Opinião

Teatro jurídico da independência (ato 3): Constituição de 1824 e pacto das elites

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25 de março de 2024, 6h02

Não raro se discute os efeitos decorrentes da outorga da Constituição Imperial de 1824, em detrimento do produto legislativo que adviria das mãos da Assembleia Nacional Constituinte de 1823. Na verdade, sob o ponto de vista jurídico, pouco importa problematizar esse debate.

Primeiro porque, na maioria das vezes, parte-se de uma premissa equivocada, anacrônica, qual seja, de uma perspectiva de valores democráticos, muito próprios de uma concepção atual de democracia, para se criticar eventual “déficit de legitimidade” pela imposição do texto constitucional por dom Pedro na esteira do encerramento compulsório da Constituinte de 1823.

E, em segundo lugar, porque, como consequência, tal premissa tende a esconder um fato realmente relevante, sendo ele: a Constituição ter sido outorgada não significa que ela não foi fruto de um acordo. Pelo contrário, houve um pacto, um pacto que se utilizou do próprio texto constitucional para instrumentalizar a manutenção de privilégios.

Tal pacto constitucional foi logicamente protagonizado pela dinastia de Bragança (na figura do Imperador) e pela antiga elite colonial brasileira, além de ter como fundamento material, dentre outros privilégios, a inegociável manutenção da escravidão e dos mecanismos de acesso à terra (latifúndio), como amalgama de um bem sucedido dirigismo político no alvorecer institucional brasileiro, a despeito de qualquer valor protoliberal que tomava conta de boa parte das discussões à época e que a própria constituição aparentemente revelou.

O Brasil concebido pela Constituição de 1824 nasce assim com (e de) um sabido pecado original. Contudo, vale ressaltar que, no que toca especificamente à escravidão, e mesmo ao aceso à terra, absolutamente nada garantiria que tal pecado original não conformaria igualmente a gênese da base institucional de um Brasil que se soergueria do interrompido produto da constituinte de 1823.

Nesse sentido, até mesmo o passado recente de então pode servir como farol de predição. Vejamos o que ocorrera, por exemplo, na Revolução Pernambucana de 1817, que, a despeito do caráter republicano e liberal do movimento, que inclusive lançou mão de um projeto de lei fundamental conhecida como “Lei Orgânica da República de Pernambuco”, quando confrontada com o tema da escravidão, seus líderes claramente hesitaram em avançar na discussão.

Tal norma em nada inovou quanto à escravidão. Portanto, foi omissa, silente, deliberadamente cega, demonstrando assim a existência do mesmo pacto das elites que garantiu a Constituição de 1824, ou seja, a decisão de continuidade do modelo escravocrata, na hipótese de sucesso da Revolução. Há de se destacar a gênese elitista do movimento [1].

Escolarização e ocupação foram decisivos

De volta à constituição de 1824 e o seu pacto fundacional, é importante destacar a inteligência de José Murilo de Carvalho, quando nos alerta que, embora a elite política brasileira do início do século 19 fosse formada por vários grupos de interesses, dois fatores contribuíram diretamente para sua unidade como elite: a educação, mais precisamente o ensino superior (Universidade de Coimbra), que representava a unificação ideológica da elite, e as ocupações profissionais exercidas por seus membros (proprietários rurais, comerciantes de grosso trato, funcionários públicos como juízes e militares, e até mesmo membros do clero).

Vejamos como esse pilar unificador das elites brasileiras (educação e ocupação) se revelaram critérios definidores da capacidade eleitoral no texto constitucional de 1824, conformando um claro privilégio constitucionalizado, quando o artigo 92 da Carta Imperial proibia de votar os menores de 25 anos, salvo os “casados, e Officiaes Militares, que forem maiores de vinte e um annos, os Bachares Formados, e Clerigos de Ordens Sacras” [2].

Spacca

Da mesma forma, não poderiam exercer o direito de voto nas eleições paroquiais aqueles que tivessem uma renda líquida anual menor de 100 mil réis por propriedade, indústria, comércio ou emprego. [3] Assim como não custa destacar que, logicamente, os escravizados não tinham garantido o direito a voto.

Deve-se ressaltar que é possível entender a própria família real como um grupo componente dessa elite brasileira à época. Assim, a lógica patrimonialista da realeza do Império brasileiro fica ainda mais clara quando se analisa o artigo 115 da Constituição, evidenciando-se a confusão patrimonial constitucionalizada no nascimento do Brasil, ao atribuir à própria Família Real e a seus sucessores a propriedade dos imóveis utilizados no exercício da liturgia pública da realeza, bem como de outras “Terras Nacionais”, ainda que sua aquisição tenha sido financiada pelo Tesouro Público.

Além disso, não apenas os palácios e outros imóveis públicos de propriedade do Imperador seriam transmitidos a seus sucessores, mas também a nação se encarregaria das aquisições e de novas construções que considerasse convenientes para o decoro do Imperador e da Família Real.

Já a igreja, outro eminente pilar da elite colonial brasileira, fora igualmente beneficiada no texto constitucional, dentre outros privilégios, por meio da assunção da religião católica apostólica romana como religião oficial do Estado brasileiro.

Vejamos que o primeiro verbo utilizado no artigo 5º da Constituição Imperial Brasileira de 1824 é o verbo continuar, e a parte final do mencionado artigo revela o domínio exclusivo do nível simbólico da Igreja nas esferas pública e oficial, o que não apenas relegou os outros sincretismos professados à esfera doméstica, mas também, de certa forma, os marginalizou do espaço público.

Havia ainda outras interdições religiosas na Constituição Imperial Brasileira de 1824 em favor da Igreja Católica Romana, como a proibição de nomear deputados não católicos (artigo 95, III [4]).

Igualmente importante é o conteúdo do artigo 102 da Constituição Imperial, que elenca os principais poderes do Imperador, dentre eles o de nomear bispos e prover-lhes os benefícios eclesiásticos. Nesse sentido, Echeverria afirma que, combinando os artigos 5º e 102, II, da Constituição de 1824, não se está longe de concluir pela instituição de algo que o autor chamou de padroado civil,

“o que, de fato, fazia preencher as entranhas do serviço público imperial por sacerdotes de todas as ordens da Igreja de Roma, que disputavam, até mesmo, um setor próprio no âmbito da administração pública.” [5]

Não é por acaso que José Murilo de Carvalho afirma que, como outras elites em países de capitalismo tardio ou frustrado, uma das principais características da elite imperial brasileira era sua estreita relação com a burocracia estatal.

Aqui cabe ressaltar que havia uma previsão constitucional específica, garantindo o direito adquirido e demais recompensas pelos serviços prestados ao Estado, tanto por civis quanto por militares (artigo 179, XXVIII), estendendo a todos os cidadãos agraciados com os benefícios do Estado, e não apenas aos militares em relação às suas patentes, os privilégios de manutenção de seus direitos e recompensas garantidas pelo Estado e adquiridos antes da vigência da Constituição Imperial.

Os militares na Constituição

Assim, quanto aos militares, o artigo 149 garantia que os oficiais do Exército e da Armada não seriam privados de suas respectivas patentes, exceto por uma sentença proferida por um tribunal competente.

Pedro Américo/Reprodução

Da mesma forma, os militares já desfrutavam de algumas estruturas de bem-estar que seriam mantidas com a instituição da nova ordem constitucional, como o plano de benefícios para órfãos e viúvas de oficiais da Armada, criado em 1795; o Montepío para a guarda pessoal de dom João 6º (1808); e o pagamento de meio soldo para viúvas ou órfãos de oficiais e oficiais subalternos do exército mortos em defesa da independência do império e de um soldo integral para cabos e soldados, instituído pelo decreto de 4 de janeiro de 1823 [6].

Por sua vez, no que concerne aos juízes, o artigo 153 da referida carta constitucional estipulava que os juízes de direito seriam vitalícios. A vitaliciedade dos juízes pode ser tratada como mais uma de suas prerrogativas, já que à época muito se discutia sobre a instituição de mandatos eletivos para os magistrados.

Segundo Carvalho, os liberais tentaram por diversas vezes introduzir o princípio eletivo no Poder Judiciário, ou seja, a intervenção popular no processo de seleção dos magistrados e na definição do tempo de mandato, como forma de se contrapor ao critério constituído, considerado por essa corrente ideológica como resquício do ancien régime [7].

Sendo conhecida a intensidade dos ventos liberais que sopravam da Europa para a América e dos movimentos locais que já questionavam ideologicamente a figura da escravidão, para a elite brasileira, o maior privilégio foi, sem dúvida, a omissão da Constituição, que não mencionava uma única palavra sobre a escravidão. E para tanto, o silêncio, tal qual a palavra, era um mecanismo jurídico valioso. Por isso, não à toa, foi devidamente manejado em benefício na constitucionalização do pacto das elites.

Há de se destacar também que o silêncio da Constituição de 1824 não era somente em relação aos escravizados, mas igualmente em relação aos povos originários, é dizer, aos indígenas e aos povos autônomos das florestas, campos, serras e sertões, seja enquanto comunidade, seja como indivíduos. O que, na lavra de Vânia Moreira, tal omissão igualmente “salta aos olhos e grita aos ouvidos”.

Portanto, necessário mencionar a discussão sobre como a pactuação entre elites coloniais e a nobreza no processo de independência do Brasil utilizou do texto constitucional para reduzir a termo a institucionalização de privilégios. O que, per se, gera um rico debate, tanto sobre a captura do Estado pelas elites, em franco modelo patrimonialista, quanto sobre a própria lógica de Constituição moderna.

Dessa forma, sobre a captura patrimonialista do Estado então em formação, não há como fugir da proposta de análise empreendida por Faoro, quando consolida o seguinte argumento: os arranjos institucionais brasileiros, inclusive durante a fundação do Estado independente, apenas reiteram as fórmulas estamentais e patrimoniais construídas no contexto da formação do Estado português. A Constituição de 1824 não foi exceção a essa regra.

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Referências bibliográficas

BRASIL, Decreto de 04 de janeiro de 1823. Disponíble en: http://www.bgp.eb.mil.br/images/Decreto_de_Criao-do_Batalho_do_Imperador.pdf

BRASIL. Constituição Política do Império do Brasil, de 25 de março de 1824, disponible en http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm

BRASIL. Constituição Política do Império do Brasil, elaborada por um Conselho de Estado e outorgada pelo Imperador D. Pedro I, em 25.03.1824. Disponíble en http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm)

CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite imperial. Teatro de sombras: a política imperial. 14a ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2020, p. 174.

ECHEVERRIA, João Paulo de Campos.  A religiosidade e a secularização do sagrado normativo, Brasília, Gazeta Jurídica, 2021, p. 276.

FAORO, Raymundo. Os donos do Poder: formação do patronato político brasileiro, 3a ed. rev. São Paulo, Globo, 2001.

MOREIRA, Vânia. A caverna de Platão contra o cidadão multidimensional indígena: Necropolítica e cidadania no processo de independência (1808-1831), in Revista Acervo, Rio de Janeiro, v. 34, n. 2, p. 1-26, maio/ago. 2021.

PINHEIRO, Leonardo Morais de Araújo Pinheiro. Constitucionalismo de Batina: A ideia de constituição do clero revolucionário pernambucano entre 1817 e 1824, Rio de Janeiro, Ed. Lumen Juris, 2022.

 


[1] Para tanto, ler PINHEIRO, Leonardo Morais de Araújo Pinheiro. Constitucionalismo de Batina: A ideia de constituição do clero revolucionário pernambucano entre 1817 e 1824, Rio de Janeiro, Ed. Lumen Juris, 2022.

[2] BRASIL. Constituição Política do Império do Brasil, de 25 de março de 1824, disponível en http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm

[4] Art. 95. Todos os que podem ser Eleitores, abeis para serem nomeados deputados. Exceptuam-se (…) III. Os que não professarem a Religião do Estado. (BRASIL. Constituição Política do Império do Brasil, elaborada por um Conselho de Estado e outorgada pelo Imperador D. Pedro I, em 25.03.1824. Disponíble en http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm)

[5] ECHEVERRIA, João Paulo de Campos.  A religiosidade e a secularização do sagrado normativo, Brasília, Gazeta Jurídica, 2021, p. 276.

[6] BRASIL, Decreto de 04 de janeiro de 1823. Disponíble en: <http://www.bgp.eb.mil.br/images/Decreto_de_Criao-do_Batalho_do_Imperador.pdf>

[7] CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite imperial. Teatro de sombras: a política imperial. 14a ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2020, p. 174.

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