Reconstrução do RS: New Deal e lei do processo estrutural brasileiro
21 de maio de 2024, 8h00
O cataclisma que atingiu o Rio Grande do Sul oferece a oportunidade para a democracia brasileira dizer a que veio. Se democracia é concerto institucional a serviço do cidadão (a expressão política do ser humano), é a hora de a onça brasileira do pacto constitucional de 1988 beber água.

Encontro dos governos federal, estadual e municipais na Unisinos, em 15 de maio (veja aqui), propiciou ao presidente Lula o exercício de uma das atividades que mais lhe apraz e na qual se sente mais à vontade, a de levar autoridades a defrontar-se com a realidade das ruas, dos campos, das favelas. É o Lula das Caravanas. No caso, a realidade dos dos abrigos.
Falando na cerimônia antes do presidente Lula, o ministro do STF Luís Roberto Barroso conclamou à “união dos Poderes”:
“Por fim, a Constituição brasileira prevê a separação dos Poderes. Temos o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, cada um com a sua competência. Mas, em momentos como este, nós precisamos viver mesmo é a união dos Poderes.”
Discursando logo em seguida, o presidente Lula falou diretamente ao presidente do Supremo Tribunal Federal:
“Embora sejamos Poderes autônomos, a gente tem que funcionar como orquestra. (…) A gente não pode se encontrar apenas em jantares, de vez em quando, a gente não pode se encontrar apenas para fazer atos solenes. É importante a gente se encontrar nos momentos de amargura do povo brasileiro. Quando você tem um presidente da Suprema Corte que sai da grandiosidade que é a Suprema Corte, e ele vem ao chão de uma cidade alagada, e ele vê o tipo de pessoa que tá lá sofrendo, a hora que chegar um processo em Brasília contra alguma coisa que está sendo feita, o olhar dele será diferente, não será o de quem não vê o lado social.”
Pode-se ver aí uma forma inteligente que o presidente Lula encontrou de procurar fazer do limão do incontido vigor interpretativo do nosso Judiciário uma limonada para matar a sede de Estado do processo de reconstrução do Rio Grande do Sul. Lula buscou lançar um antídoto prévio contra decisões judiciais “heroicas” que mandam parar tudo.
New Deal
O professor Gilberto Maringoni defende ser necessário não um Plano Marshall para o Rio Grande, como quer pelo governador Eduardo Leite, mas um New Deal, vale dizer, um ambicioso programa de reformas como o que o presidente Franklin Delano Roosevelt implementou entre 1933 e 1939 para tirar os Estados Unidos da depressão de 1929 e restaurar a energia e confiança do povo reformas de amplo espectro, bancárias, fortes investimentos em obras públicas para gerar empregos e estimular a economia, programas de assistência social para acolher e proteger os mais fracos, política industrial anticompetitiva e legislação trabalhista protetiva dos trabalhadores e apoio à agricultura para estimular a produção de alimentos e regular os preços.
Quem acompanhar com atenção o conjunto de medidas que o governo federal e o governo do Rio Grande do Sul anunciam, com apoio internacional dos Brics por meio do seu banco de desenvolvimento, e quem atentar para as palavras do presidente Lula, verá que é de um New Deal que se trata.
Ocorre que um New Deal não cabe no modelito neoliberal do ajuste fiscal e apavora a banca, que lança mão de inflamados editoriais e textos ferozes de jornalistas de pena disponível para profetizar o caos se a “gastança” não parar.
Mas não há opção, aponta Maringoni:
“Começamos a recuperação do Rio Grande com recursos extraordinários, que vão muito além do garrote do arcabouço fiscal, o plano da alta finança para manter o Brasil sequestrado pela especulação. É um bom caminho, mas um paliativo diante da tragédia climática. A nova pandemia precisa de combate profundo, caso não queiramos anular cultural, social, econômica e politicamente uma das mais importantes unidades da Federação.” (aqui).
Ele aponta que o Brasil já mostrou que pode fazer um programa amplo de investimentos e políticas públicas para enfrentar realidades extremamente adversas:
“Não se trata de algo impossível. Em duas oportunidades, quando se defrontou com problemas profundos, como a Crise de 1929 e a crise dos anos 1970, o Brasil apresentou ao mundo saídas originais para a recuperação econômica. Celso Furtado lembra, em “Formação econômica do Brasil”, que uma série de investimentos anticíclicos por parte do Estado tiveram rápida resposta econômica. “Explica-se, assim, que já em 1933 tenha recomeçado a crescer a renda nacional no Brasil, quando nos EUA os primeiros sinais de recuperação só se manifestam em 1934”, escreve ele. Na crise do dólar em 1972/73, a resposta brasileira foi uma rede de investimentos e induções estatais da economia – consubstanciados em 1975 no II Plano Nacional de Desenvolvimento — que adiou a crise até 1979.”
Todavia, não se espere que o capital financeiro, viciado no dinheiro fácil dos juros da dívida pública, se condoa dos gaúchos.

O professor emérito da Unicamp Luiz Gonzaga Belluzzo, profundo conhecedor da história econômica do século 20, lembrou a este colunista que “ao longo dos anos 30 até a eclosão da segunda guerra, Roosevelt sofreu ataques incessantes da ‘turma da bufunfa’ (assim fala meu amigo Paulo Nogueira Batista)” e que “ironia da história: a eclosão da 2ª Guerra permitiu os avanços do programa rooseveltiano. Não há que subestimar as modificações feitas por ele na composição da Suprema Corte americana.”
De fato, Roosevelt, entre 1937 e 1943, Roosevelt nomeou nove novos juízes, alterando a composição ideológica da Corte para derrotar a resistência conservadora às medidas do New Deal.
Lula, ao seu modo, também terá que enfrentar a resistência que a finança e seus porta vozes na mídia corporativa oferecerão, inclusive no Supremo, para impedir “a gastança”. Roosevelt teve a seu favor a eclosão da 2ª Guerra. Resta saber se a catástrofe social e econômica advinda do cataclisma gaúcho pode, guardadas as devidas proporções, comparar-se a uma guerra e oferecer ao presidente Lula, se assim o quiser, a força política arrostar e vencer as resistências da alta finança para levar adiante o New Deal da reconstrução do Rio Grande do Sul.
Um novo Direito
Os exemplos históricos trazidos pelo professor Maringoni evidenciam que uma nova política econômica, libertada dos imperativos com que a alta finança submete os órgãos de Estado (“New Deal“), precisará de um suporte legal e regulatório.
Mas o Rio Grande do Sul é parte da Federação. Não é constitucionalmente possível criar um “direito brasileiro do Rio Grande do Sul”. Um New Deal para os gaúchos haverá de ser um New Deal para o Brasil, com um novo Direito. Este novo Direito não há de emergir de uma inflexão ad hoc do ativismo salvacionista das instituições jurídicas (MP e Judiciário) e de controle (TCU, CGU) como pretendido pelo presidente Lula por meio do seu carisma e capacidade articuladora. É preciso uma nova legalidade.
Assim, a tragédia gaúcha pressiona o sistema político e jurídico, fazendo emergir a necessidade de uma teoria constitucional à altura dos desafios do tempo histórico disruptivo das velhas verdades que prometiam haver sepultado a política. Agora é (e sempre foi) a hora da política, do Estado e da soberania, como vem pregando no deserto o professor Gilberto Bercovici.

Isso do ponto de vista do direito material. Mas direito é também processo. Para que não continuemos dependentes da capacidade de sedução articuladora deste ou daquele político, a República precisa de um marco legal que estabeleça o modo de resolução dos conflitos coletivos de larga escala à luz da Constituição.
Não é razoável que sigamos eternamente dependentes de estratégias políticas de “sensibilização” de autoridades do Judiciário (e da extração de compromissos públicos deles em seguida a visitas à “amargura das vítimas”), para evitar que um esforço ingente de enfrentamento e superação de consequência terríveis de tragédias seja obstaculizado por uma eventual decisão judicial solitária, não raro em sede liminar, como o presidente Lula tenta evitar ao levar o presidente do Supremo “ao chão de uma cidade alagada”.
O Estado — a ordem jurídica, dirá Kelsen — não pode funcionar a golpes de “afetividade” e articulação política ocasional. Um governo de leis é melhor que um governo de homens, ensina Bobbio, como aponta o professor Celso Lafer:
“A forma institucional moderna do governo das leis é o constitucionalismo. Num regime constitucional, governantes e governados atuam sob o império da lei, e o poder dos governantes é regulado por normas jurídicas e deve ser exercido em conformidade com elas. Num Estado de Direito constitucional, a ação política submete-se não apenas aos juízos de eficiência, mas também ao da conformidade com as normas fundamentais da Constituição.” (aqui)
A Lei do Processo Estrutural Brasileiro
Direito é matéria (o que), mas é também processo (o como). Antes do início das atuais enchentes no Rio Grande do Sul, esta coluna destacou a iniciativa do presidente do Senado de criar uma Comissão de Juristas responsável pela elaboração de anteprojeto de Lei do Processo Estrutural brasileiro.
Na precisa definição do desembargador federal Edilson Vetorelli, relator da comissão e um dos mais reconhecidos estudiosos do tema:
“Processos estruturais são demandas judiciais nas quais se busca reestruturar uma instituição pública ou privada cujo comportamento causa, fomenta ou viabiliza um litígio estrutural. Essa reestruturação envolve a elaboração de um plano de longo prazo para alteração do funcionamento da instituição e sua implementação, mediante providências sucessivas e incrementais, que garantam que os resultados visados sejam alcançados, sem provocar efeitos colaterais indesejados ou minimizando-os. A implementação desse plano se dá por intermédio de uma execução estrutural, na qual suas etapas são cumpridas, avaliadas e reavaliadas continuamente, do ponto de vista dos avanços que proporcionam. O juiz atua como um fator de reequilíbrio da disputa de poder entre os subgrupos que integram a sociedade que protagoniza o litígio”. (aqui)
Esta coluna apontou que, depois do malogro da iniciativa do segundo governo Lula com o PL 5.139/2009, inspirada por comissão de juristas instituída pelo ministro gaúcho da Justiça Tarso Genro, e da paralisia do PL 8.058/2014, construído por scholars paulistas e apresentado pelo deputado e hoje ministro Paulo Teixeira (PT-SP), o prometido anteprojeto do presidente do Senado se revela um promissor ponto de inflexão e um freio de arrumação na atuação randômica, irracional e “salvacionista” do Poder Judiciário de intervenção em políticas públicas.
A tragédia gaúcha torna a Lei do Direito Estrutural brasileiro um imperativo urgente. A hora é agora. Caso contrário, deixaremos passar a oportunidade de que energia social, política e institucional reunida para a reconstrução do Rio Grande do Sul venha a ser o gatilho para a reconciliação da consciência política e jurídica com a Nação, libertando-se do garrote da estéril e enfadonha guerra de torcidas de “direita” e de “esquerda”.
A reconstrução do Rio Grande não será um empreendimento burocrático, previsível, governável por regras prontas, sejam públicas, sejam de mercado. Será um processo social, político, jurídico de complexo, multifacetado, de larga escala, somente concretizável pela energia da coesão social que as grandes tragédias evocam no coração dos homens.
É preciso entender que os problemas da gigantesca reconstrução gaúcha “não têm soluções prontas na prateleira do mercado, como no escaninho da política”, como fez lembrar a este colunista o professor Daniel Vargas, da FGV. São ações estruturais, diz ele, que demandam “construção de coletivos e colaboração, de descoberta e aprendizagem no tempo, não podem ser resolvidas só sensibilizando, moralizando ou aplicando regras vigentes”. Antes, “exigirão inovação, ousadia, colaboração”, capital social que os gaúchos já possuem em suas bases sociais e produtivas na semente bendita do cooperativismo. A energia (1928) e a telefonia (década de 1950) gaúchas desenvolveram-se a partir do cooperativismo.

É inevitável que os trabalhos da comissão de juristas do Senado venham a ter em conta o desafio hercúleo da reconstrução do Rio Grande do Sul, ainda que não se dê qualquer processo de judicializacão das políticas públicas emergenciais e estruturais em solo gaúcho. O soerguimento do Rio Grande pelo Estado nacional, estadual, pelo capital produtivo e pela sociedade, pode ser o laboratório de um novo Direito para uma nova etapa da construção do Estado nacional. E a comissão de juristas do Senado tem o potencial de ser um espaço permanente de acompanhamento e de consciência crítica do processo social, político e jurídico que se desenvolverá a partir do Rio Grande. Disso resultará, sem dúvida, um anteprojeto do processo estrutural brasileiro mais estreitamente conectado com a realidade e seus desafios.
Há motivos para otimismo. A comissão de juristas carrega na sua composição a massa crítica da sociedade e das instituições no trato de conflitos coletivos. O seu presidente, Augusto Aras, acumula a experiência de Procurador-Geral da República na condução de conflitos coletivos momentosos, como o de Brumadinho e Mariana e, em alinhamento com o STF, coordenou os esforços das instituições para que pandemia da Covid-19 não extrapolasse os limites de uma crise sanitária para converter-se em crise social e conflito federativo para converter-se em crise social e conflito federativo.
A sina do Rio Grande do Sul
A necessidade é a rainha das virtudes. Um New Deal para o Brasil a partir da necessidade de reconstruir o Rio Grande do Sul é objetivamente, sem tirar nem pôr, uma justa homenagem ao presidente Getúlio Vargas, o líder da Revolução de 30, pai do Brasil moderno e interlocutor e amigo de ideias do presidente Franklin Delano Roosevelt, o criador do New Deal estadunidense o criador do New Deal estadunidense.
Dadas as atuais condições políticas e geopolíticas, uma mudança de curso de semelhante magnitude como a de estabelecer uma nova política econômica para salvar o Rio Grande do Sul exigirá que o Brasil afirme sua soberania. É a hora e a vez dos homens de Estado.
Como foi Getulio, líder do movimento que sepultou a República Velha, ao priorizar o interesse nacional, negociando a adesão do Brasil às fileiras dos aliados na 2ª Guerra de maneira a concretizar o objetivo de lançar as bases da industrialização brasileira. E ao dar mostra ao mundo da força do nosso povo, mandando os pracinhas ao teatro de operações europeu e convocando milhares de nordestinos a desbravar a Amazônia como Soldados da Borracha.
No momento em que o pernambucano Lula da Silva senta praça no solo gaúcho para buscar unir o Brasil, a presença viva de Getúlio Vargas na memória nacional confirma a profecia musical do paraibano de Alagoa Grande Jackson do Pandeiro, na inspiradora e emocionante “Ele disse”:
“Ele disse muito bem:
O povo de quem fui escravo
Não será mais escravo de ninguém.
Para todo operário do Brasil
Ele disse uma frase que conforta
Quando a fome bater na vossa porta
O meu nome é capaz de vos unir
Meus amigos por certo vão sentir
Que na hora precisa estou presente
Sou o guia eterno desta gente
Com meu sangue o direito eu defendi.
Ele disse com toda consciência
Com o povo eu deixo a resistência
O meu sangue é uma remissão
A todos que fizeram reação
Eu desejo um futuro cheio de glória
Minha morte é bandeira da vitória
Deixo a vida pra entrar na história
E ao ódio eu respondo com o perdão.”
Como lembrou o governador do Rio Grande do Sul no encontro na Unisinos, o hino do Estado convoca-nos a todos os brasileiros:
” Mostremos valor, constância
Nesta ímpia e injusta guerra
Sirvam nossas façanhas
De modelo a toda Terra.”
Sirvam as nossas façanhas brasileiras de modelo para toda a Terra. E por que não? O mineiro Darcy Ribeiro não era avaro ao sonhar o Brasil:
“A nova Roma é o Brasil, a província mais rica e mais bela da Terra.”
Curitibano, descendente de açorianos que aportaram no Rio Grande do Sul em 1730, alegra-me ver que, como na Revolução de 1930, unir a nação seja novamente a sina do torrão gaúcho. Mais uma façanha para servir de modelo a toda Terra. Alea jacta est.
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