Opinião

200 anos de Constituição e dois séculos de Senado Federal

Autor

  • Gilmar Mendes

    é professor do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) doutor em Direito pela Universidade de Münster (Alemanha) e ministro do STF.

25 de março de 2024, 18h26

Comemora-se hoje os 200 anos do Senado Federal, Instituição que, ressalvados momentos pontuais da história nacional, acompanha a nação brasileira desde sua primeira Constituição, como espaço público fundamental para discussão do Brasil.

Sem pretender alongar-me sobre a bicentenária história dessa Casa legislativa, trago a lume fatos históricos que demonstram os grandes préstimos ofertados por esta Instituição ao país.

No ponto, não poderia deixar de iniciar minha fala sem rememorar Machado de Assis, em seu incontornável “O Velho Senado”, crônica em que o Bruxo do Cosme Velho registra suas memórias sobre o estilo e o modo de agir dos senadores do Império — homens como Nabuco, Duque de Caxias, Eusébio de Queirós e Visconde de Ouro Preto.

Era o tempo do mandato vitalício com exigências censitárias; tempo de homens públicos “contemporâneos da Maioridade, alguns da Regência, do Primeiro Reinado e da Constituinte 1”. Sem que houvesse “tumulto nas sessões, […a…] atenção era grande e constante. Geralmente, as galerias não eram muito frequentadas, e, para o fim da hora, poucos expectadores ficavam […]”.

Momentos históricos

Se, como diz Machado no mesmo escrito, “as visões valem o mesmo que a rotina em que se operam”, merecem crédito as memórias do patrono da Academia Brasileira de Letras, no que faz destacar a postura e os hábitos daqueles parlamentares que iniciaram as atividades da então chamada “Câmara de Senadores” (artigo 14 da Constituição de 1824) e que tomaram assento em momentos basilares da história nacional, como o reconhecimento da maioridade de dom Pedro 2º, o juramento da Princesa Isabel, a abolição da escravatura.

Proclamada a República, o governo provisório fez por dissolver o antigo Senado, tendo a Constituição de 1891 previsto eleição para o cargo, com mandato de duração de nove anos.

Spacca

Nesse momento, frequentaram a tribuna senatorial figuras como Campos Sales e Epitácio Pessoa — que exerceu ainda o Cargo de presidente da República e ministro do STF —, bem como o inexcedível Rui Barbosa — glória nacional que ostenta a condição de Patrono desta Casa.

Tendo desempenhado profunda influência na concepção do novo texto constitucional e exercido o cargo de senador por cinco mandatos, Rui deu voz aos ideais republicanos que varriam o mundo naquele momento, defendendo o fim da escravidão e o princípio da igualdade dos Estados durante a 2ª Conferência da Paz (1907) — atuação que lhe rendeu o epíteto de “Águia de Haia”.

Depois da Primeira República, a década de 1930 não fez justiça a esta Casa: seja no período imediatamente posterior à ascensão ao Poder, seja durante o Estado Novo, Getúlio Vargas fechou o Congresso Nacional, violentando esta Instituição e todos os pressupostos federativo-democráticos que sua existência representa.

No ponto, é curioso perceber as idas e vindas da história e dos personagens que a compõem: eleito Senador Constituinte, o mesmo Getúlio, a partir de 1946, viria a frequentar o mesmo Palácio Moroe, outrora manietado pelo despotismo de seus governos.

Restabelecida a democracia por força da nova ordem constitucional, o Senado voltou a ser o cenário de debates memoráveis, principalmente em torno de questões políticas e econômicas. Entre essas últimas, ganha fulgurante destaque a questão do petróleo, com a criação da Petrobrás.

A campanha “o Petróleo é Nosso” tomou conta de mentes e corações brasileiros, e não seria diferente nesta Casa. A força dos escritos e discursos da oposição, na eloquência férrea do então Senador Assis Chateaubriand, faz parte da história política nacional.

Após grande concertação política — incluída a previsão do monopólio estatal em matéria petrolífera —, o projeto de criação da estatal veio a ser sancionado em setembro de 1953, por meio da atuação moderada e realista de senadores como Alberto Pasqualini e João Vilas Boas.

Anos desafiadores

Mas os anos que viriam a seguir seriam novamente desafiadores a esta Instituição.

Mal o país havia saído dos anos dourados, a crise política, já anunciada pelos incidentes que antecederam a posse de Juscelino Kubitschek, fez por instalar-se.

Uma vez mais, esta Casa estaria implicada severamente nas turbulências institucionais.

O Senado, que a recém-inaugurada Brasília acolheu no imponente Palácio do Congresso Nacional, teve seu batismo de fogo pouco mais de um ano após a transferência da Capital.

Empossado na Presidência da República, em 31 de janeiro de 1961, Jânio Quadros renunciou em 25 de agosto, em movimentação até hoje controversa entre estudiosos.

Dita atuação deu origem a impasse político que veio a ser remediado provisoriamente por meio da adoção do parlamentarismo mediante Emenda Constitucional, tendo Tancredo Neves (integrante desta Casa mais tarde, entre 1979 e 1983) assumido o posto de Presidente do Conselho de Ministros de setembro de 1961 a julho de 1962.

Mais adiante, a ditadura militar é que ofenderia os valores representados por esta Instituição.

De fato, após o golpe de 1964, já em 20 de outubro de 1966, o General Castello Branco decretou o “recesso” do Congresso Nacional por vinte dias, na esteira dos poderes que lhe foram outorgados pelo Ato Institucional nº 2.

Depois, em 13 de dezembro de 1968, com a edição do Ato Institucional nº 5, o Marechal Costa e Silva fechou o Congresso para combater a subversão e as “ideologias contrárias às tradições de nosso povo”.

Por fim, em 1977, o General Ernesto Geisel colocou o Congresso em recesso por duas semanas, em constrangimento político que lhe permitiu anunciar, dias depois, o famigerado Pacote de Abril.

Rememoro aqui essas tristes passagens de nossa história para proclamar e reconhecer de modo veemente: o Senado, mesmo nesses momentos trágicos, nunca faltou à nação brasileira.

Esse contexto, por mim vivenciado de perto durante meus anos acadêmicos, está vivo em minha memória, sobremodo no que diz respeito à atuação de grandes nomes como Franco Montoro, Itamar Franco, Marcos Freire e Paulo Brossard — todos eles soldados da causa democrática, senadores que representam o que há de melhor em nossa tradição política.

André Franco Montoro (1916-1999)

Em pormenor, recordo-me da postura altiva e vivaz de Brossard, diretamente envolvido nas múltiplas vitórias políticas do MDB que foram respondidas por Geisel com o malsinado pacote.

A força bruta, as agressões institucionais e o autoritarismo despudorado envolvidos nos 25 anos de ditadura militar dão a exata dimensão de que esta Casa, mesmo ameaçada e constrangida, jamais se omitiu, jamais se calou, jamais claudicou na defesa da Constituição e do Estado de Direito.

Constituinte de 1988

Posteriormente, com a redemocratização, foi promulgada a Carta Magna de 1988, Constituição Cidadã, que representou verdadeiro acerto de contas com o passado, numa transição muito delicada, liderada, entre outros, pelo presidente Sarney (também ele emérito parlamentar que presidiu esta Casa por inúmeros mandatos).

Como em nenhum outro texto constitucional, a nova Carta contou com imensa e pujante mobilização de variados setores da sociedade civil, o que se vê refletido na ampla gama de direitos individuais e sociais por ela reconhecidos.

Não tenho dúvidas de que esta Casa está à altura dos compromissos assumidos pelos constituintes de 1988. Na esteira do espírito que funda a nova Constituição, o Senado tem renovado a ordem normativa brasileira, dando concretude normativa aos intentos constitucionais.

Já na década de 1990, promoveram-se inovações definitivas no ordenamento, por meio da aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente, do Código de Defesa do Consumidor, a Lei que regulamenta os benefícios previdenciários e a legislação que trata dos benefícios assistenciais, tendo o Senado participação decisiva no arranjo normativo que deu origem ao plano real.

No início dos anos 2000, vieram a lume, entre tantos outros, a Lei de Responsabilidade Fiscal, o novo Código Civil, o Estatuto do Idoso, a Lei Maria da Penha, a Lei de Biossegurança e a Lei dos Alimentos gravídicos.

Após 2010, foram promulgadas a Lei de Acesso à Informação, a nova Lei de Defesa à Concorrência, a Política Nacional de Mobilidade Urbana, o Marco Civil da Internet, a nova Lei de Migração e a Declaração dos Direitos de Liberdade Econômica.

E, por fim, mais recentemente, nos anos 2020, esta Casa deu demonstração de seu compromisso com a Nação por meio da elaboração de normativas voltadas ao enfrentamento da Covid, da aprovação da Lei do Saneamento Básico, e da legislação que trata dos crimes contra o Estado Democrático de Direito, sem ignorar ainda a Lei Geral de Proteção de Dados e a recentíssima Reforma Tributária.

Todos esses feitos demonstram concretamente que, ontem e hoje, o Senado não tem se omitido em sua tarefa de colaborar para o aprimoramento institucional da Nação, sem jamais descurar das balizas democráticas que fundam e direcionam toda a atuação dos Poderes Públicos.

Mencionei verdadeiros panteões do Senado Federal: Nabuco e Duque de Caxias; Epitácio Pessoa e Rui Barbosa; Tancredo Neves, Itamar Franco, Paulo Brossard e José Sarney.

E, referindo-me a eles, estou seguro de que as legislaturas de nosso tempo — presentes e futuras — hão de seguir o exemplo de altivez e desassombro legado por esses brasileiros notáveis, sob a observância do Águia de Haia, cujo busto repousa afixado acima da Mesa, no Plenário da Casa.

Com tal convicção, endereço ao senadores meus efusivos e respeitosos cumprimentos, na certeza de que cada cidadão brasileiro e cidadã brasileira orgulha-se do Senado Federal e, nele, deposita suas mais altas esperanças para a construção de uma sociedade “livre, justa e solidária”, como exige o texto constitucional.

 

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1 Assis, Machado. O velho Senado. 2. ed. Brasília: Senado Federal, 2021, p. 21.

 

Autores

  • é doutor em Direito pela Universidade de Münster, Alemanha. Professor de Direito Constitucional nos cursos de graduação e pós-graduação do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).

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