Hora da Desglobalização

EUA reforçam protecionismo com nova lei contra extorsão

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26 de fevereiro de 2024, 13h21

A Lei de Prevenção à Extorsão Estrangeira (Foreign Extortion Prevention Act — Fepa) foi sancionada pelo presidente norte-americano, Joe Biden, no fim de 2023, para responsabilizar funcionários públicos estrangeiros que pedem propina a empresas dos EUA.

O texto apareceu de última hora na Lei de Autorização da Defesa Nacional de 2024, um pacote militar costurado para promover interesses da indústria armamentista dos EUA e lançar medidas protecionistas contra a concorrência russa e chinesa.

As circunstâncias da aprovação da Fepa sugerem uma retomada do discurso anticorrupção como ferramenta de protecionismo econômico.

A Fepa é um complemento à Lei de Práticas Corruptas Estrangeiras (Foreign Corrupt Practices Act — FCPA), criada há quase 50 anos para penalizar empresas norte-americanas envolvidas em corrupção. A norma ganhou musculatura nas últimas duas décadas, mas é reconhecida hoje mais como um instrumento de defesa de interesses econômicos dos EUA do que uma norma anticorrupção.

A julgar pelo discurso de lobistas e políticos envolvidos na aprovação da Lei Antiextorsão, seu objetivo é, assim como o FCPA, promover a indústria norte-americana e abrir novos mercados. As palavras-chave do discurso dos defensores da Fepa no Congresso norte-americano foram “proteger empresas americanas”, “manter os EUA competitivos” e “melhorar a competitividade” dos EUA.

“Esta é uma reforma de consenso que ajudará a manter os EUA competitivos na economia global”, afirmou sobre a aprovação da Fepa a Câmara de Comércio dos EUA. “Nossa legislação ajudará a promover a livre iniciativa e a proteger as empresas americanas”, disse o senador republicano Thom Tillis.

A Fundação para Defesa das Democracias (FDD Action), um lobby armamentista, foi um dos apoiadores da Fepa. “A FDD Action apoiou fortemente a inclusão da Fepa na Lei de Autorização de Defesa Nacional de 2024. Essa lei é crítica para ajudar a melhorar a competitivade das empresas dos EUA”, afirmou em nota.

A organização Transparência Internacional, que no Brasil trabalha contra as empresas nacionais — e para submetê-las a multas bilionárias —, nos Estados defende a promoção do interesse nacional e a proteção da iniciativa privada.

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“A Fepa cria uma nova e poderosa ferramenta para combater a corrupção estrangeira na sua origem e proteger os americanos e as empresas americanas”, diz Scott Greytak, diretor da Transparência Internacional EUA.

Extorsão e corrupção
O ponto central da Fepa é que empresas podem ser as vítimas de esquemas de corrupção, não seus autores. O legislador norte-americano entendeu que mesmo grandes multinacionais são vulneráveis a avanços de autoridades e funcionários públicos interessados em “criar dificuldade para vender facilidade”, cobrar “por fora” e pedir doações políticas lícitas ou ilícitas.

O resultado é um ambiente de seleção adversa no qual as empresas inclinadas a fazer pagamentos e doações continuam funcionando e quem se recusa fecha as portas e vai embora.

“Máfia” e “cleptocracia” foram alguns dos termos usados pelos parlamentares norte-americanos para definir o comportamento de funcionários públicos estrangeiros em relação às empresas americanas.

Relatório publicado pelo senador democrata Sheldon Whitehouse, um dos responsáveis pelo projeto, dá a ideia de que a extorsão de empresas norte-americanas mundo afora é uma prática generalizada:

“O Fepa combaterá a cleptocracia e a corrupção, criminalizando as exigências de suborno por parte de funcionários estrangeiros. Até a promulgação da lei, apenas a entrega ou oferta de suborno era considerada uma atividade criminosa ao abrigo da lei dos EUA. No entanto, funcionários estrangeiros corruptos seguiam exigindo rotineiramente subornos de empresas que esperavam fazer negócios com eles”, diz Whitehouse.

Outros parlamentares reforçaram o discurso de vitimização das empresas norte-americanas: “A promulgação do Fepa é uma vitória histórica na luta contra a corrupção e protege as empresas americanas de práticas de extorsão no estilo máfia por funcionários públicos”, diz o deputado republicano Joe Wilson.

“É hora de expandirmos nossas leis anticorrupção estrangeira para capturar a má conduta de cleptocratas estrangeiros”, afirmou a deputada democrata Sheila Jackson Lee.

Virando a mesa
Pelo estilo do discurso construído pelos legisladores norte-americanos, as empresas dos EUA acabam de adquirir um arsenal jurídico para se livrar de processos de corrupção internacional. O discurso de extorsão vira a mesa e transforma o vilão em vítima.

Alguns analistas já notaram que a FEPA abre novas possibilidades para favorecer empresas norte-americanas. Relatório publicado pelo escritório Hunton Andrews Kurth LLP avalia que a Fepa vai permitir às empresas fugir de acusações de corrupção e ganhar proteção da lei.

“A Fepa pode ajudar as empresas sob investigação por violações da FCPA, permitindo-lhes argumentar que foram vítimas de extorsão, em vez de pagadores voluntários, e que o governo dos EUA deveria, em vez de processá-la, processar o funcionário estrangeiro que exigiu o suborno. Surgirão novas oportunidades de cooperação entre empresas e indivíduos dos EUA e as autoridades.”

O que é punido pela Fepa
Alguns comentaristas observam que enquanto a Fepa parece endurecer o regime contra a corrupção, prevendo pena de prisão de até 15 anos e multa de US$ 250 mil, por outro lado mantém hipóteses estreitas para enquadramento de uma conduta em corrupção.

A fórmula de tipificação adotada pelo legislador foi conservadora, reforçando a tradição minimalista do sistema penal federal e do FCPA.

Segundo artigo do ex-promotor federal Paul Monnin, sócio do escritório Alston & Bird, o principal ponto é que a FEPA reforça a exigência de “ato de ofício” para qualificar a corrupção.

“A FEPA está sujeita a muitas das mesmas limitações de âmbito que os tribunais aplicaram à lei do suborno nacional. A principal delas é a exigência de que um pagamento corresponda diretamente a um ato oficial”, diz Monnin.

O texto do Fepa pune uma estreita faixa das condutas e deixa muita coisa de fora. Entre as exceções estão doações eleitorais lícitas ou ilícitas, conflitos de interesses, alguns tipos de pagamentos de facilitação e vantagens indevidas genéricas como presentes e gratificações.

“Condicionar pagamentos ou benefícios que podem estabelecer uma relação indevida, mas mas não correspondem a um ato oficial concreto, não contam. A corrupção de um cidadão privado que anteriormente foi um funcionário público também não é corrupção”, resume o ex-promotor Paul Monnin.

O texto da Fepa, da mesma forma que o FCPA, deixa claro que não é intenção do Estado norte-americano punir empresas corruptivas modo generalizado.

“A palavra ‘corrupto’ é usada para deixar claro que a oferta, pagamento, promessa ou presente deve ter como objetivo induzir o destinatário a usar indevidamente sua posição oficial, por exemplo, para direcionar indevidamente negócios (…) obter legislação ou regulamentos preferenciais ou para induzir um funcionário estrangeiro a deixar de desempenhar uma função”, diz o manual de aplicação do FCPA.

Dois pesos duas medidas
O caminho escolhido pelos legiladores norte-americanos é  oposto ao adotado no Brasil, onde a legislação anticorrupção usa critérios genéricos para definir o que pode ser punido e ignora alegações de extorsão.

O resultado são penalidades astronômicas contra condutas consideradas lícitas nos EUA e falta de segurança jurídica sobre o que deve ser feito quando uma empresa é assediada por autoridades e funcionários públicos.

Em processo julgado em 2020, a rede de restaurantes Madero denunciou ter sido vítima de extorsão (concussão, artigo 316 do Código Penal) e como resultado ganhou uma multa de R$ 500 mil por corrupção ativa.

“Causa extrema perplexidade e consternação que o Madero, vítima de evidente concussão perpetrada por auditores fiscais do Ministério da Agricultura, após ter procurado a Polícia Federal venha, agora, a ser processado enquanto suposto ‘agente’ por uma ‘corrupção ativa’”, disse a defesa em Processo Administrativo de Responsabilização (PAR) na Controladoria Geral da União (CGU).

A CGU reconheceu que a empresa foi extorquida, mas ignorou a alegação: “A acusada foi vítima da ameaça de fiscais agropecuários do Ministério da Agricultura. No entanto, seus representantes poderiam ter se negado a dar qualquer tipo de vantagem”.

A Comissão de Processo Administrativo de Responsabilização (CPAR) se escorou na omissão da Lei Anticorrupção para aprovar a multa.

“A CPAR, em estrita observância ao princípio da legalidade que rege a Administração Pública, cumpriu fielmente a estrutura de responsabilização da pessoa jurídica definida pela Lei Anticorrupção”, diz a CGU.

Diversas alegações de extorsão foram relatadas em processos ligados à finada operação lava jato, sendo solenemente ignoradas pelas autoridades.

“A Camargo Corrêa defende que os pagamentos efetuados a agentes públicos não podem ser considerados ilícitos, pois sempre executou os contratos a contento e não auferiu vantagem alguma em razão deles. O que realmente teria acontecido, conforme os próprios documentos da indiciação, seriam exigências impostas pelos agentes públicos aos contratantes, verdadeira concussão”, diz processo na CGU.

O argumento foi rejeitado e a empresa fechou um acordo de R$ 1,4 bilhão para encerrar o caso.

FCPA e protecionismo
A proteção criada pela Fepa reproduz a tradição já consagrada no FCPA de uso da anticorrupção como arma de política econômica.

O FCPA foi criado em 1977 para punir empresas acusadas de pagar propinas a funcionários estrangeiros, aprovada na sequência de escândalos que marcaram o início da administração Jimmy Carter (1977-1981).

Durante as três primeiras décadas de existência, o FCPA ficou praticamente esquecido. A situação mudou a partir dos anos 2000, com elevação no número de processos e disparada no valor das multas, sobretudo contra empresas estrangeiras, coincidindo com a maior pressão internacional sobre a competitividade da indústria norte-americana no mercado interno e externo.

O FCPA é visto hoje por alguns autores mais como mais uma ferramenta de protecionismo não-tarifário do que uma arma anticorrupção internacional.

A conclusão de estudiosos do tema é de que interesses econômicos estratégicos e pressões empresariais são canalizados para os órgãos anticorrupção por meio de estruturas políticas do dentro do poder executivo e por legisladores com assento no Comitê de Judiciário do Senado, que supervisiona o Departamento de Justiça (DoJ).

Os resultados mais visíveis dessa pressão foram o aumento no número de processos contra empresas estrangeiras, superando os processos contra empresas nacionais, a diferença entre os valores das multas entre as empresas locais e estrangeiras e a grande incidência de processos em setores considerados estratégicos para a economia dos EUA, como bens primários, petróleo, tecnologia e indústria bélica.

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