Desglobalização

Compliance global: a nova cara do protecionismo

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9 de maio de 2024, 6h03

Regras ambientais, trabalhistas, direitos humanos, segurança nacional, anticorrupção. Um emaranhado de obrigações de conteúdo variado regula os movimentos econômicos globais, contribuindo para a redução nos fluxos internacionais de comércio e reduzindo investimentos. São as novas ferramentas do movimento protecionista que tem ganhado nomes como “neomercantilismo”, “desglobalização” e “novo consenso de Washington”.

Os novos obstáculos às trocas globais incluem barreiras não-tarifárias ao comércio e normas de “triagem” de investimentos externos. Obstáculos nem sempre claros e fórmulas criadas de última hora barram concorrente indesejados e impedem negócios. Por trás de princípios universais e direitos fundamentais está o velho protecionismo de sempre. Medidas explícitas como quotas, tarifas e subsídios são coisa do passado.

Labirinto de leis

As Nações Unidas contabilizaram em 2023 um total de 89 mil normas não-tarifárias vigentes no comércio exterior, um volume 76% maior do que o registrado em 2018. Há normas técnicas e regras de conformidade, mas a novidade é a chegada de um arsenal de 2,6 mil exigências sobre mudanças climáticas, afetado 26% do comércio global, ou US$ 6,5 trilhões em trocas.

A triagem de investimentos externos não existia até o começo dos anos 2000 mas hoje é adotada por 37 países. Na União Europeia a triagem de investimentos afetou 1,2 mil operações desde foi implantada em 2020, e o Parlamento Europeu lançou em 2024 um pacote de ampliação. Estados Unidos, Reino Unido, Japão e Canadá já têm seus próprios programas.

Crescem evidências de que esse labirinto regulatório é a nova cara do protecionismo no século 21. Por trás da retórica social e ambiental, há objetivos econômicos. O resultado mais visível é a retração dos fluxos de comércio e investimento.

Desglobalização em números

Spacca

Em proporção à renda mundial, o volume de comércio internacional está estagnado há 15 anos. Ainda é inferior aos níveis de 2008 e voltou a cair em 2023. O volume de Investimento Externo Direto (IED) em relação à renda mundial tem caído dramaticamente. Em termos proporcionais, o tombo foi de 70% desde 2007. Em termos absolutos, os valores do IED caíram de US$ 1,9 trilhão em 2007 para US$ 1,37 trilhão em 2023.

A profusão de novas barreiras não-tarifárias no comércio internacional é tamanha que Organização Mundial do Comércio (OMC) e a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad) ainda não têm estatísticas detalhadas do fenômeno. Há dados pontuais e informações incompletas.

Países-membros dão pouca informação e falta consenso sobre conceitos. Muitas das barreiras não-tarifárias são ocultas, criadas de última hora e modificadas aos humores de lobbies políticos e pressões corporativas.

Mais barreiras e menos comércio

No começo de 2024, os Estados Unidos impediram a entrada milhares de automóveis das marcas Volkswagen, Audi, Porsche e Bentley no país. A alegação foi a presença de componentes eletrônicos vindos do oeste chinês, o que violaria regras norte-americanas contra trabalhos forçados. A regra pegou de surpresa as montadoras europeias.

Em sua visita ao Brasil no fim de março, o presidente francês Emmanuel Macron se posicionou subitamente contra o acordo União Europeia-Mercosul, um pacote em negociação há 20 anos. O acordo abriria o mercado europeu a produtos agrícolas sul-americanos. A alegação do presidente francês foi de que o acordo UE-Mercosul precisaria agora atender à “agenda climática” e levar em conta a “biodiversidade e o clima”.

Política externa, motivos internos

Para entender os novos obstáculos à globalização no século 21 é preciso entender seu contexto político. No início deste ano agricultores europeus marcharam em várias capitais para reclamar da concorrência de produtores estrangeiros. A insatisfação vem da pandemia de 2020 e foi agravada pela guerra da Ucrânia, pelo aumento nos custos de energia e a invasão de produtos ucranianos com taxas preferenciais.

Nos Estados Unidos o slogan “Made in America” hoje é levado a sério. A Aliança de Manufaturas Americanas, criada em 2007, é um dos principais lobbies do setor, com foco na concorrência chinesa. No ano passado seu presidente, Scott N. Paul, experiente lobista de Washington, fez um pronunciamento no Congresso norte-americano com o título “A ameaça do Partido Comunista Chinês à América”. A retórica da Guerra Fria faz do comércio o campo de batalha.

A tradicional postura liberal dos EUA no comércio exterior ficou no passado. O ex-presidente Donald Trump elevou as taxas médias importação da China de 3% para quase 20%, mas o democrata Joe Biden foi ainda mais longe. Este ano a taxa ao aço chinês deve subir de 25% para 50%.

Biden ainda acrescentou ao protecionismo da gestão anterior um novo arsenal de barreiras não-tarifárias. “Em geral, o interesse da administração Biden no comércio parece motivado por restrições ambientais, laborais e outras restrições que pode impor aos acordos comerciais. Não há nenhum esforço para liberalizar o comércio”, diz análise do economista canadense Pierre Lemieux, da Universidade do Quebéc.

Fim da ‘hiperglobalização’

Artigo publicado pelo Fórum Econômico Mundial afirma que superamos o período de “hiperglobalização” dos anos 1990, passamos pelo momento de “globalização lenta” iniciado em 2008 e desde 2020 estamos em ”desglobalização”. Os pontos de inflexão foram a queda do Muro de Berlim em 1989, a crise financeira de 2008 e a pandemia em 2020. São agravantes, hoje, a guerra na Ucrânia, o acirramento político-ideológico e a “economia verde”. O resultado são discursos e práticas antiglobalização vindo de autoridades graduadas em países centrais.

“Em 2022 a secretária do Tesouro dos EUA Janet Yellen defendeu que, em vez de depender de países com os quais há tensões geopolíticas, as empresas dos EUA devem avançar em direção a cadeias de abastecimento diversificadas preferindo países confiáveis. Na Europa, o governo francês tem instado a União Europeia a traçar metas claras de crescimento, enfraquecer programas oficiais de ajuda e desenvolver sua própria estratégia de ‘Made in Europe’”, diz o relatório global de 2023 do Fundo Monetário Internacional.

Gráfico: comércio global na história recente

fonte: Fórum Econômico Mundial

O meio empresarial também aderiu ao discurso antiglobalização. “O sentimento transcende os meios de comunicação e a política e se tornou retórica corporativa geral. Uma pequena mas relevante fração de 4% dos comunicados de empresas mencionou ‘onshoring’ (internalização de fornecedores) em 2022. Esse valor era inferior a 1% antes da pandemia”, diz o artigo publicado pelo Fórum Econômico Mundial.

Investimento direto em queda

Uma tendência cada vez mais clara é a queda do investimento direto externo, o que impacta fusões, aquisições e abertura de novas unidades. O volume de Investimento Externo Direto (IED) em proporção ao Produto Interno Bruto (PIB) global foi de 5,2% em 2007, e desde então foi caindo sistematicamente até chegar a 1,7% em 2022.

O relatório global de 2023 do Fundo Monetário Internacional  traz uma explicação política para o fenômeno. Segundo o FMI, tensões geopolíticas globais e a distribuição desigual dos ganhos da globalização entre a população mundial nas últimas décadas contribuíram para aumentar o ceticismo em relação ao multilateralismo.

“Embora uma série de fatores tenham contribuído para isso, a fragmentação dos fluxos de capital ao longo de falhas geopolíticas e potencial surgimento de blocos geopolíticos regionais são novos elementos que poderiam ter grandes repercussões negativas para a economia global”, diz o relatório do FMI.

Gráfico: investimento externo direito global em queda

fonte: Reuters

Triagem de investimentos

Levantamento da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento e Comércio (Unctad) mostra que o número de países com regras de triagem de Investimento Externo Direto (IED) passou de apenas três países em 2005 para 37 países em 2023. Entre 2020 e 2022 os programas de triagem foram introduzidos em 12 países e reformados 42 vezes.

“Várias destas políticas estão direta ou indiretamente relacionados com preocupações de segurança nacional sobre propriedade estrangeira de infraestrutura crítica, núcleo tecnológico e outros ativos nacionais sensíveis”, diz o relatório da Unctad. Há muitos exemplos. No Canadá, a triagem limita investimentos em mineração; no Japão, no mercado imobiliário; na Nova Zelândia, terra e cobertura florestal; na Itália, comunicações, transportes e energia.

O novo arcabouço de triagem de investimentos criou um manancial de oportunidades para consultorias de compliance global e lobbies especializados. Uma firma de advocacia focada em negócios internacionais, o escritório Mayer Brown LLP, de Chicago, publicou artigo segundo o qual a ampliação das exigências de triagem na Europa revela uma mudança relevante no mercado de investimentos global.

“Se as autoridades continuarem com o seu recente padrão de utilizar regimes de Investimento Externo Direto (IDE) para rever e potencialmente bloquear ou impor condições em negócios internacionais, os envolvidos em negócios globais de fusões e aquisições devem ficar atentos. A triagem de IDE é agora um elemento importante no planeamento de transações de fusões e aquisições” diz artigo de equipe de direito concorrencial do Mayer Brown.

Gráfico: número de países com regras de triagem de investimentos

fonte: Unctad

Os efeitos da desglobalização

Pesquisa publicada pelo Instituto Kiel de Economia Global, de Berlim, calculou que a introdução de normas de triagem na Europa reduziu em até 16% o número fusões e aquisições nos setores afetados. A leitura é que a triagem cria burocracia, consome tempo, dinheiro e pode dificultar o negócio, o que inibe investidores. Em 2022, apenas 1% dos investimentos avaliados foi negado, mas outros 9% foram aprovados com restrições e 4% dos investidores desistiram no meio do processo.

Artigo divulgado pelo Fórum Econômico Mundial, assinado pela equipe de pesquisa do banco inglês Barclays, sugere que o uso de triagem de investimentos em países desenvolvidos tende a excluir empresas de países em periféricos e favorecer empresas de países ricos. “Os negócios entre empresas-alvo na Europa e na América do Norte têm menos probabilidades de sucesso quando o adquirente está fora destas regiões”, diz o texto.

Um artigo publicado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), assinado por Pinelopi Goldberg, da Universidade de Yale, e Tristan Reed, do Banco Mundial, avalia que a “geofragmentação” do comércio e do investimento tende a interromper o fluxo de negócios entre nações desenvolvidas e subdesenvolvidas e aumentar o abismo entre países ricos e pobres.

“A fragmentação geoeconômica deve levar a mais comércio entre economias desenvolvidas e ‘amigas’. A crescente ênfase nas normas ambientais e laborais nos acordos comerciais aumenta barreiras a países muito pobres, que têm dificuldade em cumprir estes requisitos. Sem acesso a mercados estrangeiros lucrativos, não existe um caminho claro para a redução da pobreza e o desenvolvimento nessas economias”, diz o artigo de Goldberg e Reed.

Pressões políticas

Análises sobre as causas da desglobalização veem um movimento político com origem na insatisfação crescente das classes médias dos países desenvolvidos. A ideia de que a globalização exportou empregos e piorou a vida dos trabalhadores “pegou” na opinião pública de países centrais.

“Embora no mundo, em média, uma pessoa estivesse em melhor situação no final da década de 2010, muitos trabalhadores nas economias avançadas sentiam-se deixados para trás, em situação pior do que a geração de seus pais”, diz o artigo dos economisas Pinelopi Goldberg e Tristan Reed, publicado pelo FMI.

“A crise financeira de 2008, as guerras comerciais, classes médias marginalizadas nas economias desenvolvidas e preocupações crescentes com dependência comercial de parceiros únicos conduziram a um período de desaceleração da globalização”, analisa artigo publicado pelo Fórum Econômico Mundial.

Novas fronteiras 

O resultado desse processo é a incorporação do discurso antiglobalização no dia-a-dia do debate de política econômica. Mas seus efeitos vão para além do discurso. Como se sabe, a opinião pública influencia o funcionamento das instituições de modo geral.

É de se esperar que a resistência à globalização venha de diversos fronts. Grande mídia, burocracia estatal, sociedade civil, Judiciário. Quando uma grande empresa de um país periférico se arrisca no mercado internacional deve estar preparada para encontrar barreiras bem diferentes das encontradas duas décadas atrás.

Navegar o labirinto de regras do compliance global e enfrentar resistência para entrar em novos mercados agora faz parte do jogo econômico internacional, para o bem e para o mal. Não que segurança nacional, corrupção, lavagem de dinheiro, meio ambiente, direitos humanos e proteção ao trabalho não importem. A questão é a motivação por trás das novas regras e o modo como esses problemas são enfrentados.

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