Justo Processo

Insignificância e a matemática: zero mais zero é igual a zero

Autores

  • Fernando Antunes Soubhia

    é defensor público no estado de Mato Grosso mestre em Criminologia e Sistema de Justiça pela City University of London (Inglaterra).

  • Gina Ribeiro Gonçalves Muniz

    é mestre em Ciência Jurídico Criminais pela Universidade de Coimbra e defensora pública do estado de Pernambuco.

  • Denis Sampaio

    é defensor público titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal) mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

23 de março de 2024, 8h00

Luigi Ferrajoli, partindo da premissa que a pena é um mal indisfarçável pelas promessas de reeducação e ressocialização, ensina que a imposição de uma pena se justifica unicamente se a soma das violências – delitos, vinganças privadas e punições arbitrárias – que ela pode prevenir for superior à das violências constituídas pelos delitos prevenidos e pelas penas a eles cominadas. Assim, apesar de ser uma teoria legitimadora da pena, para o mestre italiano, para que haja legitimidade na imposição de uma determinada sanção, a previsão legal da conduta proibida não pode estar dissociada de um conceito material de crime, algo que demonstre, ictu oculi, sua danosidade social.

Verdade seja dita, essa não é uma noção propriamente inovadora. De Carrara a Roxin, com evidentes exceções, a questão sobre as funções e finalidades da pena sempre gravitou em torno de um conceito material de crime, ainda que essa terminologia não tenha sido expressamente adotada em outros tempos. No Brasil de hoje, por exemplo, predomina a compreensão racional-teleológica de que a função do Direito Penal é a proteção subsidiária de bens jurídicos dotados de dignidade penal. Desta perspectiva, apenas condutas que ataquem de forma grave valores essenciais à vida em sociedade, orientados por uma política criminal fundada na dignidade da pessoa humana, podem ser consideradas (materialmente) criminosas.

Eis a gênese dogmática do princípio da insignificância, protagonista de nossa análise: se uma determinada conduta for formalmente típica, subsumindo-se à redação do tipo penal, mas não violar de forma grave o bem jurídico subjacente à previsão normativa, ela não será considerada materialmente típica e, com isso, não justificará a imposição de uma sanção. O que impede a intervenção do Direito Penal em tais situações não é uma medida de política criminal ou qualquer circunstância subjetiva do agente (direito penal do autor), é o reconhecimento dogmático de que a inexpressividade da lesão ao bem jurídico tutelado (direito penal do fato) não legitima a imposição de uma sanção penal.

Infelizmente, na prática a teoria é outra: o princípio da insignificância incide quase que exclusivamente sobre delitos patrimoniais praticados sem violência ou grave ameaça, reconhecimento que parece atuar como uma pequena válvula de escape de um sistema bastante autoconsciente de sua inescondível seletividade. No entanto, exatamente porque conhece de sua seletividade, o próprio sistema escolhe o quanto de pressão deseja aliviar, impedindo, deliberadamente, que a válvula de escape tome proporções maiores.

Populismo e maniqueísmo

Mesmo diante de suas bases dogmáticas, nossos tribunais superiores condicionaram sua aplicação à presença de quatro requisitos, cada um mais genérico do que o outro: (a) mínima ofensividade da conduta do agente; (b) ausência de periculosidade social da ação; (c) reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e; (d) inexpressividade da lesão jurídica causada [1]. Qual a relação desses requisitos com a integridade do bem jurídico atacado, sinceramente não sabemos. Em realidade, tais requisitos não são instrumentos de coerência interna do sistema, mas meras barreiras político-criminais ao reconhecimento do princípio da insignificância com base em uma leitura equivocada da relação sanção penal x defesa social.

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Prova disso é que, para além das veiculações na mídia de incontáveis recursos e habeas corpus que chegam aos nossos tribunais de sobreposição buscando reverter condenações ou prisões por delitos bagatelares, segundo dados do pesquisador David Metzker (gráfico abaixo) — que diariamente monitora o deferimento de HCs e RHCs nos tribunais superiores —, no ano de 2023 foram concedidas ínfimas 138 ordens com fundamento no reconhecimento do princípio da insignificância.

A verdade é que o discurso populista contrário ao reconhecimento da atipicidade material nesses casos, em especial em pequenos furtos, explora de forma maniqueísta uma narrativa mais ampla sobre como as áreas urbanas estariam fora de controle. Ignorando qualquer análise sobre etiologia delitiva e, em especial, sobre a seletividade dos processos de criminalização, não faltam “especialistas” de redes sociais para reconhecer uma suposta conexão entre eventual absolvição de uma pessoa que furtou um pacote de bolacha e o crescimento da violência. Tanto assim o é que o próprio Supremo Tribunal Federal já decidiu que mesmo na presença dos requisitos para o reconhecimento do princípio da insignificância, abre-se espaço para a avaliação do juízo da causa sobre um suposto interesse social na sua aplicação [2].

Insignificância para pessoas significantes

Aliás, recentemente uma fala do então ministro da Justiça, Flavio Dino, no sentido de que crimes considerados menos graves, como furto e delito de trânsito, não deveriam desaguar na prisão do indivíduo, mas sim a outras formas de punição foi prontamente manipulada para correlacioná-la à ocorrência de furtos nas Lojas Americanas [3]. Nessa lógica, justifica-se a prisão imediata de um despossuído pela subtração sem violência ou grave ameaça de 12 chocolates, de quatro pacotes de bala Fini, de quatro desodorantes e uma embalagem com lâminas de barbear Gillette [4], e outros casos de miudezas, ao mesmo tempo em que se ignora uma fraude contábil de R$ 45 bilhões que deixou centenas ou até milhares de pessoas no prejuízo real.

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Esse tipo de resistência só realça a seletividade do nosso sistema penal, pois, ao passo que para delitos patrimoniais de pequeno vulto se apresentam uma série de obstáculos kafkanianos ao reconhecimento da bagatela, para os crimes tributários, a insignificância se aplica até o valor de R$ 20 mil [5], sendo prescindível a submissão do caso concreto a quaisquer vetores extras. Ao que parece que o princípio da insignificância só vale para as pessoas significantes.

Zero mais zero é igual a zero

Por outro lado, e agora em defesa dos tribunais superiores, algumas decisões têm surgido no sentido de suavizar as barreiras outrora impostas. A mera existência de antecedentes criminais, por exemplo, por si só, já não é considerada impeditiva ao reconhecimento da insignificância [6], aplicando-se o mesmo entendimento quando o acusado for efetivamente reincidente [7]. Nessa linha, o STJ recentemente trouxe um novo avanço: o reconhecimento de que a reiteração de condutas insignificantes não impede o reconhecimento da atipicidade material [8]:

“é atípica a tentativa de subtração, sem a prática de violência ou grave ameaça à pessoa, de 08 (oito) shampoos, em valor global aproximado inferior a R$ 100,00 (cem reais), ainda que, eventualmente, haja reiteração de condutas dessa natureza”. E não haveria como ser diferente, afinal, como aprendemos no colégio: zero mais zero é igual a zero.

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Na fundamentação desse leading case, se extrai uma lição que, se cumprida pelas instâncias inferiores, certamente contribuiria para a diminuição do congestionamento de processos nos tribunais superiores:

“Em homenagem ao direito penal do fato, ao se afirmar que determinada conduta é atípica, ainda que ela ocorra reiteradas vezes, em todas essas vezes estará ausente a proteção jurídica de envergadura penal. Ou seja, a reiteração é incapaz de transformar um fato atípico em uma conduta com relevância penal. Repetir várias vezes algo atípico não torna esse fato um crime”.

De fato, vincular o reconhecimento da insignificância à primariedade do agente convizinha com a situação em que o magistrado, a fim de perquirir sobre a existência de uma dirimente de legítima defesa ou exculpante de inexigibilidade de conduta diversa, exigisse previamente a juntada aos autos da folha de antecedentes do agente para atestar inexistir reincidência ou maus antecedentes.

Não há como discordar, sem abandonar todas as tentativas de sistematização do direito penal e, em especial, a noção de que a função da pena é a tutela de bens jurídicos. Assim, é preciso desvincular o reconhecimento da bagatela – causa excludente da tipicidade material – à primariedade/reincidência do agente – circunstância subjetiva inerente à individualização da pena, mormente quando as passagens anteriores também forem bagatelares. Como aprendemos na escola, zero mais zero é igual a zero.

Enfim… Apesar da dogmática penal legitimar-se na promessa de racionalizar a aplicação judicial do Direito Penal, garantindo sua incidência igualitária e o menos arbitrária possível, a comparação dessa promessa com a operacionalidade do sistema deixa claro que, enquanto instância interna do sistema penal, ela – a dogmática – é claramente capturada por sua lógica de funcionamento. Ao fim e ao cabo, o que deveria ser uma tarefa técnica, científica e desapaixonada, torna-se apenas mais um mecanismo de operacionalização da seletividade, curvando-se às funções latentes do Direito Penal, dentro daquilo que Vera Regina Pereira de Andrade chama de eficácia instrumental invertida.

 


[1] STF, HC nº 84.412/SP, Rel. Min. Celso de Mello, Segunda Turma, j. em 19/10/2004, DJe 19/11/2004; STJ, AgRg no HC 845.965/SP, Rel. Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, j. em 27/11/2023

[2] HC 123108, Relator Min. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 03/08/2015, DJe 01/02/2016

[3] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2024/02/post-engana-ao-induzir-ligacao-entre-furto-em-loja-e-fala-de-flavio-dino.shtml

[4] Todos esses são casos reais de pessoas que ficaram presas pela prática de furtos insignificantes.

[5] Cf. STJ, REsp, 1.709.029/MG – recurso repetitivo, Relator Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 28/02/2018, Terceira Seção, DJe em 04/04/2018.

[6] STF, RHC: 210.198/DF, Relator Min. Gilmar Mendes, julgado em 14/01/2022, DJe: 18/01/2022

[7] AgRg no HC n. 888.105/SC, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 12/3/2024, DJe de 18/3/2024.

[8] STJ – AgRg no HC: 834.558/GO, Relator Min. Messod Azulay Neto, Quinta Turma, julgado em 12/12/2023, DJe:  20/12/2023

 

Autores

  • é defensor público no estado de Mato Grosso, mestre em Criminologia e Sistema de Justiça pela City, University of London.

  • é defensora pública do estado de Pernambuco e mestre em Ciência Jurídico Criminais pela Universidade de Coimbra.

  • é defensor público, titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa, mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ, investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa, membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ, membro Honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros, professor de Processo Penal e autor de livros e artigos .

  • é advogado criminalista, habilitado para atuar no Tribunal Penal Internacional em Haia, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), coordenador da Pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

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