Opinião

Tema 1.255: cabe ao STF decidir qualquer assunto jurídico?

Autores

29 de março de 2024, 17h21

Propõe-se o seguinte questionamento: a competência constitucional atribuída ao Supremo Tribunal Federal permite que a corte possa rever ou chamar para si a responsabilidade para decidir qualquer assunto jurídico que entenda cabível?

Spacca

De forma mais específica, poderia avaliar se a interpretação concedida pelo Superior Tribunal de Justiça a determinada norma infraconstitucional (artigo 85, §§ 2º, 3º e 8º, do Código de Processo Civil — Tema 1.076 do STJ) foi adequada?

A resposta parece óbvia. Afinal, a Constituição, em seus artigos 102 e 105, é bastante clara ao prescrever exaustivamente as atribuições das cortes superiores, limitando a competência do STF — no que diz respeito ao julgamento de recursos extraordinários — apenas a assuntos relativos às hipóteses das alíneas “a”, “b”, “c” e “d”, do inciso III, entre as quais não está prevista a interpretação de legislação federal. Tampouco é papel do STF funcionar como corte de cassação do STJ.

O próprio STF possui jurisprudência há anos consolidada no sentido de que a ofensa ao texto constitucional deve ser direta, não sendo cabível recurso extraordinário ou ações de competência originária da corte cuja ofensa à Constituição seja reflexa ou baseada em princípios constitucionais.

A título exemplificativo:

“TRIBUTÁRIO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. EMBARGOS À EXECUÇÃO. CAIXA ECONÔMICA FEDERAL. IMÓVEIS DO PROGRAMA DE ARRENDAMENTO RESIDENCIAL (PAR). ISENÇÃO DO PAGAMENTO DA TAXA DE COLETA DE LIXO. MATÉRIA INFRACONSTITUCIONAL. AUSÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL.

  1. A controvérsia relativa à isenção do pagamento da Taxa de Coleta de Lixo de imóveis do Programa de Arrendamento Residencial, fundada na interpretação da Lei Municipal 11.988/04, é de natureza infraconstitucional.

  2. É cabível a atribuição dos efeitos da declaração de ausência de repercussão geral quando não há matéria constitucional a ser apreciada ou quando eventual ofensa à Carta Magna se dê de forma indireta ou reflexa (RE 584.608 RG, Min. ELLEN GRACIE, DJe de 13/3/2009).

  3. Ausência de repercussão geral da questão suscitada, nos termos do art. 543-A do CPC.” (RE 855.026 RG, min. rel. Teori Zavascki, Tribunal Pleno, julgado em 19/2/2015)

Neste sentido são inúmeros outros julgados: RE 1.183.025 RG, relator: ministro presidente, Tribunal Pleno, julgado em 25/4/2019; RE 1.306.973 RG, rel. min. presidente, Tribunal Pleno, julgado em 9/12/2021; ARE nº 898.771-AgR, 2ª Turma, rel. min. Dias Toffoli, DJe de 14/12/2015; AI nº 782.141-AgR, 1ª Turma, rel. min. Ricardo Lewandowski, DJe de 16/11/2010.

A doutrina também esclarece que a admissibilidade do recurso extraordinário se restringe a “quando é o próprio texto constitucional que resultou ferido, sem lei federal de permeio (ainda que acaso também tenha sido violada)” [1]. Araken de Assis justifica que:

“O motivo dessa restrição repousa em dois fundamentos. Primeiro: ao STF só incumbe o controle das questões constitucionais. As questões federais integram os domínios do recurso especial. Segundo: os tipos do art. 102, III, a e c, se mostram rígidos e não comportam interpretação elástica para incluir a questão federal posta de permeio à aplicação da Constituição” [2].

Portanto, parece ser incontestável a resposta para o questionamento apresentado anteriormente: a competência do Supremo é bastante restritiva, não sendo constitucionalmente permitido – e nem mesmo recomendável — que a corte tenha que referendar todo e qualquer assunto jurídico, principalmente quando ausente a natureza constitucional.

STF e a fixação de honorários por apreciação equitativa

Todavia, a teoria se dissocia da realidade. Conforme se observa do Tema 1.255 da Excelsa Corte (Recurso Extraordinário nº 1.412.069), foi reconhecida a repercussão geral da matéria no que diz respeito à interpretação conferida pelo STJ ao artigo 85, §§ 2º, 3º e 8º, do CPC:

“Tema 1.255: Possibilidade da fixação dos honorários por apreciação equitativa (artigo 85, § 8º, do Código de Processo Civil) quando os valores da condenação, da causa ou o proveito econômico da demanda forem exorbitantes.

Descrição: Recurso extraordinário em que se discute, à luz dos artigos 2º, 3º, I e IV, 5º, caput, XXXIV e XXXV, 37, caput, e 66, § 1º, da Constituição Federal, a interpretação conferida pelo Superior Tribunal de Justiça ao art. 85, §§ 2º, 3º e 8º, do Código de Processo Civil, em julgamento de recurso especial repetitivo, no sentido de não ser permitida a fixação de honorários advocatícios por apreciação equitativa nas hipóteses de os valores da condenação, da causa ou o proveito econômico da demanda serem elevados, mas tão somente quando, havendo ou não condenação: (a) o proveito econômico obtido pelo vencedor for inestimável ou irrisório; ou (b) o valor da causa for muito baixo (Tema 1.076/STJ).”

Referido artigo 85 (1) está previsto em legislação federal; (2) já foi objeto de análise pelo Superior Tribunal de Justiça no rito dos recursos repetitivos (Tema 1.076), conforme competência que lhe atribui a Constituição Federal; e (3) teve a redação reforçada pela Lei Federal nº 14.365/2022 (que acrescentou os §§ 6º-A e 8º-A ao artigo 85 do CPC). Ainda assim, a corte suprema, por maioria dos votos (6 a 5) [3], compreendeu que se tratava de matéria constitucional.

Fundamentações genéricas

O fundamento adotado pelo Supremo para reconhecer a repercussão geral e constitucionalidade da matéria foram os artigos 2º, 3º, I e IV, 5º, caput, XXXIV e XXXV, 37, caput, e 66, § 1º, da Constituição:

“Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; (…)

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(…)

XXXIV – são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:

a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder;

b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal;

XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

Art. 66. (…) § 1º Se o Presidente da República considerar o projeto, no todo ou em parte, inconstitucional ou contrário ao interesse público, vetá-lo-á total ou parcialmente, no prazo de quinze dias úteis, contados da data do recebimento, e comunicará, dentro de quarenta e oito horas, ao Presidente do Senado Federal os motivos do veto.”

A partir da leitura dos dispositivos utilizados como fundamento, observa-se a generalidade de seus conteúdos [4], os quais, a princípio, podem ser adotados pela Corte Suprema para justificar a existência de constitucionalidade para qualquer questão a fim de atrair sua competência.

Dispositivo é infraconstitucional

É perfeitamente compreensível a polêmica envolvendo a aplicação dos percentuais de honorários previstos no artigo 85 do CPC às causas cujo conteúdo financeiro seja de elevado valor, mas fato é que, juridicamente, a interpretação deste dispositivo é indiscutivelmente infraconstitucional e já foi submetida à apreciação da corte com competência para tanto (Tema 1.076 do STJ).

Dessa forma, respondendo-se objetivamente à pergunta proposta no início deste artigo, nota-se que, de acordo com os próprios termos do artigo 102 da CF, da jurisprudência do STF e do entendimento doutrinário, os limites naturalmente são existentes e taxativamente dispostos, de forma que, no plano ideal, a Corte Suprema não deveria tratar do assunto.

No plano real, entretanto, testemunha-se a desconsideração desses limites quando alguns membros da corte entendem que determinado assunto mereça por ela ser tratado, valendo-se de fundamentações genéricas para atrair a sua competência, tal como a do Tema 1.255 que debate exclusivamente a interpretação de uma norma federal já foi analisada pelo STJ.

 

 


[1] MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Recurso extraordinário e recurso especial. 7 ed. São Paulo: Editora RT, 2001, p.168

[2] ASSIS, Araken de. Manual dos Recursos. 9 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 835.

[3] Votaram pela existência de questão constitucional e repercussão geral: Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, André Mendonça, Dias Toffoli e Cristiano Zanin.

Votaram pela inexistência de questão constitucional e repercussão geral: Ministros(as) Rosa Weber, Edson Fachin, Luiz Fux, Nunes Marques e Cármen Lúcia

[4] Termos genéricos como: “promover o bem de todos”; “construir uma sociedade livre, justa e solidária”; “todos são iguais perante a lei”; “acesso ao Judiciário”; “princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!