Opinião

200 anos do constitucionalismo brasileiro: alentos e desalentos

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15 de fevereiro de 2024, 7h03

A década era de 1820, os brados de independência ou morte ainda ecoavam e a jovem nação internacionalmente soberana que se formava precisava, além de consolidar o término dos ali e então já passados laços com a antiga metrópole, fortificar-se, sobretudo do ponto de vista organizacional, internamente.

Uma série de grupos sociais contrários à manutenção do status de colônia àquele país de dimensões territoriais, riquezas naturais e costa litorânea com poucos paralelos no âmbito externo necessitava de uma organização inicial e que pudesse representar indícios de que a causa que uniu cada grupo, em prol do objetivo de criação de uma nação independente, realmente teria valido a pena ou, pelo menos, poderia valer no futuro que ali se desenhava.

A etapa constitucional
Paralelamente, o contexto internacional de sucessivos atos revolucionários e reacionários a regimes e formas de governo que por tempos dominaram o cenário ocidental do globo terrestre levou à consolidação e concentração — com origens esparsas identificáveis séculos antes — de uma série de movimentos, por sua vez defensores da criação de limites a quaisquer governantes, comumente monarcas e com largo espectro despótico, tirânico e absolutista.

Nascia, para as Eras Moderna e Contemporânea, a ideia Rule of Law, État de Droit, Rechtsstaatlichkeit, ou seja, de Estado de Direito.

Estado em que nem mesmo seu líder ou líderes máximos estariam isentos de qualquer controle ou submissão a qualquer norma. Pelo contrário, passariam a dever incondicional respeito ao chamado Direito, o qual, por sua vez, encontrou na figura da criação de respectivas leis máximas, superiores a todas as outras na esfera interna de cada país, o amparo capaz de abrir o caminho para uma nova etapa em suas histórias, a saber, a etapa constitucional, política, social e juridicamente falando.

Com efeito, se o cenário internacional trazia de seu então recente passado e presente a figura, hoje mundialmente tão invocada e sedimentada, denominada Constituição, a então ex-colônia de Portugal findou por se inspirar nas influências mundo afora e criar a Constituição Política do Império do Brazil (com “z”, lembrada a ortografia de época).

Após trabalhos constituintes – feitos por considerados notáveis por dom Pedro 1º, recém proclamado imperador, mas não totalmente aproveitados, que se diga —, em 25 de março de 1824 entra em vigor a referida lei maior e máxima brasileira, naquele instante o que não se imaginaria ser a primeira de oito Constituições que o Brasil viria a ter até a contemporaneidade. Um marco, não somente histórico, constitucional e político, mas institucional e de poder, com a normatização formal da estrutura maior e central que o Estado brasileiro deveria adquirir dali por diante.

Os primeiros desafios
Com seus 179 artigos, o último dos quais reservado a um rol dos, naquele momento, já reputados direitos fundamentais, a Constituição de 1824 ou Imperial brasileira foi, para a história constitucional do país, única em uma plêiade de características e institutos.

Marcadamente um documento outorgado à recém-independente nação, em razão de dom Pedro 1º, filho de dom João 6º, rei também do Brasil até o rompimento dos laços coloniais, ter-se imposto como o imperador e absoluto chefe do infante país, a referida Constituição trazia consigo incontáveis desafios.

O maior deles, talvez, o de possibilidade de sobrevivência em um país cujos processos de pré e pós-independência careciam de ampla legitimidade social e popular, máxime em um Estado herdeiro de tradições exploratórias, oligárquicas e, acima de tudo, um Estado escravocrata, no qual enorme contingente populacional era composto por pessoas que não possuíam quaisquer direitos.

Pedro Américo/Reprodução

Um Estado, assim, em relação ao qual já se podia questionar a aplicabilidade do próprio e supracitado artigo 179, primeiro dispositivo na história do constitucionalismo brasileiro a trazer uma lista de direitos fundamentais, em especial de primeira geração ou dimensão.

O princípio da igualdade
Se os percalços aplicacionais e de efetividade ali apenas começavam e já se afiguravam de grande complexidade, tal fato acompanhou e, certamente, ainda acompanhará a caminhada constitucional brasileira.

“A Lei será igual para todos”, estatuía a primeira parte do inciso XIII, do artigo 179, da Constituição de 1824. “Todos são iguais perante a lei”, estabelece, logo no começo, o artigo 5º, caput, da Constituição de 1988.

Duzentos anos de constitucionalismo e, muito embora tal ideia normativa de igualdade seja meramente formal, a materialidade de tal direito e princípio continua a assolar um país que nasce, cresce e continua sobremaneira desigual.

Nem mesmo a tão celebrada, mas ao mesmo tempo tardia abolição total da escravatura no país, decorrente da célebre Lei Áurea, nº 3.353, de 13 de maio de 1888, assinada pela princesa imperial regente no à época Palácio do Rio de Janeiro [1], ato de magnitude ímpar na história do país, foi capaz de resolver desigualdades locais, regionais e nacionais.

Permanentes e subsequentes cenários, repletos de vicissitudes, problemas e uma sucessão de reprovabilidades das mais diversas ordens, seguiram-se e findaram por literalmente classificar o desenvolvimento social brasileiro.

Outras particularidades
Entretanto, se a referida inaplicabilidade do princípio da igualdade é marca triste do constitucionalismo brasileiro, em que pesem avanços pontuais e, de grau mais marcante, neste século 21, o primeiro ordenamento constitucional, formado em 1824, trazia também outras particularidades.

Pela única vez na história do país, uma Constituição trouxe a previsão de quatro Poderes para o Estado. Isto é, além de Executivo, Legislativo e Judiciário, foi expressamente previsto um Poder Moderador, o qual, ao contrário de sua concepção teórica, opera e lavoro do suíço Benjamin Constant [2], findou por servir somente ao imperador do país, como forma de ratificação de um poder que já lhe era absoluto.

Na mesma esteira, foi a única Constituição brasileira a estabelecer vínculo oficial entre Estado e Igreja, mais precisamente, com a Religião Catholica Apostolica Romana (expressão em redação original do texto), a conceber a monarquia como forma de governo e o unitarismo como forma de Estado. Em nenhum outro momento veio o constitucionalismo nacional a vivenciar uma Constituição que fixasse quatro Poderes, um Estado monárquico, unitário e com uma religião oficial.

A contrario sensu, todas as demais Constituições brasileiras, por mais que preponderantemente marcadas por inúmeras ineficácias e pela prevalência de decisões políticas oligárquicas sobre quaisquer outras, máxime as de cunho democrático e republicano (na vocação mais pura do vocábulo), adotaram a existência de três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), a forma de Estado federal, o republicanismo como forma de governo e ampla liberdade religiosa, incluindo a liberdade de culto como decorrência da própria liberdade de pensamento e de sua manifestação.

Constituições de 1891 e a da Era Vargas
Por conseguinte, a superação da Constituição de 1824, em razão da Proclamação da República no Brasil em 15 de novembro de 1889, deixou para trás inúmeras normas constitucionais que jamais viriam a ser retomadas em nosso constitucionalismo. Após a citada proclamação, em 1891 é criada a segunda Constituição brasileira, primeira da Era Republicana e que veio a substituir, a partir de sua entrada em vigor, em 24 de fevereiro daquele ano, a Constituição Imperial brasileira.

Por sua vez, a apenas referida e nova lei máxima nacional foi uma das mais longevas até o momento, sendo apenas trocada, após a Revolução de 1930, pela Constituição de 16 de julho de 1934. Se em 2024 se impõe celebrar os 200 anos do constitucionalismo brasileiro, igualmente merece destaque o nonagésimo aniversário da criação da primeira Constituição da Era Vargas.

Repleta de novidades em comparação com as anteriores, foi a primeira a valorizar e incorporar direitos sociais e do trabalho em seu texto, a inaugurar a previsão do exercício do direito de voto por pessoas do sexo feminino e, entre outras inovações, a trazer embrião para o que viria a ser futuramente chamado de função social da propriedade.

Um documento, assim, de manifesta relevância, tanto para a época, quanto para a composição e evolução da trajetória constitucional brasileira.

Constituições de 1937 e de 1946
Apesar do que aqui se entende terem sido virtudes normativas, foi a referida Constituição uma das de menor vigência da história nacional. Durou pouco mais de três anos, sendo substituída, depois da decretação do chamado Estado Novo no país, pela Constituição de 10 de novembro de 1937.

Esta, por seu turno, decorreu de clara e mais imediata influência internacional, relacionada às vésperas da deflagração da Segunda Guerra Mundial, momento em que movimentos fascistas e nazistas atingiram seu auge e conduziram o mundo a um conflito armado, sangrento e de ódio, sem precedentes.

Tão imediata a influência externa para a decisão de imposição ao país da referida Constituição de 1937, igualmente foi a influência internacional para a sua derrocada e para a consequente entrada em vigor da Constituição de 18 de setembro de 1946, criada pouco após o término da Segunda Grande Guerra.

Tal Constituição trouxe novos ares para o país, o qual vivia momentos social, econômico, jurídico e político em renovadas transformações. Nesse sentido, foi capaz de se manter viva por mais de 30 anos, em que pesem maiores turbulências com o advento dos anos 60 no Brasil.

Ditadura militar e a Constituição de 1988
E tais anos representaram uma década especialmente emblemática para o constitucionalismo nacional, uma vez que, da mesma forma como na década de 30, em interstício de dez anos, duas novas Constituições foram criadas, isto é, as de 24 de janeiro de 1967 e de 17 de outubro de 1969 (esta, embora formalmente uma emenda à Constituição de 1967, tamanhas as modificações trazidas, é considerada pela doutrina jurídica uma nova Constituição).

No entanto, a enfatização do caráter mais notadamente emblemático gira em torno do fato de as duas referidas Constituições terem entrado em vigor sob o manto de um mesmo macrogrupo institucional e de poder, que instaurou, no ano de 1964, o regime militar e ditatorial brasileiro, o qual somente viria a se desmanchar com o movimento “Diretas Já” e, do ponto de vista de estabelecimento e criação de uma nova ordem jurídica, com a criação da Constituição de 1988, promulgada em 5 de outubro daquele ano.

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O deputado Ulysses Guimarães, que presidiu a Assembleia Constituinte de 1988

Com seus já 35 anos de existência e constante vigência, carrega consigo a virtuosidade democrática, em um Brasil que real e, para muitos, finalmente, decidiu, por meio de seu poder constituinte, conhecer e defender um Estado democrático de Direito. A ponto de, 35 anos depois de sua promulgação, quaisquer dos seus constituintes vivos ou não mais, aonde quer que estivessem, estufassem seus peitos, orgulhosamente, e pudessem dizer que o resultado de seus trabalhos conseguiu, em um novo mundo, marcado pela tecnologia em avanço profundo e por novas polarizações políticas e ideológicas, manter-se firme e inspirar as instituições do país a optarem — em uma complexa balança, com denso jogo político e de poder —, pela democracia, pela Constituição e pelo Direito desta decorrente, acima de qualquer outra ordem, opção, vontade ou orientação.

Reafirmação do Estado de Direito
Em meio, assim, a tantos desalentos, eis que alentos exsurgem, sobretudo pela reinvocação, reconvocação e chamamento à ordem do “Estado Democrático de Direito”.

Um verdadeiro grito engasgado por socorro, a um Herói que sequer poderia imaginar assim ainda o ser, depois de muito se acreditar em uma consolidação da democracia como sistema vencedor do século 20 e de entrada para o século 21.

Se meras “folhas de papel”, conforme expressão cunhada por Ferdinand Lassale [3], somas dos fatores reais de poder existentes em uma sociedade politicamente organizada, de acordo com entendimento de Carl Schmitt [4], ou ainda, com ou sem força normativa, a partir de clássica obra de Konrad Hesse [5], combinada com a teoria segundo a qual Constituição é norma, na cientificidade de Hans Kelsen [6], fato é que cada Constituição brasileira representou e representa estações ao longo de uma estrada. Que tem seu ponto de partida em 25 de março de 1824, seus 200 anos em 25 de março de 2024 e seus próximos trajetos e estações a serem contados pelo que apenas o futuro dirá.

Assim, viva (!) e que se continue sempre vivendo o constitucionalismo brasileiro!


[1] Edificação hoje tombada, localizada na Rua Moncorvo Filho, nº 08, Rio de Janeiro.

[2] CONSTANT, Benjamin. Princípios de Política aplicáveis a todos os governos. Tradução de Joubert de Oliveira Brízida. Rio de Janeiro: Topbooks, 2007.

[3] LASSALE, Ferdinand. A essência da Constituição. 05. ed. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2000.

[4] SCHMITT, Carl. O conceito do político. Teoria do Partisan. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.; SCHMITT, Carl. O Guardião da Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.; SCHMITT, Carl. Teoria de la Constitución. Madrid: Alianza Editorial, 1982.

[5] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1991.

[6] KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 06. ed. Coimbra: Armênio Amado Editora, 1984

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