Opinião

Os novos Sísifos: em busca da justiça, pela eternidade

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6 de maio de 2024, 10h20

Se o STJ entende que a matéria ventilada em um Recurso Especial é de índole constitucional, rejeita-o. Entretanto, no recurso extraordinário ao STF, muitas vezes a Corte Suprema diverge, remetendo o contribuinte à instância inferior, por entender que a matéria é questão infraconstitucional.

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O jurisdicionado vê-se, como Sísifo, na mitologia grega, ao sopé da montanha novamente, mesmo coberto de razão, destinado a agravar as decisões, para carregar a pedra insuportável da insegurança e da demora, e castigado pelos deuses sem ter cometido falta alguma. Esse é o “limbo jurisdicional” em que o pleito pode não ser examinado por nenhum tribunal. E não suponham que o problema seja raro ou que não traga consequências.

No importante julgamento da Corte Suprema, de 2022, sobre a coisa julgada em que, pela primeira vez, o tribunal estabeleceu o confronto entre o controle objetivo de constitucionalidade em relação ao subjetivo, limites e efeitos, Tema nº 881 (RE 942.297/CE) e Tema nº 885 (RE 955.277/BA), deu-se fenômeno similar em que, somente em 2016, depois de resistência relativamente longa, a questão da coisa julgada foi qualificada de repercussão geral.

No período de resistência, em que o Supremo firmara a ideia de que a controvérsia teria caráter infraconstitucional, pronunciou-se o STJ em favor dos contribuintes, no REsp 1.118.898/ MG, em regime dos repetitivos. Sob a relatoria do ministro Roberto Barroso, a Corte mudou de posição para conhecer o extraordinário em 2016, ponderando sobre a relevância econômica e jurídica da coisa julgada.

Afinal, no mérito, no julgamento de 2022, o STF decidiu em sentido oposto àquele do STJ, tribunal para o qual tinham os contribuintes sido direcionados pelo próprio STF, sem entretanto, modular os efeitos do julgado. Apenas recentemente as multas incidentes foram suprimidas.

Igualmente, na chamada causa do século, de 2017, relativa à exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS/Cofins, Tema 69 (RE 574.706), o STF redirecionou os julgados, no longo percurso até o desfecho, para o STJ. Mas, daquela feita, o STJ decidiria a questão em favor da Fazenda Pública, ou seja, seria indevida a exclusão do ICMS.

Com a reversão posterior, ao voltar a lide ao STF, houve pronunciamento favorável aos contribuintes, com a relevante diferença de que a intervenção do STJ não seria ignorada, e redundaria em modulação de efeitos, atenuadora das consequências da decisão.

‘Limbo’

Essa dança, em que não se conhecem recursos extraordinários por entender o STF que a questão é infraconstitucional, e, ao mesmo tempo, paralelamente, o STJ identifica verdadeira matéria constitucional na mesma questão, cria um “limbo”, um vácuo a partir do qual o recurso pode não ser analisado por nenhum tribunal.

Essa zona cinzenta se apresenta não apenas em questões tributárias ou previdenciárias, mas ainda nas relações trabalhistas ou cíveis. Esse conflito negativo de competência é mais agudo, porém, no campo tributário, administrativo ou financeiro, em que vicejam as normas gerais, veiculadas por leis complementares (ou mesmo ordinárias).

Coube a Souto Maior Borges, em obra sobre o tema, forte na teoria kelseniana da hierarquia das normas e de sua validade, assentar o pensamento nos tribunais de que a superioridade de uma lei complementar sobre outras leis não advém do procedimento legislativo do qual decorre — quórum especial — mas do fato de ela ditar os fundamentos de validade de outras (e se o ditar).

Somente as leis complementares que veiculam normas gerais – que, portanto, vão determinar os requisitos de validade – das normas inferiores, editadas pelas ordens jurídicas parciais (federal, estadual e municipal), são hierarquicamente superiores. Igualmente um decreto do executivo, extra legem ou contra legem, ferirá tanto o princípio da legalidade consagrado na Constituição como cláusula pétrea e, ao mesmo tempo, violará o art. 97 do CTN.

Exemplo de aplicação recentíssima dessa posição, para nós doutrinariamente consolidada, refletiu-se em brilhante voto exarado pela ministra Regina Helena Costa no Agint no Recurso Especial nº 1.906.018 –PR, abril de 2024, em que se enfrentou aquele “limbo jurisdicional”.

Tratava-se do mesmo dilema de sempre: o STJ entendeu, naquele caso concreto, que a matéria é constitucional, enquanto o STF, ao contrário, rejeitou o recurso extraordinário por entender que é infraconstitucional. A ministra clareou as relações entre a lei complementar e a lei ordinária, valendo-se do critério da validade. E assim pontua:

“nessa ambiência, ganha relevo a diretriz segundo a qual, na hipótese de a lei ordinária encontrar seu fundamento de validade também na lei complementar, o exame da controvérsia cabe ao Superior Tribunal de Justiça, porque, consoante exposto nesse caso, então, a lei ordinária extrairá seu fundamento de validade mediatamente da Constituição e imediatamente da lei complementar. ” (p.12).

E, então, a turma acolheu o recurso especial com que se evitou o chamado “limbo jurisdicional”.

Esperemos que a decisão do STJ se consolide nas duas turmas, tirando dos ombros dos novos Sísifos, a pedra dura da insegurança e da injustiça.

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