Precedente perigoso

Suprema Corte dos Estados Unidos ajuda a eliminar direito de organizar protestos em massa

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21 de abril de 2024, 8h53

Quando a Suprema Corte dos Estados Unidos decide não decidir, toma uma decisão de qualquer forma: a de lavar as mãos, quando é solicitada a resolver um problema — mesmo quando é apresentada ao tribunal uma questão que pode afetar a vida de milhões de pessoas.

Suprema Corte lavou as mãos em decisão que pode afetar milhões de pessoas

Esse foi o caso da decisão da corte de não julgar o processo Mckesson v. Doe. Ao rejeitar o certiorari, o tribunal deixou prevalecer uma decisão aparentemente absurda do Tribunal Federal de Recursos da 5ª Região que, na prática, restringe o direito de organizar protestos em massa em três estados dos EUA.

Em Louisiana, Texas e Mississippi, os três estados que compõem a jurisdição do Tribunal Federal de Recursos da 5ª Região, organizadores de protestos podem ser responsabilizados por qualquer ato ilícito cometido por qualquer participante da manifestação, “com consequências financeiras potencialmente ruinosas”, como diz a decisão.

A sentença é aparentemente absurda porque contraria, em primeiro lugar, o direito constitucional do cidadão, previsto na Primeira Emenda, de “se reunir e expressar suas opiniões por meio de protestos”. Em segundo, contraria dois precedentes da Suprema Corte.

Em 1982, o tribunal decidiu, em NAACP v. Claiborne Hardware, que líderes de protestos não podem ser responsabilizados por ações violentas de um participante da manifestação, desde que os atos de violência não tenham sido autorizados, direcionados e ratificados por tais líderes.

Em 2023, a corte decidiu, em Counterman v. Colorado, que a Primeira Emenda da Constituição, que garante a liberdade de expressão, “impede a punição” por incitação de ações violentas, “a não ser que as palavras (de um líder de protesto) tenham tido a intenção (não apenas uma suposta intenção) de provocar um distúrbio iminente”.

Retórica carregada de emoção

No “caso Claiborne”, Charles Evers, o líder de um boicote contra lojas de brancos, fez um discurso que terminou com palavras inflamatórias: “Se pegarmos você indo a uma dessas lojas racistas, vamos quebrar seu pescoço”. A Suprema Corte expressou o entendimento de que isso não passava de “retórica carregada de emoção”.

A corte determinou que a Justiça deve observar três teorias diferentes para responsabilizar o líder de um protesto: 1) O líder autorizou, direcionou e ratificou uma atividade ilícita específica; 2) Seu discurso incitou ações ilegais, que aconteceram dentro de um período razoável; 3) Seu discurso é uma prova de que o líder deu instruções específicas aos participantes do protesto para promoverem atos violentos.

Ao decidir o caso atual, o Tribunal Federal de Recursos da 5a Região acrescentou à lista uma quarta teoria: a de que “a Primeira Emenda não se aplica quando o réu cria condições perigosas irracionalmente e quando a criação dessas condições causa danos físicos a alguma outra pessoa”.

“Outra pessoa”, no caso julgado pelo tribunal, é um policial de Baton Rouge, no estado de Louisiana, que sofreu ferimentos graves no rosto quando um participante de um protesto atirou uma pedra em direção aos policiais. Como o agressor não foi identificado, o policial moveu uma ação indenizatória contra o líder do protesto, DeRay Mckesson.

McKesson ajudou a organizar um protesto em massa do movimento Black Lives Matter contra a polícia de Baton Rouge, depois que dois policiais atiraram seis vezes em Alton Sterling, um homem negro que já estava imobilizado no chão. O Departamento de Polícia e a Promotoria da cidade se recusaram a processar os policiais, declarando que eles agiram de forma correta.

Maioria republicana

A única pessoa processada pelo incidente foi McKesson, considerado o líder do protesto. O Tribunal Federal de Recursos da 5a Região, o mais republicano do país, com 13 juízes republicanos e apenas quatro democratas, decidiu contra ele, mas sob um enérgico voto dissidente do juiz Don Willett, que é republicano.

“A decisão desta corte em ‘McKesson’ irá responsabilizar organizadores de protestos por atos ilegais de pessoas contrárias ao protesto e de agitadores. Assim, um membro da Ku Klux Klan pode se infiltrar em um protesto do Black Lives Matter só para sabotá-lo, através de atos de violência”, escreveu Willett.

Para o juiz, ninguém que organiza um evento em massa, ao qual comparecem milhares de pessoas, pode controlar as ações de todos os participantes, não importa se for um protesto político, um concerto de música ou um jogo de futebol.

Assim, se organizadores de protestos podem ser sancionados por ações ilegais de qualquer participante do evento, ninguém poderá, em sã consciência, organizar um protesto político novamente.

Agora, o processo voltará à primeira instância, para prosseguir o julgamento de Mckesson. E, em seguida, voltará ao tribunal de recursos e à Suprema Corte. Em uma declaração anexada à negação de certiorari, a ministra Sonia Sotomayor expressou a esperança de que, na próxima oportunidade, a corte mudará a decisão do Tribunal de Recursos da 5ª região.

Uma questão que tem sido discutida é se a decisão do tribunal de recursos se aplicaria ao ex-presidente Donald Trump, que incitou a invasão do Congresso em 6 de janeiro de 2021 — um acontecimento que resultou em ferimentos graves de agentes de segurança.

Uma defesa de Trump, nesse caso, é a de que tudo o que ele falou no discurso que motivou a turba a invadir o Congresso é protegido pela Primeira Emenda, que garante a liberdade de expressão. Nenhum dos agentes feridos processou Trump.

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