Direitos em jogo

Suprema Corte dos EUA julga leis que criminalizam situação de rua

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16 de abril de 2024, 8h47

Em 22 de abril, a Suprema Corte dos EUA vai promover a audiência de sustentação oral do caso City of Grants Pass v. Johnson, em que irá julgar leis municipais que criminalizam o ato de dormir em lugares públicos.

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Suprema Corte dos EUA, Suprema Corte dos Estados Unidos

A lei que deu origem ao processo é de Grants Pass, uma pequena cidade de Oregon. Ela prevê penas de multa de centenas de dólares pela primeira infração e de 30 dias de cadeia para cada infração subsequente, pelo “crime” especificado.

Porém, o julgamento terá repercussão em pelo menos 90 cidades dos EUA que têm leis semelhantes. E, mais que isso, irá repercutir em todo o sistema de justiça criminal do país. Afinal, a Suprema Corte terá de interpretar as palavras “punição cruel e incomum”, embutidas na 8ª Emenda da Constituição dos EUA.

E a pergunta nos autos, que caberá aos ministros da corte responder, é exatamente essa: “A execução de leis aplicáveis para regulamentar acampamento em propriedade pública constitui punição cruel e incomum, proibida pela 8ª Emenda?”.

Se a interpretação da maioria dos ministros da corte for a de que a punição aos moradores de rua não é cruel e incomum, outros direitos dos prisioneiros (e dos réus) estarão na corda bamba.

Entre eles, condições de encarceramento, proteção contra uso excessivo de força, limites ao confinamento em solitárias, proteção contra abuso sexual e violência física, acesso a tratamentos físicos e mentais — no caso dos prisioneiros.

E também proteção contra pena de morte e de condenação à prisão perpétua, sem direito à liberdade condicional, de menores de idade, bem como de pessoas com deficiência intelectual — no caso de réus.

Originalismo x Constituição viva

Quaisquer dessas situações podem não mais serem consideradas punição cruel e incomum, dependendo da forma que os ministros interpretarem o caso das leis que visam punir as pessoas em situação de rua.

Aí virão à tona as duas teorias já bem conhecidas: a do originalismo e a da constituição viva. Nos EUA, os defensores do originalismo entendem que a Constituição deve ser interpretada com base no significado da linguagem original — isto é, no contexto em que os constituintes a escreveram em 1787.

Os defensores do conceito da constituição viva argumentam que a Constituição deve ser interpretada de uma forma que leve em conta os novos tempos, o contexto e a cultura atuais — ou seja, o texto constitucional deve ser sempre atualizado para a modernidade, mesmo que soe diferente de um entendimento original.

Essa visão é sustentada por um precedente da Suprema Corte. Em Trop v. Dulles, a corte decidiu que a punição de um soldado desertor foi cruel e incomum e declarou que “a 8ª Emenda deve inferir seu significado da evolução dos padrões de decência que marcam o progresso de uma sociedade em maturação”.

A corte terá de revogar esse precedente para mudar as coisas. E não faltam opiniões contra e a favor de um lado ou outro: mais de 120 petições de amicus curiae foram protocoladas na corte, a maioria atacando ou defendendo o originalismo.

Republicanos

Procuradores-gerais de 20 estados republicanos pediram à corte para descartar, inteiramente, a interpretação baseada na evolução dos padrões de decência, ao julgar o caso Grants Pass v. Johnson.

Alegaram, entre outras coisas, que essa interpretação obriga os juízes a atuar como sociólogos. E que obriga as cortes a julgar casos como o da cirurgia da mudança de sexo e o do direito de voto de ex-prisioneiros.

Outras petições de amicus curiae, no entanto, criticam o originalismo e defendem “padrões contemporâneos” na interpretação do que é cruel e incomum. “No extremo, um originalista poderia dizer que o tribunal deveria voltar a debater as punições dos anos 1700, como chicotadas e guilhotinas”, diz uma petição.

Os conservadores-republicanos alegam que punições cruéis e incomuns só são aplicadas depois da condenação por crime, não às leis que definem o que é crime. E argumentam que não cabe às cortes dizer às cidades que tipo de comportamento podem regulamentar.

Mas uma petição de amicus curiae vinda de uma organização prestigiada pelos conservadores, a da Conferências dos Bispos Católicos, disputa o argumento originalista no caso das leis que punem os moradores em situação de rua.

Os bispos observam que “os ensinamentos da igreja proíbem a criminalização do ato de dormir em lugares públicos” e lembram que “esses princípios estão embutidos na tradição ocidental e foram compartilhados pela geração dos fundadores da nação”.

Defesa de peso

Decisões de primeira e segunda instância favoreceram os moradores de rua. Um juiz federal escreveu que a cidade não pode punir pessoas, por fazerem algo que não podem evitar: dormir.

O Tribunal Federal de Recursos da 9ª Região declarou: “Desde que não existem opções de abrigo para os sem-teto dormirem, o governo municipal não pode criminalizar os indigentes, os sem teto, por dormirem em propriedade pública, sob a falsa premissa de que eles têm uma escolha nessa matéria”.

O governo Biden, representado pelo Departamento de Justiça dos EUA, protocolou uma petição em que pede para participar da audiência de sustentação oral — embora não seja parte no processo.

Algumas vezes as cortes as cortes permitem que o advogado-geral da União participe dos debates, em casos que implicam interesses federais importantes, mesmo que o governo federal não seja demandante ou demandado.

O governo federal concorda com as decisões dos tribunais inferiores, a favor dos moradores de rua. Se a Suprema Corte decidir a favor das cidades, todos os moradores em situação de rua poderão ser presos e processados como criminosos.

As decisões das duas cortes inferiores não indicam que a Suprema Corte irá concordar com elas. O fato de a corte haver concedido certiorari para julgar o caso indica que pelo menos quatro ministros (o número mínimo de votos para concessão de certiorari) acham que as cidades podem ter razão.

Com informações adicionais de The Marshall Project, American Civil Libeties Union (ACLU), New Republic e WEBZ Chicago.

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