Direito Civil Atual

Franchise encroachment: 'invasão' do território exclusivo pelo franqueador

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6 de maio de 2024, 9h22

Franquia é o contrato colaborativo, de natureza empresarial, por meio do qual o franqueador concede ao franqueado — terceiro independente e autônomo — os direitos de utilizar sua marca de modo não exclusivo, distribuir produtos e/ou serviços sob um formato mercadológico previamente determinado e de receber o know how necessário para viabilizar a instalação e operação do empreendimento segundo parâmetros definidos pelo franqueador [1].

ConJur

Trata-se, segundo parcela da doutrina, de um contrato nominado, mas atípico, já que a Lei nº 13.966/2019, que atualmente dispõe sobre o “sistema de franquia empresarial”, endereça precipuamente a regulamentação da circular de oferta de franquia (COF), mas não os termos, as cláusulas e as condições a serem observados no contrato celebrado entre franqueador e franqueado [2].

Na coluna de hoje, vamos chamar a atenção para alguns problemas em decorrência da pactuação de exclusividade como um direito do franqueado.

A exclusividade a que fazemos menção é a territorial [3], isto é, o direito de o franqueado ser o único a comercializar os produtos e/ou serviços da franquia em determinada área pré-definida (bairro, município, região, Estado, raio a partir de um ponto específico etc.) [4].

Normalmente, esse direito tem seu prazo previamente definido em contrato, em razão da necessidade de expansão da rede, inerente a esse sistema de vendas. Mas também é possível que o contrato não estipule prazo algum ou que a exclusividade apareça associada a um certo direito de preferência assegurando ao franqueado a opção por empreender novas unidades da rede dentro de determinado território. Não o exercendo, naturalmente, o franqueador poderia operar a unidade ou encarregá-la a um terceiro [5].

Jurisprudência

Série de julgamentos no Tribunal de Justiça de São Paulo demonstra importantes embates a respeito da abrangência da exclusividade territorial, tendo por escopo definir se a instituição de e-commerce próprio (online) pelo franqueador e a realização de vendas por meio do marketplace de terceiros violaria esse direito.

Firmou-se o entendimento de que como as vendas via internet não podem ser limitadas a uma região geográfica específica, atingindo, também, o território exclusivo, o ilícito contratual teria se materializado [6]. Em outro caso, envolvendo contrato de licenciamento de uso de marca e outras avenças, o TJ-SP chegou à idêntica conclusão, mesmo não tendo havido prova de que ocorreram vendas, por parte da empresa licenciadora, dentro do território exclusivo [7].

O Superior Tribunal de Justiça também já tratou do tema. Num dos casos julgados pela Corte, envolvendo franquia do segmento de locação veicular, o franqueador — em certo ponto da relação contratual — decidiu estabelecer novo serviço, do tipo “corporate fleet”, baseado em contratos de longa duração, em paralelo à modalidade de “rent a car”, de locações eventuais, estipulando que somente este segundo estaria protegido pela exclusividade.

O STJ manteve a decisão do Tribunal Local, chancelando a conclusão de que estabelecer unilateralmente outro produto/serviço a ser comercializado dentro do território do franqueado viola a exclusividade [8].

Franchise encroachment

Esses exemplos da jurisprudência brasileira demonstram, atualmente, o que em estudos estrangeiros convencionou-se denominar “franchise encroachment”. Encroachment [9], originariamente, é uma expressão anglófona cuja origem remonta aos property rights [10], significando “[…] uma invasão ou intrusão ilícitas por parte de um titular de um prédio urano, ou outra estrutura, no prédio de outrem.” [11]

Transposta para as franquias, o encroachment retrata, metaforicamente, a “invasão” do franqueador sobre o território exclusivo onde o franqueado detém o monopólio da comercialização dos produtos e/ou serviços da marca.

O fenômeno geralmente ocorre diante do desalinhamento entre os interesses do franqueador e dos franqueados, por exemplo, quando há a necessidade de expansão da rede, mas os direitos de exclusividade originariamente pactuados configuram obstáculo ao crescimento do empreendimento [12].

A “invasão” pode ocorrer de várias formas, através da: instalação de uma nova unidade da marca dentro do território exclusivo, operada pelo franqueador ou por outro franqueado; criação de novas unidades, sob a designação de outra marca, embora tendo por escopo a comercialização de produtos e/ou serviços no mesmo ramo de atividade; desenvolvimento de canais alternativos de venda, em paralelo à rede de franquias (ex. outros distribuidores varejistas, como supermercados e farmácias); vendas por telemarketing ou catálogo; vendas pela internet, executadas diretamente pelo franqueador [13]. Veja-se que alguns desses exemplos são reconduzíveis aos casos extraídos da jurisprudência e abordados logo acima.

A configuração ou não do descumprimento do contrato pelo franqueador — e consequências cíveis do inadimplemento — dependerá, todavia, do que houver sido estipulado pelas partes em contrato.

Sob outra perspectiva, não se pode descurar das situações em que o franqueado viola os direitos de monopólio associados à exclusividade, “invadindo” os territórios exclusivos de outros franqueados. Isso se tornou mais comum em tempos recentes por causa dos serviços de delivery, que possibilitam ao franqueado atender clientes de outros territórios, sem depender das vendas presenciais [14].

A principal disputa dos franqueados, todavia, costuma endereçar o (des)cumprimento da obrigação de não concorrer com o franqueador, seja durante a execução ou após a extinção do contrato de franquia [15].

Recente estudo, publicado na Revista de Direito Civil Contemporâneo, analisou a questão sobre outro vértice, qual seja a responsabilidade civil do terceiro — isto é, pessoa estranha ao franqueado e ao franqueador — por interferir no cumprimento da cláusula de exclusividade, mas essa discussão foge do escopo ora proposto [16].

Para concluir: diante dos rumos tomados pela jurisprudência no que respeita às possíveis interferências do franqueador no território do franqueado, é essencial que a circular de oferta de franquia e respectivo contrato esmiucem de modo detalhado a abrangência da exclusividade territorial, e o que o monopólio de comercialização de produtos e/ou serviços da marca no território efetivamente engloba.

Do mesmo modo, imperioso que ambos os instrumentos disciplinem a concorrência intramarca entre os franqueados, evitando a materialização de potenciais conflitos internos. O tratamento contratual mais aprofundado do tema, frise-se, dá concretude ao previsto no art. 2º, inciso XI, a), b) e c), e inciso XXI, da Lei n. 13.966/2019 [17], e tende a pelo menos mitigar os problemas ora relatados.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

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[1] AMENDOEIRA Jr., Sidnei. Contrato de franquia. In: _______; TARDIOLI, Fernando; PRADO, Melitha Novoa. Franchising. São Paulo: RT, 2021. p. 237-265.

[2] AMENDOEIRA Jr., Sidnei. Contrato de franquia… cit.

[3] Obrigação também presente, mas por ora não analisada, é a exclusividade como obrigação de compra exclusiva pelo franqueado dos produtos produzidos ou disponibilizados pelo franqueador, presente em algumas espécies de franquias.

[4] FORGIONI, Paula. Contrato de distribuição. 3. ed. São Paulo: RT, 2014.

[5] CARNEIRO, Thiago. Franquia: análise econômica e jurídica à luz do novo diploma legal. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2020.

[6] TJSP, Apelação Cível 1112058-22.2020.8.26.0100, Rel. Des. Cesar Ciampolini. 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 18/05/2022, DJe 19/05/2022; TJSP, Apelação Cível 1007404-78.2020.8.26.0004, Rel. Des. Ricardo Negrão, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 08/11/2022, DJe 09/11/2022; TJSP, Apelação Cível 1091397-22.2020.8.26.0100, Rel. Des. Jane Franco Martins, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 26/04/2023 DJe 27/04/2023; TJSP, Apelação Cível 1070000-04.2020.8.26.0100, Rel. Des. Cesar Ciampolini, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 14/11/2023, DJe 16/11/2023.

[7] TJSP, Apelação Cível 1013602-68.2019.8.26.0004, Rel. Des. Jane Franco Martins, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 24/05/2023, DJe 26/05/2023.

[8] STJ, REsp 1.741.586/MG, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, 3ª T, j. 07/06/2022, DJe 13/06/2022.

[9] Encroachment não é o mesmo que o trespassing. Embora ambos envolvam alguma espécie de interferência indevida sobre os direitos de propriedade alheios, no encroachment há uma espécie de avanço (construção ou plantação) sobre o solo alheio, sem o consentimento do proprietário. O trespassing, por sua vez, é configurado pela invasão da propriedade alheia, ausente consentimento do proprietário. Frise-se que se trata de uma explicação bastante simplificada, apenas para fins didáticos e restritos a esta coluna.

[10] Optou-se pelo uso do termo mais adequado na língua inglesa. A tradução aproximada para o direito português seria direitos reais.

[11] GONÇALVES, Fernando Manuel Canas. Franchise Encroachment: a (alegada?) opressão dos franquiados ou requisito (necessário?) de crescimento da rede. Coimbra: Almedina, 2021. E-book.

[12] GONÇALVES, Fernando Manuel Canas. Franchise Encroachment… cit.

[13] GONÇALVES, Fernando Manuel Canas. Franchise Encroachment… cit.

[14] SANTOS, Alexandre David. Obrigações pós-contratuais, confidencialidade e não concorrência nos contratos de franquia. In: AMENDOEIRA Jr., Sidnei; TARDIOLI, Fernando; PRADO, Melitha Novoa. Franchising. São Paulo: RT, 2021. p. 478-530.

[15]A propósito, em especialmente sobre as origens da discussão sobre não concorrência após o trespasse de estabelecimento, ver RODRIGUES JR., Otavio Luiz Rodriges. Estatuto epistemológico, Constituição e direitos fundamentais. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2023. p. 84-85.

[16] MARANHÃO, Amanda Arraes de Albuquerque; BARRETO, Júlia D’Alge Mont’Alverne. A responsabilidade de terceiro por violação da cláusula de exclusividade. Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 38. p. 169-199, jan./mar. 2024

[17] Art.  2º Para a implantação da franquia, o franqueador deverá fornecer ao interessado Circular de Oferta de Franquia, escrita em língua portuguesa, de forma objetiva e acessível, contendo obrigatoriamente:

XI – informações relativas à política de atuação territorial, devendo ser especificado:

  1. a) se é garantida ao franqueado a exclusividade ou a preferência sobre determinado território de atuação e, neste caso, sob que condições;
  2. b) se há possibilidade de o franqueado realizar vendas ou prestar serviços fora de seu território ou realizar exportações;
  3. c) se há e quais são as regras de concorrência territorial entre unidades próprias e franqueadas;

[…]

XXI – indicação das regras de limitação à concorrência entre o franqueador e os franqueados, e entre os franqueados, durante a vigência do contrato de franquia, e detalhamento da abrangência territorial, do prazo de vigência da restrição e das penalidades em caso de descumprimento.

Autores

  • é advogado, doutorando em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), mestre em Direito das Relações Sociais pela Faculdade de Direito da UFPR e membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (RDCC).

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