Judiciário, protagonista da História

Decisões judiciais impactaram o Brasil nos 200 anos desde a independência

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7 de setembro de 2022, 15h50

O Brasil completa 200 anos como país independente de Portugal nesta quarta-feira (7/9). Nesse período, diversas decisões judiciais impactaram a nação. Entre elas, as que formataram o alcance do Habeas Corpus e do controle de constitucionalidade, que permitiram uniões homoafetivas, e que asseguraram a liberdade de expressão e a presunção de inocência até o fim do processo.

Pedro Américo/Reprodução
ReproduçãoQuadro de Pedro Américo romantiza declaração de independência do Brasil

Em 1808, a família real portuguesa, temendo os avanços do imperador francês Napoleão, se refugiou no Brasil, transferindo a capital do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves para o Rio de Janeiro.

Depois de chegar ao Rio, D. João VI passou a tomar diversas medidas que pavimentaram o caminho para o processo de independência do Brasil, como a abertura dos portos às nações amigas, o fim da proibição de indústrias, a construção de um sistema de tributação centrado nas incidências sobre o comércio exterior e a criação dos cursos universitários.

Em 7 de setembro de 1822, D. Pedro I declarou a independência do Brasil às margens do Rio Ipiranga, em São Paulo.

A ConJur pediu a advogados e professores que apontassem as decisões judiciais mais importantes para a formação do país e da sociedade brasileira nos dois séculos como nação independente. Veja abaixo as sentenças e acórdãos citados pelos especialistas.

Doutrina brasileira do Habeas Corpus (1914)
Ao ser impedido, por um delegado de polícia, de publicar um dos seus discursos críticos ao governo no jornal O Imparcial, o jurista Ruy Barbosa impetrou pedido de Habeas Corpus no Supremo Tribunal Federal.

Barbosa alegou direito à liberdade de expressão. Ele, que era senador, sustentou que os pronunciamentos eram inerentes ao mandato e que o povo precisaria saber como agem seus representantes. O jurista também defendeu que o HC deveria proteger a todos de ações violentas ou coação estatal, quando ilegais ou com abuso de poder.

O STF, no julgamento do Habeas Corpus 3.536, aceitou por maioria a tese, assegurando a Ruy Barbosa o "direito constitucional de publicar os seus discursos proferidos no Senado, pela imprensa, onde, como e quando lhe convier".

O jurista Lenio Streck, professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e da Universidade Estácio de Sá, afirma que, com a decisão, a Corte inaugurou a assim a chamada "doutrina brasileira do Habeas Corpus", que estende até hoje o sentido de "coação" para todas as hipóteses, independentemente de um constrangimento físico direto. O acórdão ensejou o surgimento posterior de outros institutos, como o mandado de segurança.

Decisões contra comunistas
Em 1936, a Corte Suprema dos Estados Unidos do Brasil, nome que o Supremo Tribunal Federal recebeu pela Constituição de 1934, no julgamento do Habeas Corpus 26.155, autorizou a extradição da comunista de origem judaica Olga Benário Prestes para a Alemanha nazista, onde ela foi executada em um campo de concentração.

A defesa tentou, sem sucesso, impedir a deportação de Olga para a Alemanha nazista, conforme determinado pelo governo de Getúlio Vargas, por conta da atuação da militante no levante conhecido como Intentona Comunista, em 1935.

Olga Benário, que era mulher do líder comunista Luís Carlos Prestes, fora presa para ser expulsa do país, como estrangeira perniciosa à ordem pública. O HC foi pedido para que ela fosse julgada por crimes cometidos no Brasil, alegando-se sua gravidez.

O caso de Genny Gleiser é semelhante. Judia de origem romena, a jovem de 17 anos foi acusada de ligações com o comunismo, presa, maltratada e deportada pela ditadura Vargas, em 1935.

Em HC, a defesa de Genny sustentou que ela apenas havia participado de uma reunião de socialistas, mas que não tinha envolvimento com o movimento.

A Corte Suprema negou o Habeas Corpus 25.906, e a jovem foi expulsa do Brasil. "A Suprema Corte entendeu que Genny era estrangeira e nociva à ordem pública, o que justificaria a legalidade do decreto de expulsão. Invocou-se que eventuais maus tratos deveriam ser discutidos com as autoridades responsáveis, isto é, junto à polícia do estado de São Paulo. A aproximação com comunistas comprovaria a nocividade à ordem pública", explica o advogado Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, autor do livro Direito e História — uma relação equivocada (Edições Humanidades).

Fundado em 1922, o Partido Comunista Brasileiro (PCB) foi legalizado em 1945, com o fim do Estado Novo. Na disputa para a Assembleia Constituinte de 1946, a legenda elegeu 14 deputados — entre eles, o escritor Jorge Amado — e um senador, Luís Carlos Prestes.

Em entrevista a jornais, Prestes foi questionado sobre qual seria a posição dos comunistas se o Brasil se aliasse aos EUA em uma guerra contra a União Soviética. O senador respondeu que o PCB ficaria contra o Brasil, caso o governo se colocasse "a favor do imperialismo".

No dia seguinte à declaração de Prestes, chegaram ao Tribunal Superior Eleitoral os pedidos de cassação do partido. "A Procuradoria-Geral da República deu parecer favorável à cassação do registro, e o TSE assim o determinou em 1947, dando ponto final a um capítulo triste para a história democrática nacional", aponta Lenio Streck. O banimento da legenda foi concretizado pela Resolução TSE 1.841/1947.

No governo democrático de Getúlio Vargas, o poeta e diplomata João Cabral de Melo Neto impetrou mandado de segurança contra decreto do presidente que o colocava em disponibilidade inativa, sem remuneração, como resultado de parecer que lhe imputou ligação com atividades subversivas relacionadas ao PCB, então na ilegalidade.

O Supremo concedeu a ordem no MS 2.264, por unanimidade, em 1954. O ministro relator, Luiz Gallotti, em entendeu que a pena aplicada, de disponibilidade não remunerada, não tinha previsão legal.

Na ditadura militar, também houve decisões relevantes envolvendo comunistas — ou supostos comunistas.

Pouco depois do golpe, em 1964, o jornalista e escritor Carlos Heitor Cony foi denunciado por violar a Lei de Segurança Nacional (Lei 1.802/1953) em uma série de artigos que vinha publicando no Correio da Manhã, e que eram supostamente ofensivos ao Exército e, especialmente, ao ministro da Guerra, marechal Costa e Silva.

Cony impetrou pedido de Habeas Corpus junto ao STF. A Corte, no julgamento do HC 40.976, concedeu a ordem para que Carlos Heitor Cony respondesse às acusações nos termos da Lei de Imprensa, que lhe era mais propícia. "Desde aquele tempo era necessário que se denunciasse a nudez do rei", destaca Godoy.

Miguel Arraes, governador de Pernambuco, foi cassado após o golpe militar e preso. Em 1965, foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional pela Justiça Militar. Os advogados Heráclito Fontoura Sobral Pinto e Antônio de Brito Alves impetraram pedido de Habeas Corpus em favor de Arraes.

O STF avaliou que os crimes imputados a Arraes tinham sido cometidos antes de ele exercer o cargo de governador. O relator do caso, ministro Evandro Lins e Silva, citou a Súmula 394, que tinha a seguinte redação: "Cometido o crime durante exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação do exercício funcional".

Levando-se em conta que Arraes era governador de Pernambuco à época dos fatos imputados como criminosos, a competência para julgá-lo seria do estado, e não da Justiça Militar. Por isso, o STF concedeu a ordem no HC 42.108.

Arco do Teles (1942)
Em 1942, o ato de tombamento federal do Arco do Teles, situado na Praça XV de Novembro, no Centro do Rio de Janeiro, foi questionado no STF.

Domínio público
Domínio públicoArco do Teles, no Rio, protagonizou decisão que consolidou a Lei do Tombamento

A Corte, no julgamento da Apelação Cível 7.377, relatado pelo ministro Castro Nunes, negou o pedido. O Supremo declarou a constitucionalidade da Lei do Tombamento (Decreto-Lei 25/1937) e reconheceu a função social dos bens culturais e o especial regime jurídico a que se submetem.

O ponto mais importante é que o STF concluiu que, em caso de tombamento, o proprietário do imóvel não deveria ser indenizado, aponta o ex-secretário nacional de Justiça Vladimir Passos de Freitas, professor da PUC do Paraná e desembargador federal aposentado.

"Se o STF concluísse que todos os tombamentos era indenizáveis, acabava o patrimônio arquitetônico brasileiro, porque não haveria dinheiro para pagar tantos tombamentos", analisa o ex-magistrado.

Sentença no caso no caso Vladimir Herzog
O jornalista Vladimir Herzog, então diretor da TV Cultura, foi conduzido por militares em 1975 para prestar depoimento sobre as ligações que ele mantinha com o PCB. Ele negou qualquer relação com o partido em DOI-Codi em São Paulo. Herzog foi preso, torturado e assassinado.

O juiz federal Márcio José de Moraes, em 1978, reconheceu a responsabilidade civil da União pela morte do jornalista — uma decisão pioneira na ditadura, segundo Vladimir Passos de Freitas.

A sentença afirmava: "Constata-se a prática de crime de abuso de autoridade, bem como há revelações veementes de que teriam sido praticadas torturas não só em Vladimir Herzog, como em outros presos políticos nas dependências do DOI-Codi". O juiz também ordenou que a Justiça Militar apurasse todas as torturas sofridas por vários jornalistas, mencionadas nos autos do mesmo processo.

Ampliação do controle de constitucionalidade (1971)
Em 1965, já após o golpe militar, foi aprovada a Emenda Constitucional 16 com a reforma do Judiciário. Entre outras coisas, criou a ação direta de inconstitucionalidade, com o mesmo rito da representação interventiva, mas destinada a discutir a constitucionalidade de leis sem necessidade de um caso concreto — e sempre dando competência exclusiva ao procurador-geral da República. A intenção foi dar "economia processual" e permitir que o Supremo decidisse logo, sem sobrecarregar a demanda dos tribunais locais, conforme consta da Proposta de Emenda à Constituição 6/65.

No livro Jurisdição Constitucional, o ministro do STF Gilmar Mendes, professor de Direito Constitucional da Universidade de Brasília e do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), explica que, embora os métodos fossem os mesmos, a representação interventiva e a ADI eram essencialmente diferentes. A primeira destinava-se a questões federativas e pressupunha interesse da União. A última, "à defesa geral da Constituição contra leis declaradas inconstitucionais", ainda que sem nenhum interesse específico, afirma o ministro, no livro. E como a competência era exclusiva do PGR, ele virou um "advogado da Constituição".

A partir de 1970, começou a discussão sobre a legitimidade para a propositura de ADIs. O MDB, em 70, oficiou o procurador-geral, Xavier de Albuquerque, para que questionasse a constitucionalidade do decreto-lei que estabeleceu a censura. "Xavico", como era conhecido em sua terra natal, o Amazonas, se negou a fazê-lo, alegando que não estava obrigado a oficiar o Supremo contra leis que considerasse constitucionais. Reviravolta na tese até então vigente, de Themístocles Cavalcanti, ex-PGR e naquele momento ministro do STF, de que a representação de constitucionalidade deveria ser levada ao Supremo sempre que a PGR fosse notificada. Para ele, isso faria parte de suas funções como "representante da sociedade".

Diante da recusa, o MDB ajuizou uma reclamação afirmando que Xavico havia usurpado a competência do STF para julgar a constitucionalidade de leis (Reclamação 849). Sua resposta, para o partido de oposição ao governo militar, implicava julgamento prévio da conformidade da censura com a Constituição.

O então PGR respondeu que "se o procurador-geral estivesse obrigado a representar ao Supremo sempre que o provocasse qualquer interessado, a sua negativa ofenderia direito subjetivo do interessado e essa ofensa encontraria nos meios próprios o instrumento adequado à devida correção".

Na defesa de sua posição, Xavier citou livro de Alfredo Buzaid, Da Ação Direta de Declaração de Inconstitucionalidade no Direito Brasileiro. Buzaid, que na época era ministro da Justiça, diz que a obrigatoriedade de o procurador representar o Supremo quando é provocado decorre de "um exame superficial". "O Procurador-Geral da República só deve arguir a inconstitucionalidade quando disso estiver convencido. Sua missão não é a de mero veículo de representação", escreveu Buzaid, um dos autores do AI-5.

Xavier de Albuquerque e o governo ganharam. Em março de 1971, o Supremo decidiu que cabe ao PGR decidir "se e quando" arguirá a inconstitucionalidade de alguma lei perante o tribunal. "Poucas questões suscitaram tantas e tão intensas discussões", escreveu Gilmar Mendes. O ministro Themístocles, embora defendesse tese contrária, acompanhou o relator e votou com o governo. Já o ministro Celso Bastos apresentou "tese média" de que o procurador-geral só seria obrigado a ir ao Supremo se fosse representado por órgão público.

Adaucto Cardoso foi o único vencido. Segundo ele, a Lei 4.337/1964 estabeleceu a obrigação do PGR de arguir a inconstitucionalidade de leis sempre que representado por "qualquer interessado". Luís Gallotti respondeu que a lei autorizava o procurador-geral a não fazê-lo, ao que Adaucto respondeu que recebia o argumento "com melancolia".

Antes de ser ministro, Adaucto fora deputado pela Arena, o partido de sustentação do governo militar. Era visto com desconfiança pela ala radical dos militares, mas, quando presidente da Câmara, demonstrou apoio às políticas da ditadura. No episódio da constitucionalidade da censura, acusou os colegas do STF de atuar como procuradores-gerais, e não como juízes — na época, a tradição era que PGRs fossem indicados ao Supremo.

Revoltado com o resultado, o ministro Adaucto Cardoso deixou o Plenário para nunca mais voltar. Jogou a toga sobre a cadeira e se aposentou.

Mas, de acordo com o ministro Gilmar em discurso de homenagem, Adaucto Cardoso estava certo "não só no plano histórico, mas também nos planos teórico e dogmático". "Preocupou-se, substancialmente, em garantir o exercício amplo da jurisdição desta corte em um momento delicado da vida nacional, em que o exercício da política, em modo amplo, encontrava-se estrangulado", discursou o atual integrante do STF.

A Constituição de 1988 deu razão a Adaucto Cardoso e chancelou a importância desse jurista no cenário histórico constitucional brasileiro, avalia Gilmar Mendes em artigo sobre o episódio publicado na ConJur. Isso porque a Carta Magna ampliou o direito de propositura da ação direta de inconstitucionalidade e desenvolveu a ação declaratória de constitucionalidade como uma autêntica ação direta de inconstitucionalidade com "sinal trocado".

"É muito difícil prever o que teria acontecido no plano constitucional se o STF tivesse adotado a linha defendida por Adaucto Lucio Cardoso. É inegável, porém, que a decisão que fortaleceu o monopólio da ação direta nas mãos do Procurador-Geral da República e a crítica que se seguiu a partir do gesto de protesto contribuíram, decisivamente, para a adoção de um modelo de legitimação aberto pelo Constituinte de 1988 (artigos 102, I, a, 103 e 125, parágrafo 2º, da Constituição)", analisa o ministro.

Impeachments de Fernando Collor e Dilma Rousseff (1992 e 2016)
Os presidentes Fernando Collor de Mello e Dilma Rousseff foram alvo de processos de impeachment no Congresso Nacional.

Divulgação
DivulgaçãoFernando Collor em 1990, antes de renunciar à presidência e sofrer impeachment

Collor foi alvo de pedido de impeachment em 1992, após editar pacotes econômicos polêmicos, que abrangiam medidas desde o confisco de poupanças até o bloqueio de contas-correntes, e envolver-se em escândalos de corrupção. O presidente renunciou ao mandato um dia antes do julgamento, em 29 de dezembro de 1992. Mesmo assim, o Senado o condenou, declarando-o inelegível pelo prazo de oito anos. O vice dele, Itamar Franco, assumiu a Presidência da República.

Dilma Rousseff foi destituída em 2016, em seu segundo mandato. Os senadores concluíram que a petista cometeu crime de responsabilidade ao atrasar repasses aos bancos estatais, na prática conhecida como pedaladas fiscais, e ao assinar decretos autorizando a abertura de créditos suplementares sem a autorização do Congresso.

Contudo, Dilma não foi inabilitada para exercer funções públicas por oito anos. A separação das penas de perda do cargo e inabilitação é polêmica. Ao julgar um Mandado de Segurança do ex-presidente Fernando Collor em 1993, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a condenação à perda do mandato é indissociável da inabilitação.

Nos dois casos, o STF definiu os ritos dos processos de impeachment. A Corte atribuiu ao Senado o poder para decidir sobre o afastamento do presidente.

O ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso, professor de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, ressalta em seu livro Sem data venia a importância do julgamento que definiu o procedimento do impeachment de Dilma (ADPF 378).

"Um dos principais papeis da Constituição e do STF é a proteção dos direitos fundamentais da minoria. No segundo semestre de 2015, a presidente Dilma Roussef havia perdido a sustentação política no Congresso e a maioria esmagadora da população desejava sua saída do cargo. Nesse contexto, a presidência da Câmara conduzia o seu processo de impeachment com regras erráticas, que iam sendo criadas de acordo com a conveniência do momento. O tribunal interveio para invalidar os atos praticados até então, determinando que fosse seguido o mesmo rito adotado em 1992, quando do impeachment do presidente Collor, que havia sido delineado pelo próprio STF e aprovado pelo Senado [Mandados de Segurança 21.564, 21.623 e 21.689]. A maioria considerou que a destituição de um presidente da República por crime de responsabilidade era um procedimento extremamente grave, que deveria ter regras pré-definidas, sem estar sujeito a manipulações."

Proibição do nepotismo (2008)
O STF proibiu, em 2008, a indicação de parentes de juízes e desembargadores, até o terceiro grau, para cargos de livre nomeação no Judiciário (ADC 12 e RE 579.951). A Corte estendeu a vedação aos Poderes Legislativo e Executivo. Ficam excluídos da restrição a nomeação para cargos estritamente políticos, como ministros ou secretários de Estado.

"Uma das piores tradições do patrimonialismo brasileiro sempre foi a apropriação do Estado, inclusive e especialmente dos cargos públicos. A nomeação de parentes sempre foi a expressão típica desse comportamento", examina Barroso.

Pesquisas com células-tronco (2008)
No mesmo ano, o Supremo declarou a constitucionalidade do dispositivo da Lei de Biossegurança (Lei 11.105/2005) que autorizava e disciplinava as pesquisas científicas com embriões humanos resultantes dos procedimentos de fertilização in vitro, desde que inviáveis ou congelados há mais de três anos (ADI 3.510). Foi um dos primeiros casos em que se confrontaram a visão secular e a visão religiosa da vida, menciona Barroso.

"Parte das células encontradas em embriões até o 14º dia após a fecundação podem se diferenciar em qualquer dos 216 tecidos que compõem o corpo humano, constituindo uma importante fronteira da pesquisa médica e oferecendo perspectiva de cura para doenças que vão das lesões medulares até o diabetes, passando pelas distrofias musculares e o mal de Parkinson. O tribunal entendeu que a destruição de embriões nessa hipótese — embriões que seriam, de todo modo, descartados em algum momento — não violava o direito à vida nem tampouco o princípio da dignidade da pessoa humana", explica o ministro no livro.

Liberdade de expressão (2010 e 2015)
O STF proferiu duas decisões importantes com relação à liberdade de expressão. Em 2010, a Corte decidiu que a Lei de Imprensa (Lei 5.250/1967) era incompatível com a Constituição Federal de 1988 (ADPF 130).

"De acordo com esse entendimento, o espírito autoritário da lei não poderia conviver com os padrões de liberdade de expressão e de liberdade de imprensa exigidos em um regime democrático. Segundo o voto do relator [ministro Carlos Ayres Britto], nenhuma modalidade de censura prévia é aceitável e nem mesmo a lei poderia instituí-la. Essa decisão foi fundamento para uma série de decisões posteriores, invalidando atos de censura praticados no âmbito do Poder Judiciário", analisa Barroso.

Posteriormente, o Supremo considerou inconstitucional a exigência, estabelecida no Código Civil, de autorização prévia da pessoa biografada ou de seus familiares para a divulgação de obras biográficas (ADI 4.815).

"A proibição de biografias não autorizadas criaria um país chapa branca, sem liberdade de informação e de crítica. A subsistência dessa regra permitia a proibição judicial de divulgação de obra dessa natureza, instituindo a possibilidade de censura prévia incompatível com a Constituição, em violação à liberdade de expressão e ao direito à informação", afirma o ministro no livro.

O professor de Direito Administrativo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Gustavo Binenbojm ressalta as decisões do STF. "O Supremo criou, desde a ADPF 130, uma jurisprudência que se alinha entre as mais progressistas do mundo em defesa da liberdade de expressão. É algo de importância visceral e estruturante para a democracia brasileira. De alguma forma, protege a democracia brasileira, inclusive em momentos de retrocessos autoritários, como nos últimos anos no Brasil."

Uniões homoafetivas (2011)
Em 2011, o Supremo Tribunal Federal permitiu a união estável homoafetiva (ADPF 132 e ADI 4.277). A Constituição prevê três enquadramentos de família. A decorrente do casamento, a família formada com a união estável entre homem e mulher e a entidade familiar monoparental (quando acontece de apenas um dos cônjuges ficar com os filhos). Os ministros concluíram que a união homoafetiva deveria ser considerada a quarta forma de família, com todos os seus efeitos jurídicos.

Depois da decisão, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução 175/2013, que proíbe que cartórios recusem o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

"Esta decisão ajudou a derrotar séculos de preconceito e assegurou aos casais homoafetivos os mesmos direitos dos casais heteroafetivos que viviam em união estável. Segundo o entendimento adotado enfaticamente pelo STF, a exclusão baseada na orientação sexual seria incompatível com o direito à busca da felicidade, com o princípio da igualdade, com a proibição do preconceito, com a cláusula geral de liberdade – da qual decorre a proteção à autonomia privada – e com a própria dignidade da pessoa humana. O Estado não pode negar a autodeterminação individual e impor determinada visão do que seja a vida boa", diz Barroso em Sem data venia.

A decisão do Supremo ganhou um prêmio da Unesco de patrimônio documental da humanidade, informa Gustavo Binenbojm. "O Brasil foi o primeiro país do mundo que, por decisão judicial, reconheceu esse direito, que é um direito não apenas à igualdade formal entre as pessoas, mas diz respeito à autonomia afetiva e à autodeterminação no que se refere à orientação sexual e ao reconhecimento da igual dignidade na formação da família."

Cotas raciais (2012 e 2017)
O STF considerou constitucionais, em 2012, as cotas raciais implementadas na Universidade de Brasília (ADPF 186). "Os ministros entenderam que a política de ação afirmativa em favor de grupos sociais historicamente discriminados não viola — antes prestigia — o princípio da igualdade, pelo tempo que perdurar o quadro de exclusão social", aponta Barroso.

Cinco anos depois, o Supremo também considerou legítima a reserva de 20% das vagas em concursos públicos para candidatos negros (ADC 41). Luís Roberto Barroso, que foi relator do caso, analisou que as cotas são "um dever de reparação histórica decorrente da escravidão e do racismo estrutural existente na sociedade brasileira".

Aborto de anencéfalos (2012)
Devido à inviabilidade da vida extrauterina, mulheres têm o direito interromper a gestação quando estiverem grávidas de um feto com anencefalia (formação sem o cérebro), decidiu o STF em 2012.

A 1ª Turma do Supremo, em 2016, entendeu que a interrupção da gravidez até o terceiro mês de gestação não pode ser equiparada ao aborto — e, portanto, não é crime. Dessa maneira, o colegiado absolveu duas pessoas acusadas de atuar em uma clínica de aborto.

Nesse julgamento, o relator do caso, Luís Roberto Barroso, ressaltou que a proibição do aborto no primeiro trimestre viola direitos fundamentais da mulher, como os direitos sexuais e reprodutivos, a autonomia, a integridade física e psíquica e a igualdade.

"Também se afirmou que a criminalização produz impacto desproporcionalmente grave sobre as mulheres pobres, que ficam impedidas de utilizar o sistema público de saúde. Enfatizou-se, por fim, que praticamente nenhum país democrático e desenvolvido do mundo criminaliza a interrupção da gestação no primeiro trimestre", segundo o ministro.

Mensalão e "lava jato" (2012-presente)
Por condenar políticos e empresários por corrupção, os julgamentos do mensalão e da operação "lava jato" são um marco na história do Brasil, segundo Vladimir Passos de Freitas e Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy.

Nelson Jr./SCO/STF
Primeira sessão destinada ao julgamento da Ação Penal 470 (mensalão)

O julgamento do mensalão, no STF, teve início em 2 de agosto de 2012 e foi concluído em 13 de março de 2014, após quase 70 sessões plenárias. A Corte entendeu comprovada a existência de um esquema de compra de votos no Congresso Nacional, com recursos provenientes de desvios de dinheiro público e empréstimos fraudulentos.

Dos 38 réus cujas denúncias foram recebidas, 24 foram condenados, sendo que 20 deles à pena de prisão pelos crimes de corrupção ativa, corrupção passiva, peculato, lavagem de dinheiro e gestão fraudulenta de instituição financeira.

"A condenação de duas dezenas de empresários e políticos rompeu com o paradigma de impunidade que sempre vigorara em relação à criminalidade do colarinho branco, sobretudo quando associada ao universo político", opina Barroso.

Iniciada em Curitiba, a "lava jato" condenou políticos e empresários por desvios na Petrobras. Sentenciado pelo juiz Sergio Moro, o ex-presidente Lula foi preso e impedido de disputar um novo mandato em 2018.

Com o passar dos anos, porém, o Supremo foi reconhecendo ilegalidades da "lava jato" e anulando processos.

Financiamento eleitoral por empresas (2015)
Após as eleições de 2014, o Supremo declarou a inconstitucionalidade das normas que permitiam o financiamento de campanhas eleitorais por empresas. Barroso explica como o sistema permitia atos de corrupção (ADI 4.650).

"Tais práticas incluíam, por exemplo, a possibilidade de: (i) tomar empréstimos no BNDES e utilizar o dinheiro para financiar candidatos; (ii) doar para todos os candidatos com chance de vitória, revelando que a empresa estava comprando favores futuros ou sendo achacada; e (iii) a empresa doadora ser contratada pelo poder público após as eleições, permitindo que o favor privado fosse pago com dinheiro público."

Limitação do foro privilegiado (2018)
Na Questão de Ordem na Ação Penal 937, julgada em 2018, o Plenário do STF restringiu o alcance do foro por prerrogativa de função. Para os ministros, parlamentares só têm foro especial se os fatos imputados a eles ocorrerem durante o mandato, em função do cargo. No caso de delitos praticados anteriormente a isso, o parlamentar deve ser processado pela primeira instância da Justiça, como qualquer cidadão. Com o fim do mandato, também acaba o foro privilegiado, fixou a corte.

De acordo com Barroso, antes da decisão, em 2017, havia mais de 500 processos criminais (entre inquéritos e ações penais) contra parlamentares no STF. "Uma suprema corte não é concebida para desempenhar esse papel e, de fato, não o desempenha bem", afirma o ministro. Após a restrição do foro especial, diz, os casos envolvendo autoridades caíram pela metade no tribunal.

Prisão domiciliar para mães (2018)
A 2ª Turma do STF reconheceu, em 2018, o cabimento de Habeas Corpus coletivo e o concedeu para substituir a prisão preventiva por prisão domiciliar para todas as mulheres gestantes, mães de filhos até 12 anos ou de deficientes sob sua guarda (HC 143.641).

"O entendimento se baseou na compreensão de que o melhor interesse da criança prevalecia sobre o maior rigor da justiça penal. Ficaram de fora do benefício as mulheres que tenham praticado crimes com violência ou grave ameaça ou contra os próprios descendentes", analisa Luís Roberto Barroso em Sem data venia.

Recursos para candidaturas de mulheres (2018)
A legislação exige, desde 1997, que pelo menos 30% das candidaturas em vagas no Legislativo sejam de mulheres. No entanto, a norma não estabelecia que as postulantes a cargos eletivos tivessem acesso a recursos financeiros mínimos para bancarem suas campanhas.

Em 2018, o STF estabeleceu que os valores do Fundo Partidário — composto, em sua maior parte, por dinheiro público destinado à manutenção dos partidos — deveriam ser direcionados às mulheres no percentual mínimo de 30% (ADI 5.617).

Esse percentual, conforme Barroso, deve aumentar, proporcionalmente, caso o número de candidaturas femininas seja superior. O Tribunal Superior Eleitoral depois determinou que o mesmo critério fosse aplicado em relação ao Fundo Eleitoral, criado para o financiamento público de campanhas após o Supremo considerar inconstitucional o financiamento por empresas.

Homofobia e transfobia (2019)
O STF equiparou, em 2019, as práticas de homofobia e transfobia ao crime de racismo, previsto na Lei 7.716/1989 (ADO 26 e MI 4.733). A Corte reconheceu a omissão do Congresso Nacional em editar lei criminalizando práticas discriminatórias e de violência física e moral contra integrantes do grupo LGBTI+, algo exigido pela Constituição.

Gustavo Binenbojm ressalta o conjunto formado pela decisão, a Lei do Racismo (Lei 7.716/1989) — que também criminalizou práticas nazistas — e a Lei Afonso Arinos (Lei 1.390/1951) — que tornou contravenção penal a prática de atos resultantes de preconceito de raça e cor da pele.

"Tudo isso forma um conjunto legislativo e judicial de proteção contra toda forma de discriminação racial, religiosa e por orientação sexual e identidade de gênero", avalia o professor da Uerj.

"A ideia de racismo, nesse contexto, foi compreendida na sua dimensão social, que ultrapassa aspectos físicos ou biológicos, caracterizando manifestação de poder voltada à inferiorização e estigmatização de grupos vulneráveis. A decisão ressalvou a liberdade religiosa de qualquer pessoa manifestar suas convicções quanto ao tema, desde que não envolva discurso de ódio, incitando a hostilidade em razão da orientação sexual ou identidade de gênero do indivíduo", opina Luís Roberto Barroso.

Prisão após o trânsito em julgado (2019)
Em fevereiro de 2016, o Supremo Tribunal Federal mudou de entendimento e passou a permitir a execução da pena após condenação em segundo grau. A decisão foi muito elogiada por Sergio Moro e pelos demais integrantes da autointitulada força-tarefa da operação "lava jato", mas severamente criticada por constitucionalistas e criminalistas.

Ao julgar três ações declaratórias de constitucionalidade (ADCs 43, 44 e 54), impetradas por OAB, PCdoB e PEN, o STF decidiu que só é possível executar a pena após o trânsito em julgado da sentença condenatória.

"Era um caso que tratava exclusivamente de reconhecimento de constitucionalidade de um artigo de uma lei (283 do Código de Processo Penal), isto é, contra prisões arbitrárias de réus que ainda não haviam tido suas sentenças penais condenatórias transitadas em julgado. Era para ser um julgamento simples, mas a politização do tema [devido à prisão do ex-presidente Lula] tornou o resultado do julgamento uma incógnita", explica Lenio Streck, que atuou no processo.

Competências de estados e municípios na epidemia de Covid-19 (2020)
Com a chegada da epidemia de Covid-19 ao Brasil, o Supremo decidiu que estados e municípios têm competência para impor medidas sanitárias, como as de isolamento social (ADPFs 672 e 770).

Segundo Gilmar Mendes, tais decisões do STF evitaram que o país ultrapassasse a marca de um milhão de mortos pela doença — 684 mil pessoas já perderam a vida no Brasil devido ao coronavírus.

De acordo com o ministro, o governo Bolsonaro tentou esvaziar as medidas de isolamento social argumentando que estados e municípios não podiam limitar atividades essenciais. Além disso, o presidente editou decretos estabelecendo que serviços como os de igrejas, barbearias e loterias eram essenciais — uma tentativa de esvaziar o isolamento social, conforme o magistrado.

O Supremo também determinou que houvesse um plano nacional de vacinação, com um prazo para que ela começasse a ser aplicada (ADPF 756), lembrou Gilmar em evento.

Dessa maneira, ele refutou as acusações de que o Supremo praticou ativismo judicial. "Essa é uma página de ouro (na história) do STF. Poucas cortes do mundo tiveram tamanho desafio e conseguiram dar uma resposta tão efetiva, enfrentando com responsabilidade esse imenso desafio e não se envolvendo diretamente no caos político que se desenhava, fazendo as determinações passíveis de serem feitas."

Outra decisão importante do Supremo na epidemia foi a que ordenou que o governo federal elaborasse planos de prevenção e contenção da covid-19 para indígenas (ADPF 709). O relator do caso, Luís Roberto Barroso, lembra que as populações indígenas apresentam grave vulnerabilidade imunológica a vírus em geral.

Suspeição de Sergio Moro (2021)
A 2ª Turma do STF declarou, em 2021, a suspeição do ex-juiz Sergio Moro para julgar o ex-presidente Lula no caso do tríplex do Guarujá (SP) (HC 164.493). A decisão foi posteriormente confirmada pelo Plenário. Depois, o ministro Gilmar Mendes estendeu a suspeição de Moro às ações contra o ex-presidente nos casos do sítio de Atibaia e do Instituto Lula, anulando todos os atos praticados pelo ex-juiz nos processos, inclusive a condenação que acabou por tirar o petista das eleições de 2018.

"Trata-se de um marco para o processo penal e a democracia brasileira. O STF passou a admitir parcialidade como causa de anulação", aponta Lenio Streck.

O Supremo também declarou a incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba, que era titularizada por Moro, para processar e julgar quatro processos contra Lula. Os ministros entenderam que os crimes atribuídos a Lula pelo Ministério Público Federal do Paraná não têm conexão com a Petrobras e, por isso, não devem ficar no Paraná.

Com as decisões, as condenações de Lula nos casos do tríplex e do sítio foram anuladas. O petista recuperou todos os seus direitos políticos, se tornando novamente elegível. Com isso, ele é candidato a presidente nas eleições de 2022.

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