Opinião

Discrepância nos protocolos adotados para vacinas de gripe e Covid-19

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24 de março de 2024, 6h33

O plenário do Supremo Tribunal Federal referendou, por maioria, liminar proferida na arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 1.123, para suspender os efeitos dos decretos municipais indicados “que dispensaram a exigência de vacina contra a Covid-19 para matrícula e rematrícula na rede pública de ensino”.

O voto condutor se ancorou no Tema 1.103 da repercussão geral, segundo o qual a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina registrada em órgão de vigilância sanitária não caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar, desde que a vacina em questão (1) tenha sido incluída no Programa Nacional de Imunizações ou (2) tenha sua aplicação obrigatória determinada em lei ou (3) seja objeto de determinação da União, estado, Distrito Federal ou município, com base em consenso médico-científico.

Com base nessa premissa, o relator concluiu que:

 “(…) não podem decretos municipais disporem em sentido absolutamente contrário ao que já foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal, sob pena de afronta direta ao Texto Constitucional.    

No caso da vacinação contra a Covid-19, uma vez incluída no Plano Nacional de Imunização, não pode o poder público municipal normatizar no sentido de sua não obrigatoriedade, sob pena de desrespeito à distribuição de competências legislativas (…) “.

Vacinação compulsória x vacinação forçada

Embora possa parecer, à primeira vista, que a decisão mencionada é meramente uma reafirmação de jurisprudência, a análise de outros precedentes vinculantes do Supremo levanta questionamentos acerca da legitimidade da obrigatoriedade da vacinação de crianças contra a Covid-19 no âmbito do Programa Nacional de Imunizações, conforme passo a expor.

Durante o auge da crise sanitária causada pela Covid-19, a Suprema Corte brasileira destacou-se na defesa do direito fundamental à saúde e estabeleceu limites constitucionais para a implementação de medidas sanitárias integradas às políticas públicas voltadas ao enfrentamento da pandemia.

Na Ação Direta de Inconstitucionalidade ADI 6.586/DF, o plenário do STF estabeleceu que vacinação compulsória não significa vacinação forçada, por exigir sempre o consentimento do usuário.

A obrigatoriedade da vacinação não pode contemplar medidas invasivas, aflitivas ou coativas, em decorrência do direito à intangibilidade, inviolabilidade e integridade do corpo humano, afigurando-se inconstitucional determinação no sentido de implementar a imunização sem o expresso consentimento informado.

Consolidou-se o entendimento sobre a validade da previsão de vacinação obrigatória, com a ressalva de que as sanções indiretas às quais se sujeitam os refratários devem ser razoáveis e proporcionais.

O fundamento legal para a obrigatoriedade vacinal, em apertada síntese, ancora-se na primazia do direito à vida em um ambiente de segurança sanitária, em detrimento do direito individual de recusar a vacinação.

Spacca

Em determinados contextos, a recusa em vacinar-se coloca em risco não apenas a saúde do indivíduo recalcitrante, mas também a eficácia de políticas públicas destinadas a controlar doenças infectocontagiosas, colocando em perigo a saúde coletiva.

Adicionalmente, ficou estabelecido que medidas indiretas para fomentar a vacinação obrigatória podem ser implementadas desde que (1) tenham como base evidências científicas e análises estratégicas pertinentes; (2) venham acompanhadas de ampla informação sobre a eficácia, segurança e contraindicações dos imunizantes; (3) respeitem a dignidade humana e os direitos fundamentais das pessoas; (4) atendam aos critérios de razoabilidade e proporcionalidade; e (5) sejam as vacinas distribuídas universal e gratuitamente.

Adesão a padrões

Sob outro aspecto, na ADI 6.421 MC/DF, o plenário do STF estabeleceu que decisões administrativas voltadas à proteção da vida, saúde e meio ambiente devem aderir aos padrões, às normas e aos critérios científicos e técnicos estabelecidos por entidades e organizações de renome nacional e internacional.

Tais decisões devem estar alinhadas aos princípios constitucionais de precaução e prevenção, que exigem um juízo de proporcionalidade, e a não adoção de medidas ou protocolos cujos impactos adversos sobre esses direitos fundamentais não estejam devidamente esclarecidos.

Neste sentido, destacamos que a Organização Mundial de Saúde (OMS) exerceu papel fundamental no estabelecimento de normas, padrões e na garantia de uma abordagem unificada ao combate à pandemia de Covid-19.

As suas principais funções incluem o monitoramento da evolução da pandemia, com avaliação permanente da disseminação do vírus e eficácia das intervenções implementadas, bem como o fornecimento de orientações técnicas à luz do conhecimento atualizado sobre a doença e sua transmissão.

Para apoiar os países na elaboração de seus respectivos programas de vacinação, o Grupo Consultivo Estratégico de Especialistas em Imunização (Sage) da OMS publica orientações periódicas sobre otimização do programa de vacinas, que refletem as necessidades de saúde pública em permanente evolução, à medida que novas linhagens do vírus passam a circular no planeta.

As recomendações sobre o uso de vacinas contra a Covid-19 estão sujeitas a atualizações frequentes, em linha com novas descobertas científicas e mudanças relevantes no panorama epidemiológico.  A primeira versão do roteiro da OMS sobre uso de vacinas contra a Covid-19 foi emitida em 20 de outubro de 2020, e a última atualização, divulgada em 10 de novembro de 2023 [1].

OMS e vacinação de crianças e adolescentes saudáveis

Em 5 de maio de 2023, o diretor-geral da OMS anunciou o fim do estado de emergência internacional pela Covid-19, dada a robusta imunidade populacional, superior a 90%, na maioria dos países. Esse elevado patamar de proteção coletiva se deve ao expressivo uso de vacinas, combinado com a imunidade induzida por infecção.

Com a superação da crise sanitária, as estratégias de proteção anteriormente adotadas em caráter excepcional, incluindo quarentenas, uso obrigatório de máscaras, vacinação compulsória, entre outras, foram submetidas a um processo de revisão, à luz dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, que demarcam limites mais estritos para a imposição de intervenções sanitárias em contextos não emergenciais.

Neste sentido, a recomendação da OMS atualmente vigente sobre o uso ótimo da vacina contra a Covid-19 classifica crianças e adolescentes saudáveis, na faixa etária de 6 meses a 17 anos de idade, em grupo de vacinação de baixa prioridade.

Tania Rêgo/Agência Brasil

De acordo com a OMS, três anos após o início da pandemia, em um cenário de elevada imunidade resultante de infecções prévias e vacinação, a Covid-19 apresenta baixa letalidade entre crianças e jovens saudáveis, com ocorrência de fatalidades principalmente entre aqueles com comorbidades.

Com base nessa constatação, a OMS orienta que a vacinação para crianças saudáveis de 6 meses a 17 anos seja considerada opcional e enfatiza que os benefícios de vacinar essa faixa etária específica contra a Covid-19 são significativamente inferiores aos benefícios proporcionados pelas vacinas tradicionais do calendário regular de imunizações infantil.

A OMS recomenda, adicionalmente, que se os países optarem por vacinar integrantes de grupos de baixa prioridade, podem considerar uma única dose para a faixa etária de 5 anos ou mais, e duas doses para a faixa etária de 6 meses a 4 anos, sem a necessidade de doses anuais de reforço.

Nota Técnica 118/2023

No Brasil, o Ministério da Saúde incorporou o imunizante pediátrico da Pfizer contra a Covid-19 ao Calendário Nacional de Vacinação Infantil de rotina para crianças de 6 meses a menores de 5 anos de idade, a partir de 1 de janeiro de 2024, através da Nota Técnica (NT) 118/2023 [2]. O esquema vacinal de três doses é mais amplo do que o sugerido pelo roteiro da OMS.

Acrescente-se que a OMS assevera, no mencionado roteiro, a necessidade de revisão periódica da composição dos imunizantes licenciados pelas autoridades sanitárias nacionais, visando uma proteção sempre atualizada contra novas variantes da Covid-19. A nova tendência aponta para o retorno das vacinas monovalentes, com composição que contemple a variante XBB, derivada da Ômicron.

A aludida NT 118/2023, entretanto, limita-se a indicar a adição do imunizante “Pfizer (frasco com tampa vinho)” no rol de vacinas de rotina. O documento não fornece informações precisas sobre a formulação específica incorporada ao Programa Nacional de Imunizações: se é uma versão monovalente recente, atualizada para enfrentar as variantes do coronavírus atualmente em circulação, ou a formulação original, menos eficaz da vacina.

O Programa Nacional de Imunizações segue uma metodologia rigorosamente baseada em evidências, submetida à análise e deliberação de um colegiado técnico especializado. Portanto, a introdução de uma nova vacina no esquema obrigatório de imunização infantil exige um processo de discussão aberto e transparente.

Este debate deve contemplar fatores críticos como a análise de risco-benefício, a acessibilidade do imunizante, a dinâmica epidemiológica atual, os trade-offs programáticos, os custos relacionados à oportunidade e efetividade, e, indispensavelmente, o nível de aceitação da vacina pela comunidade.

A referida Nota Técnica 118/2023 faz referência à deliberação da Câmara Técnica Assessora em Imunizações (CTAI), tomada em reunião no mês de julho de 2023, que recomendou a inclusão da vacina Covid-19 no Calendário Nacional de Vacinação, como imunização de rotina para crianças de 6 meses a menores de 5 anos de idade.

Verifica-se, entretanto, que as atas e registros de reuniões da CTAI do ano de 2023 não estão acessíveis no site oficial. Faltam, portanto, esclarecimentos fundamentais acerca do embasamento científico e demais critérios utilizados para respaldar uma decisão alinhada com o interesse público sobre a escolha do imunizante, o esquema vacinal, a política de vacinação obrigatória de crianças e, principalmente, o seu impacto no direito fundamental a educação [3].

Posição do CFM e PDL 487/2023

No que tange ao consenso científico exigido pelo plenário do STF, de forma categórica, nas supracitadas ADI 6.586/DF e ADI 6.421 MC/DF, é importante salientar que a OMS não é a única entidade de renome que considera a vacinação contra a Covid-19 para crianças e adolescentes saudáveis como opcional.

O Conselho Federal de Medicina (CFM), entidade que congrega centenas de milhares de profissionais de saúde altamente qualificados, defende que a vacina contra Covid-19 seja disponibilizada, mas se posiciona contrariamente à sua obrigatoriedade [4].

Nessa toada, foi apresentado na Câmara dos Deputados o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 487/2023, com a finalidade de sustar os efeitos da controvertida Nota Técnica 118/2023 [5].

Considerações finais

Diante do fim da emergência sanitária e considerando as recomendações atuais da OMS, assim como as inquietudes relativas às vacinas aprovadas sem um intervalo de tempo adequado para uma avaliação mais abrangente dos eventuais efeitos colaterais, emerge o questionamento sobre a legitimidade da adoção da obrigatoriedade de imunização de crianças saudáveis entre 6 meses e menos de 5 anos de idade, à luz dos princípios constitucionais da razoabilidade e precaução.

Questiona-se, pois, se não seria mais apropriado equiparar a abordagem da vacinação contra a Covid-19 àquela aplicada à imunização contra a gripe, disponibilizada gratuitamente e sob a égide da escolha consciente, voluntária e informada do cidadão. Interroga-se, dessa forma, sobre quais parâmetros de interesse público justificam a discrepância nos protocolos adotados para essas vacinas (gripe e Covid-19).

Para assegurar um efetivo consentimento informado, é crucial a implementação de campanhas educativas baseadas em evidências científicas sólidas. Estas devem incluir esclarecimentos sobre a celeridade atípica no desenvolvimento das vacinas em questão e na avaliação de seus potenciais efeitos adversos. As informações devem abranger a eficácia das vacinas atualmente disponibilizadas diante das novas variantes do vírus.

Em vez de recorrer a imposição autoritária de restrições e penalidades, uma política de saúde pública pautada por princípios democráticos deve priorizar a disseminação de informações confiáveis, a transparência nos processos decisórios e a educação cidadã, para alcançar resultados efetivos.

 


[1] https://iris.who.int/bitstream/handle/10665/373987/WHO-2019-nCoV-Vaccines-SAGE-Prioritization-2023.2-eng.pdf?sequence=1

[2] https://www.gov.br/saude/pt-br/vacinacao/informes-e-notas-tecnicas/nota-tecnica-no-118-2023-cgici-dpni-svsa-ms/view

[3] https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/secovid/ctai-covid-19 – :~:text=A Câmara Técnica de Assessoramento,o enfrentamento à Covid-19.

[4] https://portal.cfm.org.br/noticias/no-senado-cfm-defende-programa-nacional-de-imunizacoes-e-descreve-acoes-da-autarquia-contra-a-covid/

[5] [v]https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2378126

 

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