Opinião

A prisão preventiva é uma petição de princípio

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15 de abril de 2024, 6h08

A prisão preventiva é um instituto do processo penal que encerra um grande paradoxo: todos os grandes doutrinadores do processo penal, no mundo inteiro, no passado e ainda hoje, afirmam que ela é uma violação frontal e direta à presunção de inocência; afirmam que ela é uma injustiça certa contra o cidadão ainda não condenado, e que pode ser absolvido; afirmam o mal irreversível que ela causa não apenas ao acusado, mas à sua família; reconhecem o descrédito que ela produz no sistema de justiça criminal; condenam o abuso que existe na sua utilização; e todos esses mesmos autores, reconhecendo tudo isso, não hesitam em afirmar: ela deve existir.

E acrescentam: ela deve existir como exceção, e não como regra. E desde sempre essa excepcionalidade foi tranquila e descaradamente violada.  Não por outra razão, Carmignani assim sintetizou sobre a prisão preventiva: “tutti la combattono, e per tutto si pratica.” [1]

Por que a prisão preventiva consegue sobreviver no tempo e no espaço mesmo sendo reconhecidamente injusta e perversa? É porque as justificativas que se levantam em favor dela costumam ser bastante convincentes, e, a contrario sensu, difíceis de serem contestadas por aqueles que possam pretender aboli-la. São basicamente estas, segundo Lucchini [2], as justificativas dos defensores da prisão preventiva:

  1. para assegurar a aplicação da lei penal: o acusado pode fugir;
  2. para assegurar a instrução criminal: o acusado pode frustrar a colheita de provas;
  3.  para garantir a ordem pública: o acusado pode cometer novos delitos. Em suma: necessidade “di giustizia”, necessidade “di verità” e necessidade “di pubblica difesa”. [3]

Todas as três justificativas parecem autoexplicativas e satisfazem de imediato, e por isso elas explicam “tanta manìa di carcere prima della condanna definitiva”, na feliz expressão de Carrara [4]. Ocorre que uma reflexão mais ponderada revela que todas essas justificativas encerram petições de princípio.

A justificativa da aplicação da lei penal — o acusado pode fugir — contém na verdade duas petições de princípio. A primeira é sobre o ato da fuga em si: considerá-la necessariamente um ato exclusivo de acusados culpados. Como diz Lucchini, “è proprio anche degli innocenti temere la giustizia degli uomini”. [5]

Não é raro inocentes praticarem esse ato que todos interpretam imediatamente como do culpado: fugir. Mas a fuga pode ser um ato irrefletido do inocente por medo, desespero, autopreservação. E, portanto, “se não há fuga sem medo, há medo sem culpa. E até que os métodos vexatórios sejam eliminados — o horrível sistema de perseguir um indivíduo sem a prova da sua delinquência —, não se pode ter a sua fuga ou tentativa de fuga considerada como indício ou prova de culpa”. [6]

Spacca

Risco de fuga

A segunda petição de princípio, depois de ter considerado o ato de fuga como um ato de culpados, é presumir que o acusado irá de fato fugir. E aqui surgem dois problemas: primeiramente, se se decreta a prisão preventiva, o acusado, com medo da prisão, poderá de fato…fugir, mas não porque “já iria fugir”, mas porque o fez pela decretação da prisão, e então a prisão preventiva se autolegitima pela fuga por ela própria causada… Em segundo lugar, como aduzem Lopes Jr. e Morais da Rosa, se a prisão preventiva do acusado é de fato consumada com esse fundamento da fuga, a demonstração da falsidade desse requisito torna-se impossível: “O grande problema é que, uma vez decretada a prisão, os argumentos “falsificados” pela construção linguística são inverificáveis e, portanto, irrefutáveis. Se alguém é preso porque o juiz aponta a existência de risco de fuga, uma vez efetivada a medida, desaparece o (pseudo)risco, sendo impossível refutar, pois o argumento construído (ou falsificado) desaparece.”[7]

A prisão preventiva com base no risco de fuga, como se vê, é pura petição de princípio: um círculo vicioso que se autolegitima.

A proteção da instrução criminal é outra petição de princípio: prende-se o acusado porque ele pode querer destruir as provas. Ora, querer destruir provas é obviamente apresentado — só pode ser — como comportamento de culpados, para impedir a busca da verdade. Logo, presume-se a culpa do acusado.

Como lembra Mele, esse argumento também é usado para fundamentar o sigilo inquisitivo: o investigado pode querer atrapalhar a investigação, logo, ela deve ser secreta. Conclui, então, o italiano, que o segredo inquisitivo — e a prisão preventiva que lhe é imanente — é corolário lógico da petição de princípio de se considerar o investigado como culpado:

Essa expressão, em seu conteúdo positivo, parte da premissa de que se trata de um réu que provavelmente é desonesto, ou, se não desonesto, certamente culpado: “desviar” na verdade significa distanciar de um caminho (é evidente, do caminho justo); falso é o oposto de verdadeiro; artificial é o oposto de real. E o acusado inocente – em princípio – não tem interesse algum em desviar o reto curso da justiça, criando uma falsa realidade. Ao contrário, deve ser desejável uma atividade do acusado inocente com o objetivo de destruir qualquer prova falsa recolhida pelo juiz. O sigilo da investigação, assim entendido, é, portanto, uma forma de considerar o acusado culpado e nessa culpa é que está fundamentada a origem do segredo da investigação. [8] (tradução livre)

Veja que aqui também incide o raciocínio de Lopes Jr. e Morais da Rosa sobre ser inverificável a veracidade do argumento: uma vez preso o acusado, é impossível refutar que ele não tinha objetivo de destruir as provas do crime, e a prisão se autolegitima: a investigação é feita com o investigado preso, e, depois de concluída com ele preso, diz-se que a prisão preventiva garantiu o “bom êxito das investigações”.

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Não há como falsificar essa premissa: ela se torna irrefutável.  Note-se a imprudência do raciocínio: o segredo da investigação tem fundamento na culpa do investigado; se então a investigação é secreta, é porque o investigado é culpado; se o investigado é culpado, a investigação deve então ser secreta; e a justiça, se perdendo nas insídias desse círculo vicioso, acaba sempre por considerar todo investigado como culpado, e, consequentemente, como um perigo para a verdade, e a sua prisão é por isso decretada.

A necessidade de preservar a busca da verdade é, em realidade, a necessidade de preservar os interesses do Estado em presumir desde logo a culpa do acusado e confirmá-la depois de uma investigação toda conduzida unilateralmente para construir a culpa. A busca da culpa, e não da verdade, é o verdadeiro fundamento da prisão preventiva, como diz Lucchini: “Non è bisogno di verità quello che s’invoca da una turba farisaica di giuristi; è piuttosto bisogno di persecuzione, e meglio ancora sete di colpabilità”. [9]

Ordem pública

O fundamento da ordem pública peca pelo seu caráter vago e impreciso, que se presta muito facilmente a abusos. Como diz Bentham, de todos os termos vagos, imprecisos e ambíguos, o termo “ordem” vence qualquer outro:

“Entre todas estas denominações abstratas e ambíguas, não há nenhuma que se eleva a maior altura nesta atmosfera de ilusões como a palavra ordem, boa ordem. É de um uso maravilhoso para encher o vácuo das ideias e dar um ar de majestade ao orador. (…). Ordem não é senão o que existe de regular no objeto que consideramos; e boa ordem é aquela que aprovamos. Que era boa ordem aos olhos de Nero? A que era do seu agrado estabelecer. Não há polícia nenhuma incômoda, estilos tirânicos, nem prisão arbitrária, que o déspota não tenha olhado como necessários para a boa ordem e que os escravos da autoridade não tenham qualificado como tais. Ordem é a palavra favorita no vocabulário da tirania. (…). À palavra ordem ajuntai social; e parece que a expressão é um tanto menos vaga e arbitrária. O termo social apresenta ao espírito um estado de coisas considerado como favorável para a felicidade da sociedade (…).”[10] (itálico no original)

De fato, ajuntando-se o termo “social” ou “público”, o benefício da prisão preventiva fica parecendo mais palpável, facilitando então a enumeração de duas “subjustificativas” para a prisão preventiva: o risco de cometimento de novos delitos; e o clamor público, a comoção social gerada pelo delito. A presunção de cometimentos de novos delitos também peca pela petição de princípio: “o réu pode cometer novos delitos”, quando na verdade o delito pelo qual ele está sendo preso e processado… pode ele não ter cometido.

O acusado pode ser absolvido da acusação do delito pelo qual está sendo processado e por cuja existência se invoca a necessidade da prisão preventiva. Presume-se desde logo a culpabilidade do acusado em relação a um delito cuja existência está em apuração, e, logo, que pode ser negada ou cuja autoria pode não ser do acusado.

Ademais, mesmo que o acusado tenha cometido o delito em apuração, o “cometimento de novos delitos” não apresenta perigo para o processo: ameaça de testemunhas, sumiço de provas etc., e, assim, não há nessa justificativa a cautelaridade que justifica a prisão preventiva. Logo, a prisão preventiva aqui opera sutilmente como pura antecipação de pena.

A ordem pública também costuma ser invocada como sinônimo de “clamor público”: o crime gerou comoção social e é preciso, pela prisão preventiva, assegurar o crédito das instituições na luta contra esse crime. Logo, prende-se o acusado para fornecer esse sentimento de justiça instantânea, e, assim, com aplicação de uma pena antecipada, pois pela prisão preventiva invocada com esse fundamento, ela só pode ter esse caráter de antecipação de pena: ver a pessoa presa já assegura os circunstantes de que “a justiça foi feita”.

Conclui-se, assim, que a prisão preventiva pelo clamor social não serve para acautelar nada e será sempre decretada com base em algo fortuito, acidental e em nada ligado à cautelaridade da prisão: o fato de o caso ter gerado comoção social. A prisão preventiva fica dependendo da fortuidade de o caso ter ou não repercutido.

Se não repercutiu, sorte do acusado: ele responderá em liberdade; se repercutiu, azar o dele: é preciso garantir a “ordem pública”. O argumento do “clamor público” degenera, logo, em antecipação de pena, pois a prisão nesse caso é dirigida ao público, e não à cautela do processo. Em ambas as hipóteses — presunção de cometimento de novos delitos e clamor público —, a justificativa da ordem pública traduz pura antecipação de pena.

Credibilidade do sistema

Agora se se olha verdadeiramente ao que a prisão preventiva produz no sistema de justiça criminal, percebe-se exatamente o oposto do que os seus fautores pregam. Longe de assegurar a credibilidade no sistema de justiça, vulnera-a irreversivelmente, pois introduz, na acurada expressão de Vismara, “il verme di un dubbio parassita” sobre o julgamento pronunciado pela justiça, colocando o cidadão que dela é vítima em eterna suspeita, e, logo, a própria Justiça sob suspeita e desconfiança:

“…a prisão preventiva insinua um sério sentimento de desconfiança na opinião pública contra o preso, mesmo depois de este ter sido reconhecido como inocente pelo juiz, e também insinua no público o verme de um parasita da dúvida que gradualmente corrói e devora a reputação de um cavalheiro. É impossível incutir certeza no público quando a dúvida a destruiu e a tornou impossível: – é mais fácil para a natureza humana formar e manter maus julgamentos do que bons; e a prisão preventiva se infiltra no coração humano com a suspeita de que o acusado foi absolvido por falta de provas legais, mas que deve ter havido alguma coisa se ele foi investigado.”[11] (tradução livre)

Se o público suspeita do acusado absolvido que passou o processo preso preventivamente, ela está efetivamente suspeitando do próprio sistema de justiça: ou a justiça errou em manter um acusado preso preventivamente que foi inocentado; ou ela errou em tê-lo absolvido, e a prisão preventiva “estava certa”.

Temos exemplos diários desse tipo de descrédito e desconfiança que a prisão preventiva produz na Justiça, quando então pessoas que passaram anos presas preventivamente são absolvidas: “80% dos absolvidos por erro no reconhecimento ficaram mais de um ano presos[12]; “Júri absolve acusados de matar policiais após oito anos de prisão preventiva[13]; “Júri absolve por clemência acusado de planejar morte do marido de amante[14].

Em todos esses casos, absolvição alguma é capaz de desfazer o mal da prisão preventiva: “Non vale una sentenza che lo dichiari innocente — il cittadino che à passato la porta di uno stabilimento penale, e à dormito una sola notte sotto il tetto che ospita il ladro ed il falsario, non è più quegli di prima, nè innanzi a sè medesimo, nė agli occhi de’suoi concittadini”. [15]

Por fim, a prisão preventiva é ela própria fator de aumento da criminalidade, por introduzir o cidadão, ainda não condenado, naquele “contagio pestifero”, como diz Filangeri, e, colocando-o na mesma “spelonca con delinquenti già condannati, egli non vi respira, per così dire, che l’odore del delitto”. [16]

A sociedade, a pretexto de ser por ela protegida, é diariamente exposta ao mal que a prisão preventiva causa, sem percebê-lo, pois todo esse mal que ela causa é dissimulado pelas petições de princípio acima expostas. Qual veredicto emitir em relação a esse maligno instituto que é a prisão preventiva, senão o da sua imediata abolição?

 


[1] CARMIGNANI, Giovanni. Teoria delle leggi della sicurezza sociale, Tomo IV, Pisa, 1832, p. 200.

[2] LUCCHINI, Luigi. Il carcere preventivo e il mecanismo istruttorio, Venezia, 1872, p. 107.

[3] Idem.

[4] CARRARA, Francesco. Immoralità del carcere preventivo in Opuscoli di diritto criminale, IV, Prato, 1889, p. 299.

[5] Il carcere preventivo…, p. 128.

[6] Idem.

[7] Crise de identidade da “ordem pública” como fundamento da prisão preventiva. https://www.conjur.com.br/2015-fev-06/limite-penal-crise-identidade-ordem-publica-fundamento-prisao-preventiva/. Acesso em 07/04/2024.

[8] MELE, Vittorio. Il segreto istruttorio, Napoli: Casa Editrice Dott. Eugenio Jovene, 1959, p. 89.

[9] Il carcere preventivo…, p. 167.

[10] BENTHAM, Jeremy. Tratado dos sofismas políticos, Trad. Antonio José Falcão da Trota, Editora Logos, s.d., p. 83.

[11] VISMARA, Antonio. Codice di procedura penale del Regno d’Italia, 2ª Edizione, Napoli: Giuseppe Marghieri Editore, 1871, p. XII.

[12] https://www.conjur.com.br/2022-mai-05/80-absolvidos-reconhecimento-ficaram-ano-presos/. Acesso em 07/04/2024.

[13] https://www.conjur.com.br/2024-abr-06/juri-absolve-acusados-de-matar-policiais-apos-oito-anos-de-prisao-preventiva/. Acesso em 07/04/2024.

[14] https://www.conjur.com.br/2024-mar-24/juri-absolve-por-clemencia-acusado-de-planejar-morte-do-marido-de-amante/. Acesso em 07/04/2024.

[15] LUCCHINI, Luigi. Il carecere preventivo…, p. 166.

[16] FILANGIERI, Gaetano. La scienza della legislazione, Volume terzo, Dalla Società Tipogragica de’classici italiani, 1822, p. 83.

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