Estado teológico

Presidente de tribunal dos EUA fundamenta voto em princípios religiosos

Autor

24 de fevereiro de 2024, 12h52

O Tribunal Superior do Alabama, nos Estados Unidos, decidiu nesta semana, por 8 votos a 1, que “embriões congelados são considerados crianças”. E, portanto, seus “pais” podem mover uma ação indenizatória punitiva contra clínicas de fertilização in vitro “por suas mortes”. Foi uma decisão que causou polêmica em todo o país. Porém, mais polêmico foi o voto concordante do presidente da corte, ministro Tom Parker, que se fundamentou, sobretudo, em princípios religiosos.

fertilização in vitro

Clínicas de fertilização do Alabama podem fechar as portas por causa da decisão

“A visão teológica da santidade da vida adotada pelo povo do Alabama abrange o seguinte: (1) Deus fez cada pessoa à Sua imagem; (2) cada pessoa, portanto, tem um valor que excede em muito a capacidade de entendimento dos seres humanos; e (3) a vida humana não pode ser destruída injustamente sem incorrer na ira do Santo Deus, que vê a destruição de Sua imagem como uma afronta a Si mesmo”, escreveu o ministro.

Em seu voto de 23 páginas, o presidente da corte citou 42 vezes o nome de Deus, que, entre outras coisas, disse ao profeta Jeremias: “Antes de te formar no ventre, Eu te conhecia. Antes de nascer, Eu te santifiquei”. Parker buscou fundamentos na Bíblia, na Bíblia de Estudos de Genebra, no Livro de Gênesis e nos escritos de Tomás de Aquino, João Calvino e outros teólogos cristãos dos séculos XVI e XVII.

“Mesmo antes de nascer, todos os seres humanos têm a imagem de Deus e suas vidas não podem ser destruídas sem ofuscar sua glória”, escreveu o ministro, que citou o Livro de Gêneses: “O próprio princípio — de que a vida humana é fundamentalmente distinta de outras formas de vida e não pode ser tomada intencionalmente sem justificativa — tem raízes profundas, que remontam à criação do homem à imagem de Deus”.

“O Livro de Estudo de Gênesis, que foi o livro mais popular nas residências coloniais, inclui uma nota de rodapé que diz: ‘Matar o homem é desfigurar a imagem de Deus e, portanto, o dano não é causado apenas ao homem, mas também a Deus. Gênesis 9:6 n.2’.”

O voto do ministro acrescenta: “Finalmente, a doutrina da santidade da vida está enraizada no Sexto Mandamento (quinto na religião católica), que diz: ‘Não matarás'”. O ministro cita, então, o livro de John Eidsmoe, que argumenta: “O Sexto Mandamento é a base para o ‘respeito à vida, expresso nas leis ocidentais'”.

Fundamento constitucional
O ministro cita a Constituição do Alabama em seu voto apenas para confirmar sua visão teológica da questão.

“Nossa Constituição estadual contém a seguinte declaração sobre política pública: ‘Este estado reconhece, declara e afirma que é política pública deste estado reconhecer e apoiar a santidade da vida do feto e os direitos das crianças por nascer, incluindo o direito à vida’”, que devem ser protegidos “de todas as maneiras e medidas legais e apropriadas”.

“Assim, como uma declaração constitucional de política pública, o §36.06 circunscreve o poder discricionário do Legislativo para determinar a política pública no que diz respeito à vida do nascituro. Consequentemente, qualquer ato legislativo (ou executivo) que contrarie a santidade da vida por nascer está potencialmente sujeito a um desafio constitucional sob a Constituição do Alabama.”

Embora o §36.06 possa não resolver todos os casos envolvendo vida em gestação, se as mentes razoáveis pudessem divergir sobre se uma regra de Direito Consuetudinário, um estatuto ou mesmo um dispositivo constitucional protege a vida, o §36.06 instrui o governo do Alabama a interpretar a lei em favor da proteção ao nascituro.

Para o ministro, as alegações dos réus (o Mobile Infirmary Medical Center e a Mobile Infirmary Association) e os argumentos dos que protocolaram amicus curiae (a favor dos réus) “não são sustentáveis à luz da Emenda sobre a Santidade da Vida Não Nascida. O povo do Alabama declarou que a política pública deste estado é que a vida humana por nascer é sagrada”.

“Todos os três ramos do governo estão sujeitos a um mandato constitucional para tratar com reverência cada vida humana ainda não nascida. Abrir uma exceção para as pessoas nesse caso, por menores que fossem, seria inaceitável para o povo deste estado, que exigiu que tratássemos cada ser humano de acordo com o temor do Santo Deus que os criou à Sua imagem. Por essas razões, e pelas razões expostas no voto principal, concordo.”

Decisão da maioria
O voto principal, a que o ministro se refere, declara: “Esta corte decidiu, há muito tempo, que crianças não nascidas são crianças, para o propósito da lei estadual ‘Wrongful Death of a Minor Act’, que permite aos pais de uma criança morta mover uma ação indenizatória punitiva, independentemente da localização do feto” — isto é, não importa se o embrião está no útero da mãe ou em um “berçário criogênico”.

Segundo a decisão da maioria, um feto é um ser humano geneticamente único, cuja vida começa na fertilização e termina na morte. Todos concordam que um feto geralmente se qualifica como uma “vida humana”, “ser humano” ou “pessoa”, conforme essas palavras são usadas em conversas comuns e no texto das leis sobre homicídio culposo do Alabama. “Isso é verdade em todas as fases do desenvolvimento do nascituro, independentemente da viabilidade.”

Em seu voto dissidente, o ministro Greg Cook argumentou que um embrião congelado não pode ser considerado uma criança protegida pela lei estadual “Wrongful Death of a Minor Act”. Para ele, essa é uma questão que deve ser regulamentada, por meio de projeto de lei, pela Assembleia Legislativa do estado, com o objetivo de proteger crianças criadas pelas atuais e futuras tecnologias.

O magistrado alegou também que a decisão da maioria vai criar consequências desastrosas para o setor de fertilização in vitro do Alabama. De fato, várias clínicas do ramo já decidiram suspender tais serviços, enquanto decidem se fecham as portas (tal como aconteceu com as clínicas de aborto do Alabama) ou encontram uma solução para evitar ações indenizatórias contra elas.

Ao mesmo tempo, houve uma reação acalorada dos defensores do Estado laico (que representam a maioria da população do país — mas não de Alabama e de outros estados republicanos). Eles alegam, entre outras coisas, que o muro que separa a igreja do Estado está passando por uma destruição progressiva no Alabama, que está criando o “estado teológico cristão” — mas princípios de outras religiões, principalmente a mulçumana, não se aplicam.

O caso perante a corte
Conforme descrito na decisão, o julgamento consolidou duas ações separadas de pais que perderam seus embriões congelados devido a um acidente. Em dezembro de 2020, uma paciente entrou na clínica de fertilidade do hospital por uma porta sem segurança e pegou alguns embriões vitrificados. Com temperatura muito abaixo de zero, os recipientes “queimaram” a mão da paciente, que os deixou cair, matando os embriões.

Três famílias processaram a clínica. No entanto, há contradições nas atitudes dos autores da ação, segundo o jornal Los Angeles Times. Em primeiro lugar, as três famílias assinaram contratos com a clínica de fertilidade que trazem instruções sobre como os embriões congelados devem ser mantidos. Uma das cláusulas diz que “os embriões são, em muitos aspectos, tratados com propriedade não humana”.

Um dos casais concordou que a clínica pode “destruir automaticamente” os embriões que permanecerem congelados por mais de cinco anos. Outro casal optou por doar os embriões não usados para uma instituição de pesquisa médica. E o terceiro concordou que qualquer “embrião anormal” pode ser doado para experimentos médicos e, depois, “descartados”.

“Como alguém pode considerar que um embrião congelado é ‘legalmente uma pessoa’ se ele pode ser doado para experimentos ou descartado se não for mais desejado?”, perguntam os opositores da decisão judicial do Alabama.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!