Declarações e garantias em transações imobiliárias: conceito de implied covenant of marketable title
25 de abril de 2024, 18h23
Um assunto que gera muita discussão em negócios imobiliários mais relevantes, onde não há uma relação de consumo, são as cláusulas de “declarações e garantias” do vendedor do ativo e a cláusula de indenização ao comprador por passivos originados antes da data de aquisição.
Tudo deveria começar com uma definição simples: o preço negociado pelas partes para determinada transação foi um preço normal de mercado? Ou foi um preço descontado com relação ao que seria o valor de mercado do ativo, considerando-se, talvez, que já se saiba que há passivos nesse imóvel?
A regra em geral é: se o preço é de mercado, ele assumiu, ainda que implicitamente, que o imóvel a ser adquirido não tem qualquer passivo ou problema jurídico que possa diminuir o seu valor ou torná-lo posteriormente imprestável ao seu fim, ou seja, “não utilizável” ou “não comercializável”.
Em transações mais complexas, nas quais o imóvel objeto da venda detém passivos (conhecidos ou não, mensuráveis ou não), os vendedores muitas vezes optam por realizar uma venda comumente conhecida como “porteira fechada”. Neste tipo de venda, o comprador leva o imóvel no estado (jurídico e físico) em que estiver. Poderia ser o caso, por exemplo, de um imóvel que abrigava uma indústria e, portanto, poderia estar sujeito a uma contaminação ambiental provável, mas de extensão e gravidade desconhecidas.
Em situações assim, o comprador, voluntária e conscientemente, assume riscos com relação ao imóvel adquirido, com mínimas ou até nenhuma declaração ou possibilidade de indenização do vendedor. Por outro lado, o valor negociado é descontado com relação ao preço de mercado, até para compensar o risco que o comprador estaria assumindo.
Nada mais natural: o preço reflete — ou deveria refletir — o risco assumido pelas partes. O que consta em contrato ou escritura em termos de declarações, garantias e obrigações do vendedor deveria ser um mero resultando desse fator.

Tanto é assim que existem atualmente no mercado empresas e fundos de investimentos especializados em adquirir chamados ativos “distressed”, ou seja, aqueles sujeitos a algum risco ou contingência, ainda que relacionada ao vendedor do bem (empresas em dificuldades financeiras, por exemplo).
Estes players do mercado são especializados neste tipo de situação (os chamados “special situations” ou apenas “special sits”), sabem analisar o ativo e buscam entender (e precificar) exatamente o risco a que estarão expostos, sempre pensando nas premissas fundamentais: maior risco, menores proteções/garantias, menor preço e, consequentemente, maior potencial de retorno.
Convenhamos, um adquirente de imóvel comum, que supõe comprar um imóvel sem problemas jurídicos ou ambientais, não deveria estar na mesma posição de um investidor de “special situations”. Este adquirente comum talvez não saiba, ou não consiga, identificar os riscos e precificá-los corretamente.
No entanto, bem longe desses casos mais particulares, é comum vermos alguns casos ordinários, em que o preço negociado foi efetivamente de mercado, o ativo supostamente não deveria ter passivos ou riscos que pudessem diminuir o seu valor, mas que, mesmo assim, a negociação emperra quando chega na fase de discutir as declarações do vendedor e indenização.
O vendedor muitas vezes se mostra resistente em aceitar determinadas declarações e garantias em benefício do comprador, bem como a obrigar-se a indenizar o comprador por passivos anteriores à aquisição. É como se ele, vendedor, estivesse fazendo uma concessão extra ao comprador ao aceitar essas cláusulas, o que não é verdade.
Declarações e garantias do vendedor e auditoria jurídica
Muitas vezes, o fato de que o comprador irá realizar auditoria do imóvel antes da aquisição é inclusive colocado como desculpa: mas se você, comprador, irá fazer auditoria antes da aquisição e conhecerá os eventuais problemas do imóvel, por que eu, como vendedor, preciso me responsabilizar por eles?
Embora essa colocação possa até aparentemente fazer sentido, não é a linha de raciocínio correta para a maioria dos casos, tampouco é o tratamento legal padrão que se dá aos contratos de compra e venda de imóveis no Brasil ou nos Estados Unidos, para usar um exemplo.
Aqui não estamos dizendo que, em situações específicas, não seja possível haver alguma limitação pontual à obrigação de declaração ou de indenização do vendedor. Pelo contrário. A bem da verdade, em transações mais sofisticadas, essas limitações são bastante comuns, fruto de ampla discussão contratual.
A sua inclusão é sempre pautada por alguma justificativa razoável, discutida de boa-fé entre as partes, devidamente assessoradas por seus advogados. Novamente, em casos assim, todos sabem o jogo que estão jogando.
Em casos ordinários, seria lógico e até esperado que o vendedor não tivesse problemas em fazer declarações com relação ao imóvel, ainda que sejam aquelas famosas “no seu melhor conhecimento” — um conceito de “best knowledge” importado do direito norte-americano, usado quando o vendedor não consegue, ou não quer, declarar algo de forma categórica.
Afinal, se o imóvel é dele, ninguém melhor do que o seu proprietário para, exercendo o princípio da boa-fé objetiva (tão acolhido pelo Código Civil), informar o comprador, ainda que seja no limite do seu conhecimento, sobre o estado jurídico daquele imóvel que pretende vender.
Como regra, o vendedor não deveria se beneficiar financeiramente ao voluntariamente esconder informações relevantes sobre passivos ou riscos relacionados ao imóvel sendo vendido, assim como o comprador não deveria ter a sua proteção reduzida ao realizar auditoria jurídica.
A auditoria jurídica é em geral feita por compradores para identificar de antemão problemas que possam existir com relação àquele imóvel, nunca para reduzir a sua proteção legal. Em um cenário ideal, de boa-fé entre as partes, as auditorias jurídica e ambiental deveriam confirmar aquilo que já teria sido declarado pelo vendedor, por exemplo, em um compromisso de venda e compra do imóvel ou em um contrato de compra e venda de quotas de uma SPE (sociedade de propósito específico), quase sempre assinados previamente à realização da auditoria e conclusão da aquisição.
Conceito de “marketable title” nos Estados Unidos
Trazendo um pouco de contexto a esta discussão, é interessante analisar a prática nos Estados Unidos. Por lá, há um conceito jurídico de direito das propriedades (property law) chamado “marketable title”, que significa que o título de propriedade de um imóvel deve ser transacionável ou comercializável (ainda que a tradução não abarque totalmente o conceito do termo).
Detalhando um pouco mais, este conceito indica que o título de propriedade não deve estar sujeito a passivos, ações ou ônus não conhecidos que possam diminuir o seu valor. O “marketable title” é, em conjunto com outras declarações do vendedor, o que se conhece por “deed covenants”, ou obrigações/garantias relacionadas à escritura de venda e compra de um imóvel.
A escritura de venda e compra de imóvel com o nível máximo de “deed covenants”, o que seria o padrão em transações imobiliárias nos Estados Unidos, é geralmente conhecida como “full warranty deed”.
Nela, o vendedor garante a total higidez do título de propriedade que está sendo vendido, no máximo sentido legalmente aceito naquele determinado estado. Por vezes, esta expressão é estampada logo no cabeçalho da escritura de transferência de propriedade, deixando desde logo clara a intenção das partes naquele negócio.
Em casos normais, onde há um “full warranty deed”, o comprador declara na escritura deter um título de propriedade bom, válido e transacionável (do inglês “good, valid and marketable title”, geralmente seguido da expressão jurídica “free and clear of any claims, liens or other encumbrances”, ou seja, livre de quaisquer disputas, ônus ou outros gravames. Em casos mais sofisticados, esta declaração é detalhada em muitos outros itens, mais específicos, tal qual ocorre por aqui em muitas transações.
É importante dizer, no entanto, que não é legalmente necessário que todas as transações sejam feitas com este standard de obrigação/garantia do vendedor. Há vários níveis aceitáveis. O menor deles, que aqui conheceríamos como o já mencionado “porteira fechada”, seria a “quitclaim deed”, na qual o vendedor não faz qualquer declaração, nem assume qualquer obrigação relativa ao imóvel vendido perante o comprador.
Outro bastante comum é o “covenant of seisin”, no qual o vendedor garante a higidez do título de propriedade, mas não garante a inexistência de ônus sobre o imóvel (que muitas vezes são declarados, conhecidos e aceitos pelo comprador, constando expressamente da escritura).
O conceito de “marketable title” é tão importante nos Estados Unidos que praticamente todos os estados norte-americanos adotam a lógica do “implied covenant of marketable title” [1]. Ou seja, a premissa jurídica de que, ainda que a escritura não diga nada, o vendedor deve garantir que o título de propriedade transferido seja hígido e transacionável. A exceção a este princípio, para ser válida, deveria constar expressamente do documento.
No estado de Nova York, por exemplo, este princípio não quer dizer que o título precisa ser perfeito em todos os aspectos, mas deve ser razoavelmente livre de dúvidas, o que inclui não conter ônus, servidões ou ouros gravames não declarados ou acordados expressamente na escritura de venda, que possam reduzir o seu valor.
Além deste aspecto mais jurídico, é importante lembrar que nos Estados Unidos essa garantia completa do vendedor será, inclusive, validada na prática por uma seguradora, que quase sempre é contratada para emitir um seguro de titularidade, conhecido como “title insurance”.
Este tipo de seguro, ainda inexistente no Brasil, é adotado em praticamente todas as transações imobiliárias nos Estados Unidos, até pelo seu valor baixo em relação à proteção oferecida.
O “title insurance” é tão comum nos Estados Unidos, que já há, inclusive, interpretações na doutrina de lá no sentido de que o termo “marketable title” deveria significar, além do aspecto de ser transacionável, que o imóvel também fosse “segurável” através de um “title insurance”.
Garantias legais ao comprador de imóvel no Brasil
Aqui no Brasil, o sistema de registro de imóveis, através dos cartórios de registro de imóveis, é o guardião dos arquivos que demonstram a titularidade dos imóveis, dando publicidade e segurança ao mercado imobiliário, enquanto nos Estados Unidos, esse sistema não é federal e varia de acordo com as regras de cada estado.
Porém, até por suas características e competência legal, os cartórios de registro de imóveis não dão ao adquirente de imóvel nenhuma garantia com relação ao título de propriedade sendo adquirido ser ou não hígido juridicamente, ou “marketable”, segundo o conceito norte-americano.
É bem verdade que o nosso Código Civil traz duas importantes proteções ao adquirente de um bem imóvel:
- o direito de evicção, prevista nos artigos 447 a 457 de tal código, que se traduz na proteção quanto à perda de titularidade total ou parcial após a aquisição;
- e o vício redibitório, previsto no artigo 441 do código, que protege o comprador contra em defeito oculto, não sabido no momento da aquisição, que torne o bem adquirido imprestável para a sua finalidade ou reduza o seu valor.
Além disso, há as vias mais comuns de responsabilidade civil, como falta de boa-fé objetiva, todas no geral mais complexas e fortemente baseadas em provas que precisarão ser produzidas em Juízo.
Conceitualmente, o vício redibitório é o que mais se aproximaria do espectro de proteção que o “implied covenant of marketable title” dos Estados Unidos confere ao comprador de um imóvel. No entanto, aqui no Brasil, o vício redibitório tem sua utilização prática muito mais ligada a situações de vícios físicos ou construtivos ocultos (embora também possa abarcar questões jurídicas), e seu prazo máximo de reclamação (decadência) é de um ano a partir do conhecimento (artigo 445, §1 do Código Civil).
Portanto, parece-nos que o raio de alcance do vício redibitório previsto no Código Civil, seja pelo conceito, por derivadas de conhecimento ou não do vício, ou pelo prazo decadencial mais curto[2], não conferem a mesma proteção do conceito de “implied covenant of marketable title” norte-americano. A nosso ver, a sua abrangência e relevância é bastante menor.
Conclusão e sugestão prática
Enfim, nossa experiência nos indica que, aqui no Brasil, diante da ausência de um conceito amplo, abrangente e enraizado na prática de mercado como o “implied covenant of marketable title” existente nos Estados Unidos, ou até a proteção de um “title insurance”, é muito aconselhável celebrar contratos e escrituras envolvendo imóveis que sejam bem detalhados quanto a declarações e garantias do vendedor, além da cláusula de indenização. Para isso, a sugestão é introduzir o que se espera nesse sentido desde o início das negociações, até para reduzir eventuais desalinhamentos e discussões posteriores.
Uma forma de se fazer isso é incluir já na proposta de aquisição do imóvel (apresentada em geral antes do compromisso ou escritura de venda e compra) uma declaração simples de que o valor ofertado pressupõe:
- que o vendedor detém propriedade plena do imóvel, não sujeita a qualquer dúvida ou discussão;
- que o imóvel encontra-se desocupado, livre de ônus, dívidas e outros passivos e gravames;
- e que os contratos conterão declarações de praxe acerca do imóvel e do vendedor, cabendo ao vendedor responsabilizar-se por passivos anteriores à data de aquisição, ainda que se materializem posteriormente.
Por fim, seria ideal incluir também que o “comprador conduzirá auditoria legal prévia à aquisição, mas que tal fato não servirá para reduzir as obrigações do vendedor”.
Negociar contratos imobiliários, ainda mais aqueles envolvendo transações relevantes, sempre demandam cuidados de todas as partes, em especial do comprador e de seus assessores legais. Aqui no Brasil, ao contrário dos Estados Unidos, não é aconselhável apoiar-se apenas nos conceitos de evicção e vício redibitório previstos no Código Civil, visto que não se traduzem em um conceito comum e tão amplo quanto o “implied covenant of marketable title” norte-americano.
Pelo contrário, é preciso construir uma estrutura de obrigações contratuais que, ao final, possa garantir que o adquirente do imóvel, ao pagar por ele o valor justo de mercado, esteja levando um “marketable title”, com todas as proteções contratuais que ele poderia esperar.
[1] Este conceito é reconhecido no sistema de common law, ou seja, não é prevista em algum código, mas reconhecida pela jurisprudência.
[2] Nos Estados Unidos, no Estado de Nova York, por exemplo, seria bem maior, de 6 anos.
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