Direitos do réu

Tribunal Superior de Kansas anula decisão do que um ministro chamou de 'Kangaroo Court'

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16 de maio de 2024, 7h24

A juíza Trish Rose, de um fórum criminal em Kansas, Estados Unidos, perdeu a paciência com um réu criador de caso. Quando John Cantu criou confusão durante a inquirição cruzada, a juíza o mandou de volta para o banco dos réus e instruiu o júri a desconsiderar todo seu testemunho — incluindo a inquirição direta, feita por seu advogado.

Canguru

Canguru foi associado a um tribunal que não respeita os direitos dos acusados

Cantu foi condenado a dois anos de prisão. No entanto, o Tribunal Superior de Kansas anulou a condenação e ordenou um novo julgamento porque, de acordo com a decisão, a juíza violou o direito do réu de testemunhar a seu favor — apesar de sua má atitude no julgamento.

Na verdade, os ministros do tribunal superior mostraram sua desaprovação à decisão da juíza desde a audiência de sustentação oral. O ministro Caleb Stegall foi o mais incisivo:

“Tenho dificuldade para ver se esse foi de fato um julgamento real. Sei que esse é um termo muito pejorativo, mas como não considerar que essa é essencialmente uma “Kangaroo Court”, em que o estado é a única voz ouvida. Isso não é um julgamento real”.

“Kangaroo Court” (literalmente, “Corte Canguru”) é um “tribunal arbitrário”, em que juízes ignoram as normas judiciais aceitas, de forma que o julgamento não pode ser considerado justo, de acordo com Legal Information Institute. Normalmente, resultam em “erros judiciais flagrantes”.

O termo pode ter surgido na Inglaterra, no final do século XVIII, quando condenados recebiam a pena de ser “transportados” para a Austrália. É provável que os réus tenham se queixado de um tratamento injusto, alegando que não tiveram seus direitos respeitados e foram sentenciados por uma “Corte canguru”, em referência ao animal associado à ex-colônia britânica.

Direitos e deveres básicos

Em sua decisão, relatada pela ministra Melissa Taylor Standridge, o tribunal superior evitou o termo “Kangaroo Court”, mas foi categórico de qualquer forma:

“A decisão da juíza Trish Rose de suprimir o testemunho do réu contrariou o dever básico do fórum criminal de apurar os fatos. Isso significa que o júri foi privado da oportunidade de pesar a credibilidade de Cantu contra a apresentação de provas e testemunhas pelo promotor”.

“Cantu não teve chance de ser ouvido, de se defender pessoalmente contra as acusações ou de chamar a testemunha material mais importante — ele mesmo”, escreveu a ministra. “Como resultado, o júri não pôde considerar sua linguagem corporal, expressões, tom de voz e, é claro, a substância do seu testemunho.”

De acordo com os autos, John Cantu foi acusado de stalking, violação de ordem judicial (por violência doméstica), danos à propriedade, violação de domicílio e, ainda, de ameaças criminais, depois de aterrorizar uma mulher e as crianças, em seu lar, por jogar um bloco de concreto através da janela da casa.

Na inquirição direta, ao testemunhar em defesa própria, ele respondeu calmamente todas as perguntas de seu advogado, negou todas as acusações contra ele, mas ofereceu um álibi não corroborado sobre seu paradeiro no dia em que atacou a residência.

Na inquirição cruzada, ele interrompeu a promotora Kimberly Rodebaugh desde o início:

Promotora: Você concorda que havia uma ordem judicial contra você por stalking, correto?

Réu: Não.

Promotora: Você também concorda…

Réu:  Para os autos… para os autos…

Juíza: Você tem de esperar pela pergunta.

Réu: Eu não terminei.

Juíza:  Você tem de esperar por uma pergunta.

Réu: Eu não terminei de responder a primeira pergunta.

Juíza: Eu já disse duas vezes. Você tem de esperar por uma pergunta.

Réu: Ela perguntou se eu concordava.

Juíza: Fique quieto e espere por uma pergunta.

Réu: Posso explicar? Tenho de dizer sim ou não?

Promotora: Sr. Cantu?

Juíza: Sr. Cantu, se você não cooperar, vou lhe pedir para retornar ao banco dos réus.

Réu: Posso fazer uma pergunta?

Juíza: Você tem de ouvir às perguntas.

Réu: Eu devo responder sim ou não?

Juíza: Vá para o banco dos réus já. Agora.

Réu: Eu não entendo. Posso protestar contra isso?

Juíza: Vá se sentar em seu lugar.

Réu: Quero dizer, ela me fez uma pergunta.

Juíza: Policiais, podem retirar o Sr. Cantu da sala de julgamento?

Réu: Isso vai estar nos autos? Dawn Hicks, minha água. Você…

Policial: Pegue sua água.

Advogado: Isso é suficiente, meritíssima?

Juíza: Se o Sr. Cantu se comportar, sim. De outra forma, vou ordenar sua retirada. Ele está indicando por sua postura e por retornar a seu assento que irá obedecer. Você tem alguma outra prova?

A juíza não disse enfaticamente aos jurados que deveriam ignorar o testemunho abreviado de Cantu, mas lhes deu instruções por escrito de que deveriam “desconsiderar qualquer testemunho ou prova que não tenham sido admitidos”.

Um tribunal de recursos de Kansas anulou as condenações por stalking e por violação de ordem judicial e manteve as condenações por ameaça criminal e danos à propriedade. Essa corte também concluiu que a decisão da juíza de negar o direito constitucional de o réu testemunhar a seu favor foi um erro. Porém, segundo o tribunal, esse foi um “erro inócuo”, que não afetou o resultado do julgamento.

O Tribunal Superior, por sua vez, aceitou a determinação do tribunal de recursos de que a juíza de primeira instância negou ao réu o direito constitucional de testemunhar, ao suprimir seu testemunho na inquirição direta, mas rejeitou a análise da corte de que o erro da juíza foi inócuo, de forma que não afetou o resultado do julgamento.

No Kansas, um erro constitucional pode ser rotulado como inócuo se o beneficiário do erro estabelecer que ele não influenciou o resultado do julgamento. Um erro estrutural, no entanto, foi uma categoria de erro crasso que violou direitos constitucionais tão básicos para a justiça de um julgamento que não poderia ser tratado como inócuo em termos de devido processo legal, esclareceu a corte.

E para deixar claro, o tribunal superior deu uma ampla explicação sobre o tema em sua decisão:

  1. O direito de o réu testemunhar a seu favor em um julgamento criminal é um direito fundamental baseado em múltiplas disposições da Constituição dos Estados Unidos.
  2. Embora a decisão da cassação seja a forma mais evidente pela qual um réu pode ser privado do direito de testemunhar, um tribunal também pode infringir o direito de testemunhar ao anular o testemunho do réu.
  3. A maioria dos erros constitucionais pode ser revisada quanto à inocuidade. Um erro constitucional só é inócuo se a parte beneficiada pelo erro estabelecer, além de qualquer dúvida razoável, que o erro não afetou ou não afetará o resultado do julgamento, à luz de todo o processo. Erros constitucionais considerados inócuos não requerem reversão.
  4. Os erros estruturais são defeitos que afetam a imparcialidade fundamental do mecanismo do julgamento, impedindo o tribunal de primeira instância de cumprir sua função básica de determinar a culpa ou a inocência e privando os arguidos das proteções básicas do devido processo exigidas nos processos penais. Erros estruturais não são passíveis de uma análise inofensiva baseada em resultados de erros e, portanto, exigem reversão automática.
  5. A negação completa e injusta do direito constitucional do réu de testemunhar, removendo-o indevidamente do banco das testemunhas e eliminando todo seu testemunho, é um erro estrutural, porque torna o julgamento criminal fundamentalmente injusto, independentemente de o resultado do julgamento ter sido diferente, se o réu fosse autorizado a testemunhar e seu testemunho fosse mantido intacto.

“Dados os fundamentos constitucionais do direito e os efeitos indeterminados ou irrelevantes de uma negação total no resultado de um julgamento criminal, decidimos que a privação completa e indevida do direito de testemunhar é um erro estrutural. Consequentemente, revertemos as condenações de John Cantu e reenviamos o processo para um novo julgamento”, diz a decisão.

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