Justo Processo

Valor do testemunho policial e aplicação acrítica da Súmula 70 do TJ-RJ (parte 1)

Autores

  • é defensor público titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal) mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

    Ver todos os posts
  • é defensora pública e coordenadora de Defesa Criminal da Defensoria Pública do Rio.

    Ver todos os posts
  • é defensora pública subcoordenadora de Defesa Criminal da Defensoria Pública-RJ membra do Conselho Penitenciário do RJ e do Comitê do Plano Estadual da Política de Atenção à Mulher Presa e Egressa do RJ e especialista em Processo Penal e Garantias Fundamentais pela Academia Brasileira de Direito Constitucional.

    Ver todos os posts

4 de maio de 2024, 8h00

“Eles me pegaram na quarta-feira, o acontecido foi tido na terça, então aquela mulher estava muito abalada… [chorando] ninguém merece passar por aquilo, não… me algemaram, me botaram dentro do carro, meus amigos todos no portão, meu pai, e eu sem poder falar, sem poder explicar o que estava acontecendo, meu pai vendo… eles estão me levando e eu não sei, eles estão me acusando, eu não sei o que está acontecendo, [choro] desde ali eu não pude falar com meu pai, nem dar um abraço nele, entendeu? Mas ali eu ainda estava tranquilo, sabendo que não fui eu, pensando, poxa, e o grito dos inocentes eu vou chegar lá, vou fazer o procedimento que tem que fazer, eu vou ser liberado… Quando eu olhei pro meu lado, tinha um moreninho, dois branquinhos, e chamaram aquelas mulheres para fazer o reconhecimento… […] cara, eu fui jogado numa cela com 85 pessoas. Foram momentos horríveis, entendeu? Porque no momento em que eu cheguei lá, pela repercussão do caso, eu cheguei lá naquele lugar como um monstro. Mas eu não julgo a família daquele rapaz, eu jamais julgaria, eu só tinha como suportar aquilo tudo calado” [1].

Iniciamos nossas linhas com o olhar do Leonardo, que foi preso injustamente e mostrou sua indignação em relação ao sistema de Justiça Criminal [2]. A escolha desse relato não é aleatória, pois seus sentimentos e pensamentos refletem o que muitos indiciados e acusados vivenciam, provocando o olhar atento de todos os setores da Justiça, em especial da defesa criminal. Nesse sentido, o vivenciado por Leonardo guarda íntima relação com o cotidiano dos processos criminais, sobretudo em razão da incidência constante da Súmula 70 do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJ-RJ).

Em 2003, o TJ-RJ editou a Súmula 70, cujo teor expressa que “o fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação”. A redação do enunciado quer nos dizer que a condenação, em um processo penal, poderá estar baseada unicamente em depoimentos de policiais. O que pretendemos alertar são as implicações ou violações desta assertiva, em nosso estado — e por todo o país —, ao longo de mais de 20 anos de sua aplicação.

Observando o cotidiano forense, é possível verificar que a maioria dos processos criminais decorre de prisão em flagrante, e essas prisões, de um modo geral, geram sentenças que, em regra, são de natureza condenatória. Nessa seara, um dos problemas que precisa ser enfrentado é a clara violação aos princípios do contraditório, da ampla defesa e da presunção de inocência, quando da aplicação da Súmula 70 do TJ-RJ, considerando que os mesmos agentes que efetivaram a prisão em flagrante acabam testemunhando sobre seus atos, havendo para esses testemunhos presunção de veracidade, alicerçada no argumento da fé pública.

Na prática, há uma real inversão do ônus da prova fundado em preceitos normativos equivocadamente interpretados e a observância do racismo estrutural entranhado no direito probatório, através da simplicidade na produção dos seus elementos, bem como na valoração das suas informações.

Contexto e debate

A súmula em debate foi aprovada por unanimidade pelo Órgão Especial do TJ-RJ, no ano de 2003, e publicada no início de 2004. Embora não estejam disponíveis muitos fundamentos sobre os debates que ensejaram o entendimento sumulado naquela época, sabe-se que o contexto envolvia a dificuldade de se indicar testemunhas do fato, notadamente, quanto ao tráfico de entorpecentes, sugerindo, portanto, a consideração do testemunho do policial condutor do flagrante, cuja maior característica é a fé pública. Nesse sentido, a palavra de policiais acabou recebendo um acrítico sobrevalor probatório, em especial nas imputações de crimes de tráfico de drogas, roubo, homicídios, dentre outros.

Spacca

Preocupada com a recorrente e automática incidência da Súmula 70 do TJ-RJ nos processos criminais, gerando condenações muitas vezes irreflexivas e, portanto, injustas, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro requereu, em 2018, junto ao Centro de Estudos e Debates do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, o cancelamento da súmula ou, subsidiariamente, a sua revisão. Após o decurso de seis anos, o procedimento administrativo será submetido à avaliação do Órgão Especial.

A vigência da Súmula 70 do TJ-RJ, assim, provoca um necessário e, ao mesmo tempo, problemático debate para além do estado da sua edição, pois se tem, de um lado, a credibilidade acrítica da palavra de agentes policiais e, de outro lado, a descrença sobre as palavras de pessoas do local onde os fatos supostamente ocorreram e das próprias pessoas investigadas ou processadas.

Aqueles que sustentam a manutenção do enunciado argumentam que a descrença na palavra dos agentes traz insegurança jurídica e desconfiança da segurança pública, podendo levar a um número indeterminado de absolvições. Por outro lado, não se pode conceber, em um processo penal democrático, a formação de níveis hierárquicos sobre o valor da complexa e, ao mesmo tempo sensível, prova testemunhal e, ainda, ruptura com os princípios constitucionais que caracterizam o grau de civilidade nas tomadas de decisão, tais como presunção de inocência, contraditório e ampla defesa. Eis a problemática!

Discrepância

Em muitos casos, os policiais que efetuam a prisão em flagrante vêm a confirmar suas ações [3], através de suas narrativas em juízo, e, posteriormente, advém a sentença condenatória, sob o argumento de que a prova produzida é sólida, diante dos testemunhos dos agentes. Essa situação ocorre ainda que a defesa traga ao processo elementos probatórios que produzam informações contrárias ou alternativas à imputação, ou, ainda, que a pessoa acusada negue, de forma veemente, a hipótese acusatória.

Nesse sentido, o que é observado na prática é uma ruptura com a garantia da presunção de inocência em seu viés probatório: direcionamento acrítico das informações trazidas pela narrativa policial — pela presunção de veracidade nas suas narrativas — e, consequentemente, um filtro crítico constante com os elementos de prova produzido pela defesa — caracterizado pela presunção de interesse e inveracidade dos seus relatos. No momento valorativo de todo o resultado probatório, há verdadeira discrepância na balança e inversão do ônus da prova.

Como já advertiu Nicolitti e Barilli, “por mais que se trate de depoimento de agentes públicos, a presunção de veracidade e legitimidade sucumbe diante da presunção de inocência, que exige, mais do que um atributo funcional genérico, uma comprovação suficiente para que o fato seja considerado provado” [4].

Não se torna despiciendo ratificar que “um dos critérios necessários para aferir qualquer grau de culpa em relação ao acusado diz respeito ao reconhecimento do estado de inocência como principal parâmetro destinado à avaliação e formação de um Estado preocupado com a proteção de inocentes e, consequentemente, caracterizado não apenas como primeiro critério reitor do conteúdo e da estrutura do processo penal mas como parâmetro de civilização” [5].

A maior preocupação, assim, é a interpretação que vem sendo realizada por ocasião da aplicação da súmula, de forma mecânica e irrefletida, no sentido de conferir presunção de veracidade aos depoimentos prestados por autoridades policiais e seus agentes [6], e, em contrapartida, presunção de falsidade à palavra do indivíduo que ocupa o banco dos réus.

O problema é que essa máxima não pode figurar generalizada e, na Justiça fluminense, sumulada. São máximas com alto grau de generalização, destituídas de um método crítico sobre as fontes de prova, fundadas apenas no senso comum equivocado que fazem lembrar o sistema de prova legal, em que bastavam duas testemunhas presenciais e concordantes para a confirmação dos fatos imputados.

Nas palavras de Sousa Mendes, “se as regras de experiência formuladas pelo próprio julgador fossem consideradas só por si determinantes para a prova dos factos, então acabariam funcionando da mesma maneira que as antigas fórmulas do sistema da prova legal, por isso mesmo que, tanto aquelas quanto estas prevaleceriam assim sobre o conhecimento dos factos” [7].

Olhar racial

Toda esta situação é, também, permeada pela seletividade penal, sobretudo quando analisamos o perfil de nosso sistema carcerário, bem como pesquisas que adentram na avaliação das abordagens policiais. Em assim sendo, a temática aqui tratada não pode ser estudada sem o necessário olhar racial, pois sabemos que a população carcerária é majoritariamente formada por pessoas negras. Nesse sentido, sabe-se que o percentual de pessoas negras presas vem aumentando de maneira significativa nos últimos anos, o que merece uma análise mais cirúrgica sobre os resultados da valoração das provas testemunhais no sistema de justiça criminal.

Esse será o objeto da nossa análise na próxima semana, que surte efeito direto na acrítica aplicação da Súmula 70 do TJ-RJ.

 


[1] Este texto é mencionado na Obra Rebelião, em artigo de CARINHANHA, Ana Míria dos S. C. “GET THE NIGGER” E O GRITO DOS INOCENTES: A RAÇA ENQUANTO DISPOSITIVO DE REGULAÇÃO JURÍDICO-PENAL. FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro; PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. “Rebelião”. Brasília: Brabo Negro, Nirema, 2020.

[2] ‘Não tenho mágoa de ninguém’, diz jovem que foi preso injustamente. Fantástico, 27/01/2019. Disponível em: <https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2019/01/27/nao-tenho-magoa-de-ninguem-diz-jovem-que-foi-preso-injustamente.ghtml

[3] “Na verdade, se tivermos que analisar friamente o peso dos depoimentos dos policiais em relação a suas ocorrências, tenderíamos a dizer que eles gozam de certa parcialidade, visto que é presumível que um profissional qualquer seja minimamente interessado no resultado prático de seu trabalho.” NICOLITTI, André e BARILLI, Raphael. Standards de prova no Direito – debate sobre a súmula 70 do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. In Boletim do IBCCRIM, Ano 26, n. 302, jan. 2018, p. 8.

[4] NICOLITTI e BARILLI. Standards de prova no Direito, p. 8.

[5] SAMPAIO, Denis. A Valoração da Prova Penal. O problema do livre convencimento e a necessidade de fixação do método de constatação probatório como viável controle decisório.  1ª. ed. Florianópolis: Emais, 2022, p. 399.

[6] Pela observância do espantoso número de condenação de inocentes nos EUA com base, em parte, por depoimentos de policiais e peritos faltosos com a verdade, Thaman aponta que “esses velhos pressupostos de integridade oficial são equivocados”. THAMAN, Stephen C.Reanchoring Evidence Law to Formal Rules: A Step toward Protecting the Innocente from Conviction for Capital Crimes? In: Visions of Justice. Liber Amicorum Mirjan Damaska. Bruce Ackerman, Kai Ambos and Hrvejo Sikiric (ed.). Berlim: Duncker & Humblot, 2016, p. 381.

[7] MENDES, Paulo de Sousa. A Prova Penal e as Regras de Experiência. In: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias. Vol. III, Org. Manual da Costa Andrade, Maria João Antunes e Susana Aires de Souza. Coimbra: Universidade de Coimbra – BFDUC (Studia Ivuridica 100)/Coimbra Editora, 2010, p. 1001.

Autores

  • é defensor público, titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa, mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ, investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa, membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ, membro Honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros, professor de Processo Penal e autor de livros e artigos .

  • é defensora pública do estado do Rio de Janeiro; atual coordenadora de Defesa Criminal da Defensoria Pública do Rio de Janeiro; mestre em Direito; especialista em Relações Étnico-Raciais; professora de Direito Penal da Fundação-Escola da Defensoria Pública do estado do Rio de Janeiro.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!