próprio Medina, publicado também no presente veículo [2].

Indo direto ao ponto, entendemos que não é possível a fixação de questões atinentes à admissibilidade do recurso especial em teses de repetitivo ou de repercussão geral. Proceder dessa forma seria violar a própria lógica procedimental claramente prevista no CPC, subvertendo o objetivo do próprio sistema processual.

Aliás, não se pode esquecer, também pela leitura do artigo 1.030 do nosso código, que são utilizadas duas espécies de filtros recursais no âmbito da prelibação dos recursos excepcionais. A primeira é voltada à análise de violação ou não de precedentes e, igualmente, à verificação da presença de repercussão geral  (inciso I, com a possível e futura inclusão dos casos envolvendo a relevância da questão federal — decisão sujeita a agravo interno e com vários problemas práticos daí decorrentes e que foram objeto de estudo anterior [3]).

A segunda é a da verificação de questões eminentemente formais (ligados aos obstáculos processuais que podem, de toda sorte, chegar aos STJ pela classe do Agravo em Recurso Especial/ Extraordinário – artigo 1.030, V e §1º, do CPC) [4].

Recursos cabíveis

No atual código, portanto, há uma clara distinção entre as hipóteses de interposição de agravo interno e de agravo em recurso especial para impugnar o conteúdo do primeiro juízo de admissibilidade realizado. Enquanto o agravo interno serve para impugnar questões atinentes a pretensões contrárias a repetitivos ou decisões em repercussão geral e, quem sabe, em relevância de questão federal (além também da hipótese de verificação da existência ou não de repercussão geral/ relevância no tema debatido — artigo 1.030, I e §2º, do CPC), o agravo em recurso especial/extraordinário visa a questionar decisões de inadmissibilidade que versam sobre os (demais, para alguns) requisitos processuais dos recursos excepcionais, tais como óbices ligados, por exemplo, à alegação de violação de direito local, à falta de prequestionamento, à  ausência de pagamento de custas, entre outros (artigo 1.030, V  §1º, do CPC).

A distinção, portanto, é evidente: quando a decisão versar sobre afronta a “precedente” em repetitivo ou em repercussão geral, ou sobre a ausência de repercussão geral (e, futuramente, de relevância), o recurso cabível será o agravo interno, a fazer com que a discussão seja levada ao tribunal da origem, e não ao tribunal superior. Por sua vez, quando a decisão tratar de questões processuais não relacionadas aos temas acima, será o caso de agravo em recurso especial para levar a questão ao tribunal superior.

‘Negativa de seguimento’

Logo, pela lógica legislativa (artigo 1.030, V, §1º e 1.042, do CPC, por exemplo), quem analisa por último a ocorrência de equívoco processual na interposição de recurso especial é, em regra, o tribunal superior. Somente nos casos de “negativa de seguimento”, que têm sólida vinculação temática com a noção de repetitivos e de repercussão geral (e, no futuro, de relevância), é que será cabível a interposição de agravo interno.

Pois bem. Entre as possibilidades de interposição de agravo em recurso especial para o STJ, a que corriqueiramente gera  a sua ocorrência é a de incidência da Súmula 7 dessa corte, utilizada para vedar processualmente simples pretensões de reexame de prova. A análise com base nessas súmula verifica requisito processual (óbice processual/ formal), isso porque o que se investiga é a pretensão recursal com o objetivo de aferir se a futura decisão meritória (ou seja, se o provimento ou a negativa de provimento do recurso) demandará o reexame de provas.

É, portanto, eminentemente processual, isso porque em nenhum momento da análise com base nessa súmula será possível concluir que a pretensão recursal foi acolhida ou não. O que se verifica, em verdade, é apenas se será necessário analisar as provas do feito para decidir de forma contrária à conclusão fática positivada pelo acórdão recorrido e impugnada no recurso.

De todo modo, a explicação acima é relevante pela seguinte constatação: em se verificando que o juízo de admissibilidade com base na Súmula 7 nada tem a ver com o provimento recursal, ou então com a existência de repercussão geral e, futuramente, de relevância, fica mais do que claro que o requisito por ela estabelecido não possui elementos suficientes para se inserir na hipótese de “negativa de seguimento”.

Portanto, não se investiga a procedência do pleito recursal à luz de decisão em repetitivos e/ou repercussão geral, ou de verificação a respeito de se uma determinada questão debatida no recurso teria repercussão geral (e futuramente relevância) [5].

Riscos

Logo, o que estamos demonstrando é que o CPC foi claro na sua sistemática, estabelecendo hipóteses distintas de impugnação recursal para situações que comungam de características semelhantes. A análise da súmula em comento (a título de exemplo apenas) não possui as mesmas características das verificações feitas para constatar a ocorrência de hipóteses de negativa de seguimento (filtros qualitativos, como mencionado acima).

Trata-se de tema que mais se amolda às hipóteses gerais de inadmissibilidade recursal, o que torna imperioso concluir que transformá-las em circunstância de interposição de agravo interno acabará deturpando a própria lógica procedimental, sem lei que ampare tal modificação.

O Tema Repetitivo 1.246 do STJ (afetação dos REsps 2.082.395/SP e 2.089.629/SP), com determinação de “suspensão somente dos recursos especiais ou agravos em recurso especial pendentes que versem sobre a questão delimitada e em trâmite no território nacional” tem a seguinte questão sob julgamento:

“In)admissibilidade de recurso especial interposto para rediscutir as conclusões do acórdão recorrido quanto ao preenchimento, em caso concreto em que se controverte quanto a benefício previdenciário por incapacidade (aposentadoria por invalidez, auxílio-doença ou auxílio-acidente), do requisito legal da incapacidade do segurado para o exercício de atividade laborativa, seja pela vertente de sua existência, de sua extensão (total ou parcial) e/ou de sua duração (temporária ou permanente)”

Com efeito, apesar de tratar de situação específica de questão previdenciária, caso seja firmada essa tese na sistemática dos repetitivos em matéria que hoje está sujeita à incidência da Súmula 7, seu resultado poderá ser replicado em diversas outras situações da prática forense, o que trará riscos ao cenário dos filtros recursais e modificará, por via transversa, a realidade pretendida pelo legislador processual.

Mediante um enunciado fático que versa exatamente sobre hipótese de incidência da Súmula 7, se instaurará um debate sobre a possibilidade dessa súmula incidir nos casos descritos no trecho transcrito acima e, além disso, se verificará se o recurso para impugnar essa incidência, caso reconhecida no tribunal da origem em casos futuros, será o de agravo interno.

Em outras palavras: no caso específico tratado no Tema 1.246 será debatido se a violação à Súmula 7 poderá ser considerada como hipótese de negativa de seguimento, a não mais ser cabível agravo em recurso especial, mas somente o agravo interno. Essa opção acabará impedindo a subida da questão ao próprio STJ, salvo se o tribunal recorrido modificar seu próprio entendimento no âmbito de agravo interno.

Para que não restem dúvidas, eis a explicação contida em uma das decisões que determinaram a afetação (passagens do voto do exmo. ministro relator Paulo Sérgio Domingues na ProfAfR nos Recursos Especiais 2.082.395/SP e 2.098.629/SP):

“Em síntese, parece correto dizer que é legítima e conspira a favor da desejada funcionalidade do STJ a elevação de sua orientação jurisprudencial persuasiva à condição de precedente vinculante (recurso repetitivo), ainda quando se cuide de controvérsia jurídica relativa à própria admissibilidade do recurso especial, i.e., de controvérsia atinente ao preenchimento dos requisitos necessários para o conhecimento do recurso especial pelo Tribunal. Nesse agir, estará o STJ extraindo do sistema brasileiro de precedentes vinculantes a sua máxima potencialidade, conferindo às instâncias de origem o instrumental processual adequado para negar seguimento, com fundamento no art. 1.030, I, “b”, do CPC, a recursos especiais notoriamente incognoscíveis que venham a ser interpostos, já que esse descabimento do especial estará, finalmente, assentado em tese fixada em recurso especial repetitivo.

É em respeito a essa ordem de ideias que submeto ao crivo do colegiado a presente proposta de afetação, que versa sobre controvérsia há muito pacificada no âmbito do STJ, a estabelecer que, por demandar inevitável reexame de fatos e provas, é inadmissível o recurso especial interposto para rediscutir as conclusões das instâncias ordinárias quanto ao preenchimento ou não preenchimento do requisito legal da incapacidade do segurado, em demandas nas quais se controverte quanto ao direito a benefício previdenciário por incapacidade (aposentadoria por invalidez, auxílio-doença ou auxílio-acidente).”

Com a explicação acima, dois pontos precisam ser destacados. Em primeiro lugar, é criticável a positivação de circunstâncias prévias e inquestionavelmente específicas de incidência das súmulas 7, pautadas em casos concretos.

A análise da incidência dessa súmula deve ocorrer no caso a caso, e não por meio de fixação prévia de hipóteses abstratas e genéricas. Se o STJ estiver objetivando fixar em repetitivo uma circunstância na qual haja claramente uma hipótese de incidência das súmulas, pensamos que tal empreitada somente teria força pedagócia, e não “precedentalista”.

Em segundo lugar, e mais importante, é o fato de que, mesmo se tratando de caso concreto, não haverá nenhuma razão jurídica para impedir a ampliação da tese que for fixada nesse tema para outras hipóteses. A Súmula 7 do STJ (tal como a Súmula 5 dessa mesma Corte) não tem vinculação ontológica com as circunstâncias concretas que serão debatidas nesse tema. Ela serve não só para esse caso concreto, mas para uma série de outras situações.

Temos ciência da quantidade de Agravos em Recurso Especial envolvendo a situação aqui tratada e a incidência da Súmula 7 (tantas vezes já decidida pelo próprio STJ). A crítica apontada neste texto é quanto à forma, ou seja, à tentativa de superação dessa crise numérica, especialmente em uma classe cujo percentual de êxito nos últimos anos tem sido notoriamente muito baixo.

Consequentemente, ao definir, nesse caso concreto, que situações sujeitas à incidência da Súmula 7 possam se transformar em hipótese de “negativa de seguimento”, em razão de eventual tese em repetivo, sem que ocorra  uma interpretação restritiva dos efeitos desse “precedente” pelo próprio STJ, a própria razão de existência das variáveis contidas no artigo 1.030 do CPC estará sendo afrontada, tendo em vista que a ratio estabelecida nesse tema poderá ser aplicada a todas as outras hipóteses de aplicação do aludido enunciado sumular.

Conclusão

Portanto, entendemos que não haveria razão procedimental para uma distinção, salvo por eventual juízo de excepcionalidade, tal premissa que, embora seja criticável, talvez se justifique, ao menos considerando que a própria modificação que se estabelecerá com esse debate também já se configurará como uma alteração legislativa indireta e ocorrida pela via judicial.

O melhor caminho, a nosso ver, em conformidade com o atual CPC, é a rejeição da tese proposta, considerando o que foi exposto aqui neste texto, sem prejuízo de novos filtros previstos em lei futuramente (em especial com a regulamentação da relevância da questão federal).

 


[1] https://www.conjur.com.br/2022-set-23/araujoe-nery-consequencias-relacao-agravo-interno-are/. Acesso em 22.04.2024.

[2] https://www.conjur.com.br/2021-out-06/processo-admissibilidade-res-resps-tribunal-recorrido/. Acesso em 22.04.2024.

[3] https://www.conjur.com.br/2021-jun-11/artx-jose-mouta-mandado-seguranca-reclamacao-instrumentos-visando-aplicacao-precedentes-qualificados/ Acesso em 22.04.2024.

[4] Vale destacar que, embora esteja inserida na primeira espécie de filtro, a existência de repercussão geral em determinada questão é um requisito processual, isso porque não afeta o mérito propriamente dito da demanda recursal. O mesmo se pode dizer da relevância no recurso especial (quando passar a ser exigida). O que diferencia esses dois requisitos dos demais é a preponderância desse aspecto específico de verificação.

[5] Assunto que, neste momento, também julgamos tratar-se questão processual, isso porque não afeta o mérito do pedido propriamente dito.

Autores

  • doutor e mestre pela UFPA (com estágio de pós-doutoramento na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa), professor do Centro Universitário do Estado do Pará (Cesupa) e procurador do estado do Pará e advogado.

  • é doutorando e mestre em Direito pela UnB (com ênfase em Direito Processual Civil), especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade Baiana de Direito, bacharel em Direito pela UnB e advogado.

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