Direito Civil Atual

Responsabilidade civil dos provedores de conteúdo nos EUA (parte 1)

Autor

  • Luis Felipe Rasmuss de Almeida

    é mestrando em Direito Civil da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP); graduado em Direito pela Universidade de São Paulo; membro da Rede de Direito Civil Contemporâneo e editor adjunto da Revista de Direito Civil Contemporâneo (RDCC).

22 de abril de 2024, 14h20

Nos Estados Unidos, país notadamente vinculado à tradição jurídica da common law, as balizas para a responsabilização civil de provedores de conteúdo (internet service providers [1]) são fragmentadas e esparsas.

ConJur

O desenvolvimento obtido neste campo, em consonância com a tradição jurídica daquele país, tem se dado essencialmente a partir de precedentes de casos julgados (case law), que estabelecem parâmetros gerais de responsabilização civil (regime de torts [2]), ainda que a maior parte de demandas judiciais neste sentido [3] esteja relacionada a casos de difamação (civil defamation), com requisitos estabelecidos por leis estaduais [4] e também por princípios gerais do regime de torts, e também a casos envolvendo direitos decorrentes de propriedade intelectual (intellectual property rights) [5], incluindo demandas de direito autoral (copyright) e de proteção de marcas (trademarks) [6], com evolução doutrinária consideravelmente distinta [7]. Verifica-se, em geral, que a matéria está ligada estritamente a regras de responsabilidade civil — regime geral de torts, não tendo repercussão constitucional.

Na primeira parte deste artigo, trataremos especificamente das modalidades de responsabilidade reconhecidas pelos precedentes de tribunais norte-americanos e a natureza da reparação. Na segunda parte, ainda a ser publicada, serão explorados tanto as cláusulas de exclusão e limitação de responsabilidade (safe harbour provisions), quanto o sistema notice-and-takedown para casos de violação de direitos autorais, trazendo por fim uma reflexão quanto às limitações existentes para a responsabilização de provedores de conteúdo no sistema norte-americano, em paralelo com a discussão da constitucionalidade do arigo. 19 do Marco Civil da Internet no Brasil.

Modalidades de responsabilidade

Os precedentes norte-americanos em geral reconhecem três modalidades de responsabilidade atribuíveis aos provedores de conteúdo, e diretamente derivadas do regime geral de torts [8]:

(i) responsabilidade “contributiva” (contributory liability) no âmbito de direitos autorais e marcas, isto é, aquela que surge na medida em que o provedor possui conhecimento do ilícito e contribui materialmente a este ilícito;

(ii) responsabilidade indireta (vicarious liability), que deriva do princípio de responsabilidade sobre os atos dos próprios agentes (respondeat superior) e que portanto considera que o provedor de conteúdo tem o direito e a capacidade de fiscalizar tais ilícitos e obter ganhos financeiros com isto, a exemplo do caso Napster [9];

e (iii) responsabilidade “por indução” (inducement liability), exclusivamente no caso de patentes, hipótese na qual há a tomada de medidas concretas para promoção de violação de tais patentes pelo provedor de conteúdo. Esta categoria, por sua vez, é incorporada como parte da responsabilidade “contributiva” no âmbito da doutrina que trata de direitos autorais [10].

No âmbito da difamação, para além da disciplina dos estados norte-americanos sobre a matéria, as bases consubstanciadas no segundo Restatement of Torts [11] e alterado pela Lei de Decência nas Comunicações de 1996 (Communications Decency Act) [12] já tratavam da responsabilidade de provedores de conteúdo anteriormente ao advento da rede mundial de computadores, distinguindo os provedores entre:

(i) editores (publishers), responsáveis pelo conteúdo;

(ii) distribuidores (distributors), cuja responsabilidade é limitada apenas a hipóteses em que estes saibam (know) ou tenham motivo para conhecer (have reason to know of) o conteúdo difamatório dos dados; e

(iii) transmissores (conduits), aos quais não é atribuída responsabilidade ainda que tenham conhecimento do conteúdo difamatório transmitido [13].

Natureza da reparação

Um ponto a ser destacado é que a responsabilização dos provedores nas hipóteses mencionadas anteriormente tem essencialmente caráter secundário (secondary liability), embora muitos dos litígios — especialmente aqueles relacionados a direitos autorais e proteção de marcas — tenham em seu polo passivo apenas os provedores de conteúdo [14], ao invés de usuários efetivamente responsáveis, o que acaba por acarretar uma responsabilização integral do dano aos provedores de conteúdo demandados [15]. Neste sentido, em geral, a responsabilidade secundária tem caráter solidário e integral para fins de reparação do dano [16].

Para além da reparação do dano, punições legais e custas judiciais [17], os provedores de conteúdo podem ser intimados pelo juízo (subpoena) para que disponibilizem dados relacionados ao usuário que cometeu o ilícito. Neste sentido, tal medida é mais usual em se tratando de direitos autorais por estar prevista pela Lei de Direitos Autorais do Milênio Digital (Digital Millenium Copyright Act — DMCA) em seu artigo (section) 512.

Na próxima coluna, tratar-se-á das cláusulas de exclusão e limitação de responsabilidade (safe harbour provisions) e do sistema notice-and-takedown para casos de violação de direitos autorais, características peculiares do sistema norte-americano.

* esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma 2 — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e Ufam).

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[1] É necessário esclarecer ao leitor que não há consenso semântico sobre a definição de provedores de conteúdo (internet service providers – acrônimo “ISP”), embora usualmente estejam associados a pessoas jurídicas que fornecem acesso à rede mundial de computadores e serviços como hospedagem e streaming. A dificuldade é mais relevante ao se considerar que a propria legislação norte-americana, vez ou outra, traz conceitos diferentes para ISPs. Neste sentido é a advertência de Graeme B. Dinwoodie: “The term ‘service provider’ (let alone ‘online service provider’, or ‘internet service provider’ or ‘ISP’, with which ‘OSP’ is sometimes used interchangeably both in this Chapter and more generally) has no consistent meaning across borders; indeed, defining ‘service providers’ operating in the bricks-and-mortar world is also a difficult task. An equally (perhaps more) common usage in the literature is ‘intermediary’. But, like ‘online service provider’, this term lacks a single, common and consistent usage. Each of these terms has in recent years received some legislative definition (along with yet other synonyms) in provisions creating safe harbours, or immunity from liability, for such actors. The terms make more fleeting appearances outside this context, primarily in defining which actors are subject to certain disclosure obligations vis-à-vis customers and enforcement authorities.” (In: DINWOODIE, Graeme B. A Comparative Analysis of the Secondary Liability of Online Service Providers. In: ______ (Org.) Secondary Liability of Internet Service Providers. Oxford: Springer, 2017, p. 4.). Para fins de exemplificação, o artigo 512(k) da Digital Millenium Copyright Act – DMCA estabelece disposições diferentes sobre o que seria considerado um provedor, a depender da parte do artigo aplicável ao caso concreto.

[2] Na definição de Robert Francis Vere Heuston, em tradução livre: “podemos definir […] tort como um ato ilícito civil sobre o qual a solução jurídica corresponde a uma ação de common law para (obtenção de reparação sobre) danos não determinados, e que não correspondem exclusivamente a quebras contratuais, de confiança ou obrigações meramente decorrentes de justiça contratual”. (In: HEUSTON, Robert Francis Vere. Salmond on the Law of Torts. 17. ed. London: Sweet & Maxwell, 1977, p. 13.)

[3] MEHRA, Salil K.; TRIMBLE, Marketa. Secondary Liability of Internet Service Providers in the United States: General Principles and Fragmentation. In: DINWOODIE, Graeme B. (Org.). Op. cit., p. 94.

[4] Em virtude de tais especificidades em leis de estados, tais como a diferença entre as espécies slander e libel – ora tratadas como sinônimos, ora caracterizadas como difamação oral e escrita, respectivamente –, a presente análise limitar-se-á a aspectos gerais da legislação federal norte-americana.

[5] A matéria de direitos autorais é regulada essencialmente pela Lei de Direitos Autorais de 1976 (Copyright Act of 1976), codificada no Título 13 da compilação oficial de leis federais dos EUA (US Code), cuja revisão principal ocorre a cada seis anos e está a cargo do Gabinete de Assessoria de Revisão de Leis (Office of the Law Revision Counsel) da Câmara dos Representantes (House of Representatives) dos EUA. Cumpre mencionar também a influência da Lei dos Direitos Autorais do Milênio Digital (Digital Millenium Copyright Act), comumente referida pelo acrônimo “DMCA”, que foi aprovada em 1998 e trata pormenorizadamente de infrações de direitos autorais no âmbito da rede mundial de computadores, dentre outras providências.

[6] Por sua vez, a regulação de proteção de marcas está contida essencialmente na Lei de Proteção de Marcas de 1946 (Trademark Act of 1946), também conhecida por Lei Lanham, em homenagem ao congressista texano responsável por sua propositura. Em sequência, no ano de 1984, foi aprovada a Lei de Falsificação de Marcas (Trademark Counterfeiting Act of 1984), que tornou a utilização de marcas falsificadas crime nos EUA.

[7] Neste sentido, Mark Bartholomew e John Tehranian esclarecem que: “Yet one of the most striking aspects of the secondary liability revolution has been all but ignored in the literature. While recent years have witnessed a dramatic broadening of the scope of secondary liability principles with respect to copyright law, no such move has occurred in the trademark arena. This divergence between trademark and copyright law is unusual for two reasons. First, secondary theories of liability in both trademark and copyright law share the same origins—the common law of tort and agency. Second, digital technology appears to pose just as much of a threat to trademark holders as to copyright interests because digital technology eases the reproduction of marks and facilitates the global distribution of infringing products. Nevertheless, the courts continue to police vigorously the metes and bounds of secondary trademark liability, even narrowing it at times, while simultaneously broadening the ambit of secondary copyright liability. This flux has created tremendous legal uncertainty that threatens investment in new technologies.” (In: BARTHOLOMEW, Mark; THERANIAN, John. The Secret Life of Legal Doctrine: The Divergent Evolution of Secondary Liability in Trademark and Copyright Law. Berkeley Technology Law Journal, v. 21, p. 1365, 2006).

[8] MEHRA, Salil K.; TRIMBLE, Marketa. Op. cit., p. 94-95.

[9] O caso A&M Records, Inc. v. Napster, Inc., que embora referido desta forma, incluiu dezenas de gravadoras no polo ativo, foi o primeiro caso de relevância a tratar de serviços de compartilhamento ponto-a-ponto (peer-to-peer), julgado em 12 de fevereiro de 2001 pela Corte de Apelações do Nono Circuito. A empresa Napster, Inc. foi considerada responsável tanto sob o viés da responsabilidade contributiva quanto da responsabilidade indireta, dentre outras condenações. A Corte considerou que, embora a companhia não cobrasse tarifas para acesso ao serviço, o modelo de negócios visava a uma ampliação da base de usuários, que poderia levar a um ganho econômico futuro tendo por base a violação de direitos autorais de titularidade de terceiros.

[10] MEHRA, Salil K.; TRIMBLE, Marketa. Op. cit., p. 95.

[11] Os Restatements são compilações de precedentes (case law) e definições de common law publicados pelo American Law Institute. Embora não tenham força legal, são amplamente utilizados como fundamentação em decisões de cortes norte-americanas. Um dos objetivos principais dos Restatements é o de uniformizar a interpretação da legislação federal norte-americana.

[12] A Lei de Decência nas Comunicações de 1996 foi uma tentativa do Congresso dos EUA em regular a disseminação de material pornográfico por meio da rede mundial de computadores. Em 1997, a Suprema Corte dos Estados Unidos, no caso Reno v. ACLU, afastou a incidência dos dispositivos denominados “anti-indecência” da lei. Dentre seus dispositivos, a Lei acabou por mitigar a responsabilização dos ditos intermediários, isto é, editores (publishers), distribuidores (distributors) e transmissores (conduits) de conteúdo. É importante ressaltar, ainda assim, que o objeto do enfrentamento constitucional no caso Reno v. ACLU dizia respeito especificamente à constitucionalidade do dispositivo “anti-indecência”, que tipificava criminalmente a conduta de envolvimento em atividades on-line que pudessem ser acessadas por menores e consideradas “indecentes” ou “patentemente ofensivas”. Tais condutas, de acordo com a redação original da lei, seriam punidas com reclusão e multa. Neste sentido, o reconhecimento da inconstitucionalidade pela Suprema Corte se deu em virtude dos termos “indecente” e “patentemente ofensivo” serem considerados vagos e passíveis de restrição das liberdades de comunicações em violação à Primeira Emenda da Constituição dos EUA. Trata-se, portanto, de questão apartada do regime de responsabilidade civil atribuído aos provedores de conteúdo nos Estados Unidos, que, como ressaltado neste texto, não tem repercussão constitucional.

[13] Salil K. Mehra e Marketa Trimble, para fins de ilustração dos conceitos (para além do formato digital), citam jornais como exemplos de editores, livrarias como exemplo de distribuidores e companhias telefônicas como exemplo de transmissores. (In: MEHRA, Salil K.; TRIMBLE, Marketa. Op. cit., p. 97.)

[14] Vide nota 1.

[15] Embora não usualmente admitida na common law, a tentativa de caracterização de responsabilidade direta de titulares de softwares de compartilhamento ponto-a-ponto (peer-to-peer) já foi arguida por titulares de direitos autorais. Alain Strowel menciona o caso da companhia Seeqpod, demandada judicialmente em 2008 pela Warner Music Group, tendo alegado em sua defesa a exceção do fair use. A Seeqpod entrou em recuperação judicial (Chapter 11) em 2009 e posteriormente foi liquidada mediante venda de patentes e softwares em 2010, de modo que a demanda judicial não prosperou. Neste sentido, ver: STROWEL, Alain. Introduction: peer-to-peer file sharing and secondary liability. In: ______. Peer-to-peer file sharing and secondary liability. Cheltenham: Edward Elgar, 2009, p. 3.)

[16] Observadas eventuais limitações e disposições de leis estaduais.

[17] De acordo com o artigo 512(k)(2) da DMCA, a compensação monetária em caso de violação de direitos autorais inclui danos, custos incorridos e honorários de advogados, bem como toda e qualquer outro tipo de despesa.

Autores

  • é mestrando em Direito Civil da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, graduado em Direito pela USP, membro da Rede de Direito Civil Contemporâneo e assistente editorial da Revista de Direito Civil Contemporâneo (RDCC).

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