Opinião

Profissões regulamentadas da saúde e veto presidencial na Lei do Ato Médico

Autores

  • Ana Luiza Brochado Saraiva Martins

    é graduada em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) e advogada da consultoria jurídica do Conselho Federal de Medicina (CFM).

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  • Giselle Crosara Lettieri Gracindo

    é doutora em Bioética pela Universidade de Medicina do Porto (Portugal) membro da Comissão de Bioética e Advogado da Consultoria Jurídica do Conselho Federal de Medicina (CFM) membro e revisor do conselho editorial da Revista Bioética (CFM) da Revista do Conselho Nacional de Justiça e da Revista de Direito Sanitário da Universidade de São Paulo e colaboradora da revista Frontiers Publishing.

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  • Marcella Oliveira Pinho

    é advogada do Conselho Federal de Medicina (CFM) especialista em Processo Civil pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e pós-graduanda em Direito e Saúde pela Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Hospital Albert Einstein.

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7 de maio de 2024, 18h28

A regulamentação das profissões de saúde no Brasil é uma questão sensível, que demanda a precisa definição das competências e dos limites de atuação de cada categoria profissional. Um marco significativo nesse contexto foi a promulgação da Lei do Ato Médico (Lei nº 12.842/2013), com o objetivo de estabelecer parâmetros transparentes para a atividade médica. No entanto, o processo legislativo que culminou na aprovação dessa lei foi marcado por vetos presidenciais, revelando a busca por um equilíbrio delicado entre a regulamentação médica e a preservação da autonomia de outras profissões da saúde, em um intricado jogo de interesses.

Para melhor analisar o veto presidencial da Lei do Ato Médico, pertinente antes fazer breves apontamentos acerca das profissões regulamentadas.

Reserva legal e legalidade

Assim, a Constituição Federal de 1988 assegura o livre exercício de qualquer profissão, desde que atendidas as qualificações estabelecidas em lei. É o princípio da reserva legal, pelo qual a exigência de atendimento de capacitação técnica ou científica para o exercício de determinadas profissões deve ser disciplinada por lei em sentido estrito [1] (ato normativo editado pelas duas Casas do Congresso Nacional com sanção presidencial) ou mediante sua autorização. Além disso, a competência para legislar sobre as profissões é privativa da União. Tudo conforme os artigos 5º, XIII, e 21, XVI, da CF/88.

Também é preciso pontuar que a atuação da administração pública é regida pelo princípio da legalidade, insculpido no artigo 37 da CF/88, de modo que está atrelada à autorização legal. Assim, como a regulamentação para o exercício profissional é feita pela administração pública, também é pautada pela legalidade. E, no Direito Administrativo, o princípio da legalidade é diverso do que ocorre no Direito Privado. Neste, vigora a teoria da licitude implícita, pela qual o particular pode fazer tudo o que não for proibido por lei. Naquele, a administração somente pode fazer o que a lei lhe autorizar — no caso de omissão, não há se falar em conduta autorizada à administração [2].

As profissões da área da saúde necessitam de regulamentação em razão da sua própria natureza: lidam com a saúde e vida humanas e necessitam de trabalhadores tecnicamente qualificados. É crucial notar que a garantia constitucional do livre exercício profissional pressupõe a obtenção da qualificação necessária para a respectiva prática.

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Em observância aos princípios da reserva legal e da legalidade no âmbito do Direito Público, as profissões regulamentadas somente podem praticar atos que a legislação disciplinadora da área permite. Exemplificando para melhor compreensão: a Lei nº 12.842, de 2013, que dispõe sobre o exercício da Medicina, define que é atividade do médico executar a sedação profunda, bloqueios anestésicos e anestesia geral (artigo 4º, VI).

Por outro lado, na ausência de previsão legal autorizando determinada profissão da saúde realizar um determinado ato, não pode aquela profissão praticar aquele ato. Assim, pode o enfermeiro executar a sedação profunda, bloqueios anestésicos e anestesia geral? É preciso analisar a Lei nº 7.498, de 25 de junho de 1986, que dispõe sobre o exercício da enfermagem. E aqui, a lei não autoriza o enfermeiro o realizar a anestesia de modo geral, salvo as enfermeiras obstétricas que podem aplicar a anestesia local unicamente para realização de episiotomia e episiorrafia (artigo 11, parágrafo único, “c”).

Inclusive, sobre este assunto, sugerimos a leitura de um importantíssimo acórdão do Superior Tribunal de Justiça, o Recurso Especial nº 1.357.139 DF, de relatoria do ministro Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 18/4/2013 pela 1ª Turma, e também do acórdão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região nos autos do processo nº 0022641-31.2002.4.01.3400, de 5/11/2013, para se aprofundar no tema.

Veto e continuidade de programas

Voltando à Lei do Ato Médico e ao objeto do artigo, é preciso discutir o diagnóstico feito pelo médico e o veto presidencial ao inciso que previa o diagnóstico nosológico como ato privativo de médico.

O artigo 2º da Lei nº 12.842, de 2013, define que o objeto da atenção do médico é a saúde do ser humano, desenvolvendo suas ações profissionais para prevenir, diagnosticar e tratar doenças:

“Art. 2º O objeto da atuação do médico é a saúde do ser humano e das coletividades humanas, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo, com o melhor de sua capacidade profissional e sem discriminação de qualquer natureza.

Parágrafo único. O médico desenvolverá suas ações profissionais no campo da atenção à saúde para:

I – a promoção, a proteção e a recuperação da saúde;

II – a prevenção, o diagnóstico e o tratamento das doenças;

III – a reabilitação dos enfermos e portadores de deficiências.”

(Grifos das articulistas)

O artigo 4º, que estabelece as competências privativas do médico (aquelas que somente o profissional graduado em Medicina pode realizar), inclui como privativa a determinação do prognóstico relativo ao diagnóstico nosológico (X), e define o diagnóstico nosológico como sendo “a determinação da doença que acomete o ser humano” (§1º).

Spacca

Ressalvado o exercício da Odontologia, no âmbito da sua área de atuação (artigo 4º, §6º, da Lei nº 12.842/2013), a única legislação que prevê a possibilidade de um profissional da saúde diagnosticar doenças que acometem o ser humano é a Lei nº 12.842, de 2013, que atribui esta competência profissional ao médico. Não há nenhuma outra lei em sentido estrito prevendo a outros profissionais da saúde a competência para realizar o diagnóstico de doenças, seja a lei da enfermagem (a Lei nº 7.498/1986), da nutrição (Lei nº 8.234/1991), do farmacêutico (Lei nº 13.021/2014), do fisioterapeuta e do terapeuta ocupacional (Decreto-Lei nº 938/1969), por exemplo.

Não se ignora que, na redação originária do projeto de lei que deu origem à norma, havia a previsão de que a “formulação do diagnóstico nosológico e respectiva prescrição terapêutica” seriam atos privativos de médico (artigo 4º, I), e também outro item estabelecendo que “não são privativos do médico os diagnósticos funcional, cinésio-funcional, psicológico, nutricional e ambiental, e as avaliações comportamental e das capacidades mental, sensorial e perceptocognitiva” (artigo 4º, §2º), e que ambos os dispositivos foram vetados por questões de interesse público – veto político.

Ocorre que o veto presidencial à previsão de que o diagnóstico nosológico não é ato médico não passou a prever por si só, tampouco promoveu alterações nas demais legislações, que outros profissionais da saúde poderiam diagnosticar doenças que acometem o ser humano.

O fato de não ser uma atribuição privativa de médicos não a torna uma atribuição de todas as profissões; tanto que a Lei nº 12.842/2013 continua prevendo que um dos focos da atuação do médico é o diagnóstico de doenças.

Da mesma forma, o veto presidencial explicita suas razões [3] e, em nenhum momento, buscou conceder aos profissionais não médicos o direto ou a atribuição de atuarem fora do limite das suas competências legais e técnica.

A única interpretação a ser conferida às referidas mensagens de veto é que os vetos foram apostos com base no interesse público diante do receio de haver solução de continuidade das “ações preconizadas em protocolos e diretrizes clínicas estabelecidas no Sistema Único de Saúde e em rotinas e protocolos consagrados nos estabelecimentos privados de saúde”, tais como os programas que as próprias razões de veto indicam, “programas  de prevenção e controle à malária, tuberculose, hanseníase e doenças sexualmente transmissíveis, dentre outros”.

A título exemplificativo, a Lei nº 7.498/1986, da enfermagem, prevê a competência ao enfermeiro, como integrante da equipe de saúde, de prescrever medicamentos estabelecidos em programas de saúde pública e em rotina aprovada pela instituição de saúde. Assim, a manutenção do inciso I do artigo 4º da Lei do Ato Médico (“formulação do diagnóstico nosológico e respectiva prescrição terapêutica”) poderia impedir a continuidade de determinados programas de saúde pública, onde há protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas previamente estabelecidos, com atuação conjunta das equipes de saúde.

Ato de ‘não direito’

Repita-se, a razão do veto é a “atuação integrada dos profissionais de saúde” no bojo do Sistema Único de Saúde (SUS). Em hipótese alguma o veto busca conferir a profissionais outros, não médicos, a, autonomamente, diagnosticar doenças e prescrever tratamentos.

Ou seja, os vetos foram apostos exclusivamente para permitir a continuidade de determinados programas do Sistema Único de Saúde e de determinadas competências profissionais já previstas nas leis das profissões, sem qualquer intenção de “legislar” para atribuir direitos aos não médicos e permitir a atuação autônoma para a execução de procedimentos médicos. Registra-se que somente se admite “veto expresso e explícito” [4], não podendo aos intérpretes e aplicadores do direito inferir conteúdo que não se encontra presente nele.

E nem poderia fazer as vezes de lei, uma vez que o veto não possui conteúdo normativo. Nem o veto nem a exposição de motivos são, em rigor, texto normativo. Não possuem o condão de criar direito. Aliás, o veto sequer é uma expressão do legislador em sentido estrito. Pensar de modo diverso significa admitir que um ato de “não direito” (veto) seja capaz de criar direitos e autorizações positivos.

O Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 1 QO, em 3/2/2000, asseverou que a parte vetada em projeto de lei não é lei e tampouco ato normativo, de modo que o veto não pode ser considerado “ato do Poder Público”, não podendo ser objeto de controle concentrado pelo Poder Judiciário.

Assim, os vetos à Lei do Ato Médico, nº 12.842/2013, não alteraram a atual ordem jurídica, o que evidencia que as leis que disciplinam as demais profissões regulamentadas da saúde continuam em vigor e devem ser cumpridas, pois tais normas estabelecem as atribuições, direitos e obrigações, devendo atuar dentro dos limites legais que lhe forem permitidos, sem extrapolar seu campo de atuação técnica-legal e invadir o exercício de outras profissões. Interpretação diferente dessa poderá acarretar eventual afronta ao devido processo legislativo e deve ser rechaçado pelo Poder Judiciário.

Infelizmente, o veto político sobre o diagnóstico e a prescrição terapêutica como atos privativos de médico tem sido utilizado como se lei fosse por alguns aplicadores do Direito, em contrariedade ao ordenamento jurídico… Mas essa discussão fica para um próximo capítulo.

 


Referências bibliográficas

[1] DA CUNHA JÚNIOR, Dirley. Curso de Direito Constitucional. 4ª Edição revista, ampliada e atualizada. Salvador: Editora Juspodivm, 2010, p. 683.

[2] NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal comentada e legislação constitucional. 6ª Ed. Ampli e atual até a EC 95/2016 e a Lei de Mandado de Injunção – Lei 13.300/216. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 566.

[3] Mensagem nº 287, de 10 de julho de 2013, disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/Msg/VEP-287.htm.

[4] NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal comentada e legislação constitucional. 6ª Ed. Ampli e atual até a EC 95/2016 e a Lei de Mandado de Injunção – Lei 13.300/2016. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 699.

 

 

 

Autores

  • é graduada em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) e advogada da consultoria jurídica do Conselho Federal de Medicina (CFM).

  • é doutora em Bioética pela Universidade de Medicina do Porto (Portugal), membro da Comissão de Bioética e Advogado da Consultoria Jurídica do Conselho Federal de Medicina (CFM), membro e revisor do conselho editorial da Revista Bioética (CFM), da Revista do Conselho Nacional de Justiça e da Revista de Direito Sanitário da Universidade de São Paulo e colaboradora da revista Frontiers Publishing.

  • é advogada do Conselho Federal de Medicina (CFM), especialista em Processo Civil pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e pós-graduanda em Direito e Saúde pela Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Hospital Albert Einstein.

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