Opinião

200 anos do constitucionalismo: um olhar sobre a representação política na atualidade

Autores

  • Manoel Gonçalves Ferreira Filho

    é professor emérito e titular aposentado de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo). Doutor honoris causa da Universidade de Lisboa. Doutor pela Universidade de Paris. Ex-professor visitante da Faculdade de Direito de Aix-en-Provence (França). Membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas. Presidente do Instituto "Pimenta Bueno" — Associação Brasileira dos Constitucionalistas.

  • Antonio Ali Brito

    é mestrando em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e assessor no Supremo Tribunal Federal.

25 de março de 2024, 9h17

Comemora-se, neste 25 de março de 2024, o marco dos 200 anos da primeira Constituição, mediante a qual os nossos poderes de Estado finalmente obtiveram proteção e organização constitucional. Foram estes objeto de profunda transformação institucional ao longo da história nacional.

Entretanto, um olhar sobre a sua atual conformação demonstra, como marca desta transformação, o “esfarinhamento” da representação política decorrente da multiplicação excessiva de partidos. E de partidos que não raro se caracterizam pela ausência de programas e de ideologias próprias, mas configurando apenas instrumentos para a disputa do poder e sem disciplina interna, cujos membros não hesitam em alternar-se, frequentemente, ao trocarem de legendas.

Na verdade, este pluripartidarismo sem peias é inexorável sob o sistema eleitoral de representação proporcional, como, há mais de meio século, demonstrou Maurice Duverger, no livro Les Partis Politiques. [1]

A prova desse “esfarinhamento” está em que há 29 partidos atualmente registrados no TSE, 20 com representação na Câmara dos Deputados. O partido que mais elegeu obteve 18% das cadeiras; o segundo, 13%. E, por outro lado, 13 partidos não elegeram 5% dos deputados.

Portanto, se aqui se aplicasse a regra de corte alemã, perderiam o direito à representação. Isto demonstra o polipartidarismo que tomou conta do Brasil. Será que sete partidos não seriam suficientes para exprimir as correntes políticas em que se divide o povo brasileiro? E ainda estaríamos longe do ideal.

A multiplicação de pequenos partidos com a correspondente perda de força dos grandes, também teve um grave impacto sobre o presidencialismo brasileiro. Com efeito, até há pouco, o presidente da República sempre contou com uma base sólida no Congresso para apoiá-lo e aprovar tudo o que lhe aprouvesse. [2]

congresso nacional

Mas essa multiplicação dos partidos menores passou a obrigar o Poder Executivo a articular uma coalizão de partidos para apoiá-lo e aprovar as suas agendas de governo. Surgiu então o que estudos importantes apontam como um presidencialismo de coalizão. [3]

Coalizões complicam o Executivo

O passar do tempo e a referida multiplicação de pequenos partidos ensejou a degeneração do sistema partidário num sistema polipartidário. As coalizões se tornam de mais em mais difíceis. Em consequência, a dependência do chefe do Executivo relativamente a essa “base” se tornou mais dificultosa. [4]

Isto é profundamente influenciado pelo fato de que os eleitos, especialmente no Poder Legislativo, se consideram mais ligados a interesses concretos, como a agropecuária, a segurança, à religião do que aos partidos que integram e suas ideologias. Este fenômeno nos remete à ascensão das bancadas parlamentares, conceituadas pelo glossário de termos legislativos do Senado como “um agrupamento organizado de parlamentares, que pode estar previsto regimentalmente ou baseado em pautas ou interesses.

Por exemplo, costuma-se chamar de bancada o grupo de parlamentares de determinada região (bancada nordestina) ou aqueles que representam determinados interesses (bancada ruralista e bancada evangélica)”. [5]

Essa definição, que é polissêmica, demonstra a necessidade do estudo das várias formas jurídicas de agrupamento parlamentar, às quais se pode atribuir, de forma genérica, o nome de “bancada”:

  • a) Lideranças parlamentares, representando partidos (ou blocos, quando representando a união de um ou mais partidos), maiorias e minorias, governo e oposição etc.;
  • b) Frentes parlamentares, que visam a debater determinado tema atrelado aos interesses da sociedade;
  • c) Grupos parlamentares, que têm como objetivo o fortalecimento da relação entre o Congresso Nacional brasileiro e algum Poder Legislativo estrangeiro;
  • d) Bancada parlamentar estadual/regional, visando a justamente representar os interesses de unidade federativa ou região específica.

Observando a experiência estrangeira, percebemos que a ideia de bancadas parlamentares muito se associa aos Caucus norte-americanos. O termo Caucus, entretanto, pode assumir dois diferentes sentidos:

  • a) reuniões de parcelas de integrantes de um partido político, a fim de discutir possíveis nomes de candidatos a serem apoiados, no contexto das eleições primárias intrapartidárias;
  • b) agrupamentos parlamentares organizados — mas que não constituem o corpo formal de lideranças congressuais [6] — reunidos para a consecução de objetivos e fins políticos comuns.

Neste último significado (b), que interessa ao propósito da nossa abordagem, o Caucus é também designado pelo nome de Congressional Member Organizations (CMOs), podendo, ou não, serem de composição bicameral, com deputados e senadores. O Caucus poderá ser integrado para diferentes finalidades políticas, porque poderá, não exaustivamente:

  • 1) servir como uma bancada de cada um dos partidos, em cada uma das Casas Legislativas (v.g., o House Democratic Caucus, House Republican Conference, Senate Democratic Caucus e Senate Republican Conference), sendo, neste caso, uma representação partidária informal. Difere, entretanto, das lideranças da Maioria/Minoria, que são lideranças institucionais e incorporadas à estrutura formal do Congresso;
  • 2) abranger causas suprapartidárias, denominadas de “Bipartisan” (Ex: Bipartisan Women’s Caucus ou o Bipartisan Disabilities Caucus);
  • 3) abranger frentes temáticas, liderando grupos de interesse, como muito se faz no Brasil (Ex: Climate Solutions Caucus, Congressional Border Security Caucus, e Congressional International Financial Institutions Education Caucus);
  • 4) representar grupos étnicos e sociais (Ex: Congressional LGBT Equality Caucus, Congressional Black Caucus e Congressional Hispanic Caucus).

Também mencionamos a existência de facções e alas partidárias que se agrupam por meio dos Caucus. Trazemos como exemplo o House Freedom Caucus, composto por membros considerados da ala radical do Partido Republicano, que recentemente ganhara maior notoriedade pela franca oposição realizada em relação à candidatura do deputado republicano Kevin McCarthy para a presidência da House of Representatives (equivalente à nossa Câmara dos Deputados), em janeiro de 2023.

Alegava-se não ser ele “suficientemente de direita”, ainda que integrante do mesmo partido. Existem outros Caucus que abrigam facções partidárias como o New Democratic Coalition ou o Congressional Progressive Caucus. [7]

Falta de regulamentação amplia partidos

A análise da situação brasileira, à luz da experiência norte-americana, revela uma gama de interessantes debates possíveis para aprimorar o nosso sistema político, em razão da necessidade de racionalização do exercício do poder político, pulverizado pelo excessivo número de facções partidárias e representativas, acentuadas pela ausência da regulamentação dos grupos de interesse no país.

Dentre tantas as possíveis propostas, citamos, como exemplo, a adoção do semipresidencialismo. Em face dos méritos e deméritos do presidencialismo e do parlamentarismo, ergue-se a ideia de bom senso que a governança poderia ser estruturada, de modo a aproveitar o que de positivo há nos sistemas parlamentar ou presidencial e evitar o que têm de negativo. Ou seja, a ideia de estabelecer um sistema misto de presidencial e parlamentar. [8]

Foi na Europa que essa ideia prosperou. A mais importante e bem-sucedida tentativa de fazê-lo ocorreu em 1958, quando sob a orientação de De Gaulle se elaborou a Constituição francesa ainda vigente. Ela serviu de exemplo para a Constituição portuguesa de 1976, tal como vige.

A fórmula mista visa, em síntese, combinar a flexibilidade e a concertação na governança, que propicia naturalmente o sistema parlamentar, corrigindo a sua instabilidade — também através da diminuição do número de partidos — pelo elemento de estabilidade presente no sistema presidencial, com um plus que é dar maior peso na governança dado às questões de Estado. Fica o tema para reflexão dos doutos.

 


[1] Maurice Duverger. Les Partis politiques, Armand Colin, Paris, 3ª ed., 1958.

[2] Cf. Manoel Gonçalves Ferreira Filho. A ressureição da democracia. Santo André, Dia a Dia Forense, p. 105 e seguintes.

[3]    Cf. Sérgio Abranches, Presidencialismo de coalizão – Raízes e evolução do modelo político brasileiro, São Paulo, Companhia das Letras, 1ª ed. 2018. Sérgio Antônio Ferreira Victor, Presidencialismo de coalizão, São Paulo, Saraiva, 2015.

[4] Cf. Manoel Gonçalves Ferreira Filho. A alternativa semipresidencialista. Instituto Pimenta Bueno, 2022, p. 30.

[5] Disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/legislacao-e-publicacoes/glossario-legislativo/-/legislativo/termo/bancada_parlamentar.

[6] Este é composto pelos Líderes e Whips da Maioria/Minoria.

[7] Sobre o tema ver nosso artigo: Antonio Ali Brito, O que aprendemos com as eleições no congresso americano. Publicado no Jornal A Tarde, edição de 09 jan. 2023.

[8] Cf. Manoel Gonçalves Ferreira Filho. A alternativa semipresidencialista. Instituto Pimenta Bueno, 2022, p. 50 e seguintes.

Autores

  • é advogado, professor titular aposentado de Direito Constitucional e ex-diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; é doutor em Direito pela Universidade de Paris e doutor Honoris Causa da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Foi professor visitante da Faculdade de Direito de Aix-en-Provence e é presidente da Associação Brasileira dos Constitucionalistas (Instituto Pimenta Bueno), além de ex-vice-governador do estado de São Paulo.

  • é mestrando em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e assessor no Supremo Tribunal Federal.

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