Opinião

A ilegal prisão da professora e o fracasso do sistema: o que fazer?

Autores

  • Lenio Luiz Streck

    é jurista professor doutor em direito e advogado sócio fundador do Streck & Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br

  • Gina Ribeiro Gonçalves Muniz

    é mestre em Ciência Jurídico Criminais pela Universidade de Coimbra e defensora pública do estado de Pernambuco.

  • Jorge Bheron Rocha

    é professor de Direito e Processo Penal doutor em Direito Constitucional pela Unifor (Capes 6) mestre pela Universidade de Coimbra (Portugal) com estágio de pesquisa na Georg-August-Universität Göttingen (Alemanha) especialista em Processo Civil pela Escola Superior do Ministério Público do Ceará defensor público do estado do Ceará e membro e ex-presidente do Conselho Penitenciário do Estado do Ceará.

11 de dezembro de 2023, 12h10

No Brasil, a prisão de uma professora de 23 anos, S.A.O. [1], no momento em que lecionava em uma escola de Rio Bonito (RJ), por um crime ocorrido há 13 anos na Paraíba, chocou a comunidade jurídica. A jovem, que na época do crime tinha 10 anos, ficou detida por oito dias em uma unidade prisional devido ao cumprimento do mandado de prisão preventiva [2].

O fato narrado acima expõe todas as vísceras do claudicante sistema criminal brasileiro, que embora tenha obtido alguns avanços, ainda precisa percorrer um imenso caminho para assegurar a efetivação das garantias mínimas dos investigados/acusados/condenados. No presente artigo, debateremos as falhas inerentes a esse caso, sabendo que erros similares (infelizmente) permeiam o cotidiano do sistema de justiça criminal.

Em que pese a prisão tenha se efetivado em desfavor de uma jovem de 23 anos, a apuração teve por base uma suposta extorsão praticada em 2010, contra um comerciante paraibano que foi coagido a fazer uma transferência no valor de mil reais, e, no decurso das investigações, apurou-se que uma das contas beneficiadas estava cadastrada no CPF da professora. Se as autoridades processantes tiveram acesso ao CPF e contas da pessoa investigada, logicamente teriam facilidade de  conferir a sua data de nascimento, verificando que a professora era, à época,  repita-se, uma criança de apenas 10 anos.

A idade da acusada à época do crime é um dado relevante no processo penal, pois determina a (in)imputabilidade de uma pessoa (artigo 228, CRFB), bem como interfere no cômputo dos prazos prescricionais (artigo 115, CP). A mera (e necessária) cautela de se ter checado a idade da suposta investigada já teria sido suficiente para evitar uma denúncia injusta, um processo desprovido de justa causa e uma prisão absolutamente inconstitucional.

Além dos impactos brutais do estado punitivista na vida pessoal da professora, ressalta-se ainda o acoplamento de custos ao erário, lembrando que, no caso, foram expedidas até cartas precatórias; dispêndio de recursos humanos (servidores, juízes, membros do Ministério Público e da Defensoria Pública, policiais civis, penais e militares, peritos médicos, oficiais de justiça, etc.,); bem como  prejuízos a celeridade de outros processos, pois a movimentação desnecessária da máquina estatal em favor deste caso impediu o andamento dos demais.

A problemática é que, ao contrário do que preconiza o CPP brasileiro (artigo 395), as denúncias são quase á unanimidade automaticamente recebidas pelo Poder Judiciário, e, igualmente, a despeito do princípio da presunção de inocência, prisão preventivas são decretadas em linha de produção fordiana. O resultado desse combo é justamente uma enorme população carcerária lançada em um sistema penitenciário já declarado como um “Estado de Coisas Inconstitucional” pelo STF (ADPF nº 347), cujas violações constantes aos direitos fundamentais dos presos não encontram um horizonte de cessação, mas, ao revés, de perpetuação e recrudescimento.

Foi justamente como instrumento de prevenção contra prisões ilegais ou desnecessárias que as audiências de custódia foram implementadas no Brasil em 2015, em que pese os instrumentos normativos para tanto já existissem desde 1992, em razão da ratificação da Cadh (artigo 7.5) e do PIDCP (artigo 9.3). Com o advento da Lei nº 13.964/19, as custódias foram regulamentadas também no CPP. E somente em dezembro de 2020, por intermédio do julgamento da Reclamação Constitucional nº 29.303, é que ficou expressamente determinado que as audiências de custódia passaram a abranger, para além das prisões em flagrante, também as preventivas, temporárias, definitivas, e as prisões civis dos devedores voluntários de alimentos.

Atualmente, em regra, as audiências de custódia são realizadas em Núcleos de Plantões ou Núcleos Regionais. Conforme já alertado, “a redução de custos é fruto de uma prevalência da ideologia economicista, em que o Estado vai se afastando de suas funções (…) o que estão fazendo é retirar a garantia da jurisdição, a garantia de ter um juiz, contribuindo ainda mais para que eles assumam uma postura burocrática e de assepsia da jurisdição” [3]. Essa organização facilita o fluxograma de realização das audiências, contudo, em se tratando daquelas oriundas de cumprimento de mandado de prisão, não podemos falar em efetivo acesso à justiça, porquanto as ilegalidades encontradas nas prisões cautelares, definitivas ou cíveis não podem ser imediatamente afastadas pelo juiz que preside a custódia.  Colacionamos excerto de decisão do CNJ [4]:

“(…) essa estipulação objetiva assegurar a inequívoca ciência, pela unidade prolatora da ordem de captura, de que a constrição aconteceu, possibilitando que já nessa ocasião a necessidade da medida possa ser revista pelo Juízo natural. Diante da impossibilidade de que os magistrados atuantes nas centrais de custódia ou os juízes plantonistas exerçam revisão ou retratação das prisões estipuladas pelo órgão jurisdicional competente, bem assim como porque é fundamental a certeza de que aquele que ordenou a captura tomou inequívoca e imediata ciência de que ela aconteceu e das suas circunstâncias, é que nesses tipos de prisão o CNJ deliberou que as solenidades sejam conduzidos pelos Juízos naturais e que desencadearam a privação da liberdade.”

Assim, os Tribunais baixam normativos que, de um lado, entregam à realização das audiências de custódia a juízes em regime de plantão ou localizados em polos regionais; por outro, negam a esses juízes os “poderes jurisdicionais” para analisar os fundamentos da decretação da prisão. Por assim dizer, retiram dos juízes naturais a “competência” para a realizar a audiência de custódia das prisões decorrentes de suas próprias decisões; ao mesmo tempo que não a atribuem a nenhum outro órgão jurisdicional, fazendo com que a pessoa, tal e qual ocorreu com a professora S.A.O., reste presa em um limbo jurídico por dias, semanas ou meses.

Em que pese se reconheça a importância do combate à tortura e maus tratos contra presos, esse não é o único objetivo da audiência de custódia. A função de insurgência contra prisões ilegais somente se efetivará quando o juiz responsável pela custódia for dotado de poderes para fazer cessar as ilegalidades ou abusos por ventura detectados. Do contrário, muitas pessoas suportarão injustamente as agruras de uma prisão indevida.

O crasso erro do Ministério Público em denunciar S.A.O. foi reproduzido pelo juiz natural dos fatos, na medida em que recebeu a denúncia e ainda decretou a prisão preventiva da ré. A sequência de erros reverberou consequências no estado do Rio de Janeiro, onde foi cumprida a ordem de prisão oriunda do estado da Paraíba. Submetida à audiência de custódia, a professora esclareceu os fatos, e mesmo diante da gritante injustiça, S.A.O. seguiu presa por (longos) oito dias. Bizarro!

A prisão somente foi revogada com a decisão do juiz natural do caso, comarca da Paraíba, ocasião em que reconheceu: “a prisão decretada em momento anterior, em face da referida acusada, depreendeu-se a partir de parcas informações trazidas aos autos pelas partes, bem como pela deficiência na exordial acusatória”.

Ressalte-se a teratologia: S.A.O. ainda amargou a ilegal dilatação de sua prisão por muito mais do que 24 horas após a expedição do alvará de soltura, em total inobservância da Resolução nº 417/2021 (art. 6º) e da decisão tomada no Pedido de Providências — 0002696-38.2020.2.00.0000/CE, ambos do CNJ.

De fato, o órgão acusador poderia e, mais, deveria ter feito uma qualificação completa da pessoa acusada, o que lhe demandaria uma simples consulta aos bancos de dados a que tem acesso. Mas essa falha não poderia ser ratificada pelo Poder Judiciário. Ora, se a denúncia era deficiente e trazia apenas parcas informações, pergunta-se: como foi recebida e deferida a prisão preventiva pelo magistrado do feito? E mais, realmente poderia o juiz responsável pela custódia, diante dessa aberração jurídica, limita-se à simples verificação de ocorrência de tortura ou maus tratos, mantendo a prisão sob o argumento de que uma norma do Tribunal local determina que não tem competência meritória para analisar a prisão da autuada, olvidando a normativa da Cadh, PIDCP, CPP, ADPF nº 347, Resolução 213/2015 e Reclamação nº 20.303?  Na verdade, o correto seria o contrário, o julgador ao realizar a audiência de custódia deve afastar a aplicação de normas jurídicas que contrariem a Constituição (controle de constitucionalidade) e os tratados internacionais (controle de convencionalidade). [5]

A audiência de custódia é uma ferramenta jurídica importante para verificar a legalidade das prisões e evitar detenções ilegais. Segundo a Resolução 213 do CNJ, é essencial que os participantes da audiência – juízes, defensores públicos ou privados e promotores de justiça — analisem minuciosamente os elementos que embasam a prisão. Para tanto, todos devem ter integral acesso aos elementos informativos do processo originário, seja ele a investigação onde foi decretada a prisão temporária ou preventiva, seja da ação penal onde fora decretada a preventiva, seja a execução penal onde há a guia de recolhimento.

Algumas prisões oriundas de condenações definitivas podem ser — como de fato já o foram — revertidas em razão de a defesa ter conseguido acesso aos autos da execução, por exemplo, para demonstrar que a determinação de recolhimento à prisão nos casos de condenação em regime semiaberto foi decretada antes da edição da Resolução 474/2023 pelo CNJ, e logicamente, não poderiam subsistir após a regulamentação da matéria pelo Conselho.

Mesmo em alguns casos de prisão preventiva, em razão da distância temporal ou mesmo dos fundamentos que levaram a sua decretação, deveriam e poderiam ser revistas na custódia. A consumação da prescrição ou a configuração de abolitio criminis são exemplos que bem ilustram essa necessidade.

O uso abusivo das prisões (provisórias ou definitivas em regimes menos gravosos), muitas vezes aplicada “para  suprir  a  ineficiência  estatal  no  seu  papel  de  garantir  a  segurança  pública  da  sociedade  e  combater  a  criminalidade” [6], é medida extremamente deletéria na medida em que dilui laços familiares, sociais e profissionais, e delega ao detento uma estigmatização [7] que dificilmente se apaga da memória emocional ou social.

Para que outras pessoas não tenham sua dignidade alvitrada por prisões injustas, é fundamental que as instituições responsáveis revisem seus procedimentos e sejam mais diligentes na aplicação das convenções internacionais, da Constituição, das leis e das resoluções pertinentes. No que tange às audiências de custódia, pensamos que guarnecer os juízes de poderes jurisdicionais para adentrar no mérito prisional, bem como possibilitar que o julgador e as partes tenham acesso integral aos autos de onde se originou a prisão, são passos imprescindíveis para debelar a violação sistemática dos direitos humanos. O Conselho Nacional de Justiça pode aprimorar a Resolução 213/2015 neste ponto, com a oitiva das demais instituições do sistema de justiça e da sociedade civil.

Em tese, a solução sugerida poderia advir também do Poder Legislativo. Não obstante, garantir direitos e garantias fundamentais de pessoas acusadas não é pauta que engradeça os olhos do eleitorado brasileiro. Caso a professora S.A.O. ostentasse o status de vítima, e nessa qualidade tivesse sofrido uma injustiça, o caso divulgado na impressa possivelmente seria propalado com bem mais intensidade pela sociedade, e a opinião pública iria reverberar em propostas legislativas para que evitar novas injustas, a exemplo do que aconteceu com a Lei Mariana Ferrer, Lei Henry Borel, Lei Maria da Penha, Lei Joana Maranhão, Lei Carolina Dieckmann, Lei Cristiano Araújo, dentre tantos outras.

Não se trata de criticar as leis acimas referidas, mas sim de questionar: por que as injustiças experimentadas por pessoas acusadas não podem desencadear mudanças legislativas? A resposta é simples: isso poderia implicar perda de votos na campanha eleitoral subsequente.

Acerca do populismo penal, valemo-nos dos ensinamentos de Antonella Galindo:

“Seria uma espécie de estratagema político oportunista voltado à manipulação da opinião pública, sendo uma manifestação concreta da retórica manejada por políticos profissionais que procuram realizar um conjunto de reformas penais com o intuito de obter dividendos eleitorais em vez de reduzir efetivamente os conflitos sociais que resultam no comento de crimes” [8].

Opinião pública e populismo penal se retroalimentam em um ciclo vicioso. Nesse contexto, esperamos que o Poder Judiciário, no exercício de sua missão contramajoritária, tome providências para assegurar a todos o direito de ter uma prisão ilegal imediatamente cassada pela autoridade judiciária que se deparar com a situação.

P.S: professora S.A.O., a sua prisão foi injusta. Desejamos que o Estado repare seus danos, ainda que impossível fazê-lo em sua totalidade. Esperamos que o seu (triste) exemplo encoraje o Judiciário a aprimorar as audiências de custódia, no sentido de coibir (efetivamente) todas as modalidades de prisões ilegais no Brasil.

 

[1] Decidimos utilizar apenas as iniciais do nome da professora  a fim de não potencializar a estigmatização.

[2]Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2023/12/01/professora-e-presa-por-engano-no-rio.ghtml, acesso em 05/12/2023.

[3] LOPES JR, A.; PAIVA, C. . Audiência de custódia e a imediata apresentação do preso ao juiz: rumo a evolução civilizatória do processo penal. Revista da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, n. 9, p. 154–174, 2014. Disponível em: https://revista.defensoria.rs.def.br/defensoria/article/view/82. Acesso em: 7 dez. 2023

[4] Decisão. CNJ. Disponível em: https://www.direitopenalbrasileiro.com.br/wpcontent/uploads/2022/08/audiencia-custodia-feita-juizo-ordenou.pdf. Acesso em:14 out. 2022

[5] Valerio de Oliveira Mazzuoli. Teoria geral do controle de convencionalidade no direito brasileiro. In Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 46 n. 181 jan./mar. 2009

[6] Streck, L. L., Bheron Rocha, J., & Muniz, G. R. G. . (2022). A IMPOSSIBILIDADE DE DECRETAÇÃO, DE OFÍCIO, DA PRISÃO PREVENTIVA EM UM PROCESSO PENAL PARAMETRIZADO PELO SISTEMA ACUSATÓRIO. Revista Direito E Justiça: Reflexões Sociojurídicas, 22(42), 139-156. https://doi.org/10.31512/rdj.v22i42.412

[7] «O encarcerado, saído do cárcere, crê não ser mais encarcerado; mas as pessoas não. Para as pessoas, ele é sempre encarcerado; quando muito se diz ex-encarcerado» CARNELUTTI, Francesco; As Misérias do Processo Penal. São Paulo: Editora Nilobook, 2013, p.99

[8] GALINDO, Bruno. Populismo jurídico e instabilidade institucional: as constituições democráticas podem contê-los? In BRANCO, Pedro H. Villas boas Castelo; GOUVÊA, Carina Barbosa; LAMENHA, Bruno (org.). Populismo, constitucionalismo populista, jurisdição populista e crise da democracia. Belo Horizonte, MG: Casa do Direito, 2020, p.291.

 

 

 

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