Embargos Culturais

Carlos Heitor Cony no Supremo Tribunal Federal: quartelada ou revolução?

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

1 de julho de 2018, 8h00

Spacca
Arnaldo Godoy [Spacca]Recente falecido, o escritor Carlos Heitor Cony, protagonizou importante papel na resistência à ditadura brasileira, ao longo daquele triste período. Ainda que eu discorde integralmente de muitas das posições de Cony nos últimos anos, quando ele se associou ao um pensamento conservador e estático, sou um admirador de seus livros, e destaco entre eles A casa do poeta trágico, que li incontáveis vezes. Retomando um argumento que tenho sustentado nessa coluna, no sentido de que questões políticas no Supremo Tribunal Federal não qualificam nenhuma novidade, faço reminiscência de um Habeas Corpus que Cony teve que levar ao STF. Trata-se do HC 40.976-GB.

Pelo menos tenho espaço para identificar o problema. No dia 25 de agosto de 1964 Cony registrou em sua coluna do Correio da Manhã que “os cavacos do ofício e da havia” haviam lhe reservado 'transe amargo e talvez desnecessário'”. Cony comunicava que era réu em ação na qual foi denunciado como incurso no artigo 14 da Lei de Segurança Nacional (Lei 1.802/1953). A acusação embasava-se numa série de artigos que Cony vinha publicando no Correio da Manhã, e que eram supostamente ofensivos ao exército e, especialmente, ao ministro da Guerra, marechal Arthur da Costa e Silva. Pretendendo ser processado pela Lei de Imprensa, mais apropriada e benéfica, Cony levou Habeas Corpus até o STF.

Em outra crônica, publicada em 25 de agosto de 1964 Cony indicava os contornos da angústia pela qual passava. Cony teria de enfrentar o ministro da Guerra, o Marechal Costa e Silva, que mais tarde seria presidente da República. A ironia de Cony provocava a ira dos militares. Enquanto nos quartéis se falava em “Revolução de 31 de março de 1964”, Cony insistia na “Quartelada de Primeiro de Abril”. Esta última data, que tradição cultural registra como “o dia da mentira,” indicaria revolução inexistente. E o uso da expressão “quartelada” subvertia a sobriedade e a formalidade que a expressão “revolução” que pretendia traduzir. Muito mais do que simples jogo de palavras ou de datas, Cony tocou no centro da questão. Revoluções se fazem com objetivo de profundas modificações. Rússia, França, Inglaterra, a tradição histórica ocidental, com mais ou menos razões, para o melhor ou para o pior, indicavam movimentos que faziam da política o núcleo de transformações.

A ditadura revelava-se de modo muito nítido. Intimidações se reproduziam por todo o país. O ex-presidente Juscelino, por exemplo, foi recorrentemente intimado para interrogatórios intermináveis. Cony colocava-se altivamente à disposição da justiça, isto é, da barafunda procedimental que se organizava, em nome de moralidade pública que não se assentava em nenhuma lógica ou historicidade.

Em crônica publicada em 14 de abril de 1964 Cony afirmou que se tínhamos revolução, e não “quartelada”, teríamos uma “revolução de caranguejos”. Em 16 de abril de 1964 o Correio da Manhã publicava nota de apoio a Cony. Havia ameaças de que a casa do escritor seria invadido. Dois indivíduos que teriam se identificado como funcionários do Ministério da Justiça teriam abordado empregadas de Cony, com perguntas sobre os hábitos do investigado. No mesmo dia, a propósito da posse de Castello Branco como presidente da República, Cony publicou texto elogioso ao chefe militar, em interessante ambiguidade. Em 30 de abril de 1964 Cony escrevia que a quartelada de 1º de abril insistia em popularizar-se.

Em 7 de maio de 1964 Cony denunciou na crônica A Herança que as prisões se multiplicavam. Lembrava a perseguição pela qual passavam Anísio Teixeira, Celso Furtado e Edmar Morel. Três dias depois, na crônica A Necessidade das Pedras, Cony lembrava que o tempo passava e que o Brasil permanecia encravado no mesmo lugar. Em 14 de abril de 1964 Cony falava sobre a repugnância que lhe causava a “oficialização e santificação da delação”. No dia 23 de maio Cony convocava os intelectuais para que tomassem posição “em face do regime opressor que se instalou no País”.

Em 9 de junho de 1964 Cony criticou a lista de cassações, nominando-as de “cacho de bananas jogado numa jaula de macacos famintos”. Na mesma crônica, protestou em favor de Nelson Werneck Sodré, que estava preso. As crônicas de Carlos Heitor Cony marcaram o Correio da Manhã como jornal de oposição, de denúncia, de defesa das liberdades democráticas. Os militares, incomodados com o escritor, tentam enquadrá-lo na Lei de Segurança Nacional.

Cony recorreu ao STF que, por maioria de votos, que vou explorar nas colunas seguintes, o Supremo Tribunal Federal concedeu a ordem, em 23 de setembro de 1964, para que Carlos Heitor Cony respondesse às acusações nos termos da Lei de Imprensa, que lhe era mais propícia. Desde aquele tempo era necessária que se denunciasse a nudez do rei.

Sugestões de leituras:

DOTTI, René Ariel. Nélson Hungria, in RUFINO, Almir Gasquez e PENTEADO, Jaques de Camargo, Grandes Juristas Brasileiros. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

LEMOS, Renato. Nélson Hungria, in DICIONÁRIO HISTÓRICO-BIOGRÁFICO BRASILEIRO, vol. III. Rio de Janeiro: Editora FGV, CPDOC, 2001.

LEMOS, Renato (org.). Justiça Fardada- O General Peri Bevilaqua no Superior Tribunal Militar (1965-1969). Rio de Janeiro: Bomtexto, 2004.

MAGALHÃES, Marion Brepohl. Fazer Falar: Técnicas de Interrogatório Durante o Regime Militar, in Elizabeth Cancelli (org.), Histórias de Violência, Crime e Lei no Brasil. Brasília: Editora da UnB, 2004.

CASTELLO BRANCO, Carlos. Os Militares no Poder- de 1964 ao AI-5. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007.

WERNECK SODRÉ, Nelson. História da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 1999.

MALIN, Mauro. Francisco Campos, in DICIONÁRIO HISTÓRICO-BIOGRÁFICO BRASILEIRO, vol. I. Rio de Janeiro: Editora FGV, CPDOC, 2001.

MONIZ BANDEIRA. Formação do Império Americano. Da Guerra contra a Espanha à Guerra no Iraque. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

Autores

  • é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela USP e doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Tem MBA pela FGV-ESAF e pós-doutorados pela Universidade de Boston (Direito Comparado), pela UnB (Teoria Literária) e pela PUC-RS (Direito Constitucional). Professor e pesquisador visitante na Universidade da Califórnia (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

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