Embargos Culturais

200 anos de constitucionalismo: as bases culturais da Constituição de 1824

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP e advogado consultor e parecerista em Brasília ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

31 de março de 2024, 8h00

O anacronismo parece ser uma das maiores dificuldades que há quando tratamos da Constituição de 1824 [1]. Há aspectos que hoje causam desgosto (a escravidão é o exemplo mais emblemático), porém não há como julgarmos as pessoas e as instituições fora de seu tempo, por mais que abominemos atitudes e ideias.

Corretíssimo está Sérgio Rodas, em reportagem fundamental publicada nesta ConJur durante a semana no sentido de que a Constituição de 1824 organizou o Estado, porém consolidou a desigualdade.

O insuspeito Mário de Andrade, a propósito de Machado de Assis (em relação a quem tinha uma relação complicada de amor e ódio) insistia que a Carta de 1824 era integrante de um conjunto de imitações que fazíamos de um mundo europeu, que não era o nosso mundo.

E um truísmo lembrar que todo texto constitucional é uma das narrativas de sua época. Isto é, tanto a época que o antecede, o tempo em que é promulgado (ou outorgado) e o tempo ao longo do qual vige. Estados Unidos (1787), Alemanha (1949), França (1791, entre tantas outras constituições), e o Brasil (também em 1891, 1934, 1937, 1946, 1979 e 1988) exemplificam esse postulado. Fundamental nesse ponto a leitura de Linda Colley, “A letra e a lei”, que a Zahar publicou, em tradução rigorosa de Berilo Vargas.

Na linha de Mário de Andrade, pode-se afirmar que a Constituição de 1824 é um subproduto do romantismo. A independência, de igual modo, segue esse planisfério.

Por exemplo, há um registro iconográfico fascinante sobre a época. Trata-se do quadro de Pedro Américo, “O Grito do Ipiranga”, um impressionante óleo sobre tela, concluído em 1888.

Pedro Américo/Reprodução

Pedro Américo (paraibano, nascido em 1843) estudou às expensas de dom Pedro 2º. Também nos deixou “A Batalha do Avaí” e o impressionante “Tiradentes esquartejado”. Nada intrigante o fato de que o quadro sobre o grito do Ipiranga date de 1888, o ano que antecede a Proclamação da República.

A tela é integrante de um esforço de construção de identidade nacional, ainda que nos lembre “Friedland”, de Ernest Meissonier, pintado em 1875, e comemorativo de uma vitória de Napoleão. O tema foi explorado por Lilian M. Schwarz, Carlos Lima Jr. e Lúcia K. Stumpf, no empolgante “O Sequestro da Independência”, publicado pela Cia. das Letras.

Revolução Francesa

A Constituição de 1824 está contida no ambiente cultural que medeia a Revolução Francesa e o fim da Era Napoleônica. Benjamin Constant (1768-1830) parece ser sua base conceitual mais emblemática. O juspublicista suíço (que estudou em Edimburgo), defendia a separação dos poderes como forma de limitação do poder do Estado, o que hoje óbvio, mas o que naquele tempo poderia soar revolucionário.

Teorizou a liberdade de seu tempo, que contrastava com a liberdade dos antigos. Esses últimos participavam diretamente das decisões políticas, reunidos em praça pública; aqueles primeiros, do tempo de Benjamin Constant, conceberam uma forma de representação política. É o fio que liga as duas pontas da teoria democrática.

Spacca

O livro mais importante de Benjamin Constant (Princípios Políticos Constitucionais, publicado pela Freitas Bastos, com introdução primorosa de Aurélio Wander Bastos e epílogo também primoroso de José Ribas Vieira) revela-se como um texto fundante do comentarismo analítico. Não se tem o comentarismo descritivo, que talvez seja a marca dos “Artigos Federalistas”, da tradição norte-americana.

Constant era contra o voto universal. A representação política, entendia, era prerrogativa de proprietários (agrícolas, industriais e intelectuais). É sua a concepção de um poder moderador, que na Constituição de 1824 foi fixado no artigo 98; era “a chave de toda a organização política”.

Do ponto de vista da história da cultura vivia-se na Europa ocidental o romantismo, nascido da revolução industrial (e de seus problemas e dilemas) e da resistência aos ideais obsessivos do iluminismo, para com os poderes da razão.

O escapismo, o fascínio pelo exótico, pelo misterioso, a música de Beethoven (e sua ambiguidade para com Napoleão) são também marcas daquele tempo. Na Europa lia-se o diário do jovem Werther, apaixonado por Lotte, casada com Alberto. Goethe era o campeão da subjetividade romântica.

O Brasil também conhecerá essa estética, constatada nos exageros de Gonçalves Dias e de Álvares Azevedo. Mais tarde, José de Alencar levará ao limite esse modo de ver o mundo, substituindo guerreiros medievais por Iracemas, Caubis, Araquéns e Andiras.

A Constituição de 1824, genuína para com seu tempo, é um epíteto do romantismo constitucional, que se alarga com os resultados do Congresso de Viena. O congresso não andava, dançava… Talleyrand pontificava; o diplomata francês sempre esteve ao lado do poder. Acendeu velas para todos os santos (e para todos os demônios).

É o tempo de um constitucionalismo nacionalista, patriótico, reverente para com a história e para com a tradição. É um tempo constitucional exemplificado com a Constituição de Cádis (La Pepa), com a Constituição Liberal Portuguesa de 1820, e com a independência da Grécia, onde morreu Byron, talvez o mais romântico dos românticos.

O Brasil participamos dessa tradição com um texto de época, onde éramos uma coisa desgarrada de uma Europa que tínhamos como referência e inspiração.

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[1] Nessa semana proferi palestra no Seminário Comemorativo dos 200 anos da Constituição de 1824, realizado aqui em Brasília, no IDP. O professor doutor Elival da Silva Ramos abriu a maratona de discussões. Vários estudiosos trataram do tema da Constituição de 1824, entre eles, Saul Tourinho Leal, João Trindade Cavalcante Filho, José Levi Mello do Amaral Júnior, Carlos Horbach, Fabio Lima Quintas, o ministro Floriano de Azevedo Marques Neto, Rebeca Drummond de Andrade Müller, Luciana Lóssio, Patrícia Perrone de Campos Mello e Guilherme Pupe da Nóbrega. A mim coube tratar das bases culturais da Constituição do Império. A retomada de alguns aspectos que enfrentei é o mote dos embargos culturais dessa semana. O presente ensaio é dedicado a Saul Tourinho Leal e a Hugo Moreira Lima Sauaia.

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