Prática Trabalhista

A nova lei do trabalho por aplicativos: avanços ou retrocessos?

Autores

  • Ricardo Calcini

    é professor advogado parecerista e consultor trabalhista. Atuação estratégica e especializada nos Tribunais (TRTs TST e STF). Coordenador trabalhista da Editora Mizuno. Membro do Comitê Técnico da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. Membro e Pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social da Universidade de São Paulo (Getrab-USP) do Gedtrab-FDRP/USP e da Cielo Laboral.

  • Leandro Bocchi de Moraes

    é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito (EPD) pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) pós-graduado em Diretos Humanos e Governança Econômica pela Universidade de Castilla-La Mancha pós-graduando em Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos (IGC/Ius Gentium Coninbrigae) da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra membro da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista da OAB-SP auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô e pesquisador do núcleo O Trabalho Além do Direito do Trabalho da Universidade de São Paulo (NTADT/USP).

7 de março de 2024, 8h00

Não há dúvidas de que a temática envolvendo o labor executado por trabalhadores via aplicativos é extremamente atual e bastante sensível. Aliás, em janeiro de 2023, foram abordadas nesta coluna justamente as decisões da época proferidas pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST) quanto à problemática envolvendo o reconhecimento do vínculo de emprego entre os motoristas e a plataforma Uber [1].

Dados estatísticos

Spacca

De acordo com uma pesquisa do IBGE [2], 77% das pessoas que se utilizam das plataformas como meio de sobrevivência e/ou para obter maior fonte de renda trabalham por conta própria, sendo que desse percentual 57,9% (equivalente a 862 mil pessoas) se encontram na região Sudeste do Brasil. Além disso, dentre 1,5 milhão de pessoas que prestam serviços intermediados por essas plataformas digitais, os aplicativos de transportes lideram o ranking com aproximadamente 704 mil pessoas.

Outro dado interessante é que o perfil de tais trabalhadores está mais concentrado no nível intermediário de escolaridade, em especial no nível médio completo ou superior incompleto (61,3%) [3]. Aliás, o grupo entre 25 e 39 anos correspondeu a quase metade das pessoas que obtêm renda pela via das plataformas digitais, 48,4% [4].

Projeto de Lei Complementar

No último dia 4 de março, o presidente da República assinou a proposta de Projeto de Lei Complementar (PLC) para dispor sobre a nova

relação de trabalho intermediado por empresas operadoras de aplicativos de transporte remunerado privado individual de passageiros em veículos automotores de quatro rodas e estabelece mecanismos de inclusão previdenciária e outros direitos para melhoria das condições de trabalho[5].

A proposta foi apresentada ao Congresso e, doravante, passará pela avaliação do Senado Federal e da Câmara dos Deputados para fins de debate e futura aprovação, podendo, naturalmente, sofrer eventuais modificações. E caso o PLC seja aprovado, entrará em vigor após 90 dias.

À vista disso, cabe esclarecer que o PLC assinado pelo presidente Lula resulta de uma deliberação no Grupo de Trabalho Tripartite, criado em maio de 2023 [6]. Importante relembrar, a propósito, as centrais sindicais que participaram do Grupo Tripartite: Central dos Sindicatos Brasileiros (CSB), Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), Central Única dos Trabalhadores (CUT), Força Sindical (FS), Nova Central Sindical de Trabalhadores (NCST) e a União Geral dos Trabalhadores (UGT) [7].

Por certo, em razão das inúmeras controvérsias e debates sobre esta nova questão, o tema foi indicado por você, leitor(a), para o artigo da semana na coluna Prática Trabalhista, desta ConJur [8], razão pela qual agradecemos o contato.

Análise da uberização à luz do STF

De início, impende destacar que não obstante as novas formas de trabalho advindas com as inovações tecnológicas, até o presente momento não existia uma regulamentação específica acerca da matéria em nosso país.

Spacca

Entrementes, no mesmo dia em que houve a assinatura do PLC pela Presidência da República, a empresa Uber pleiteou à Suprema Corte a suspensão nacional dos processos em trâmite em todas as instâncias do Poder Judiciário Trabalhista em que se discute a problemática do pretenso vínculo de emprego entre motoristas e a plataforma. Afinal, é sabido que o STF decidiu pela repercussão geral do tema em torno da existência ou não de liame empregatício entre trabalhadores via aplicativos e as plataformas [9].

Registre-se que a empresa destacou em seu pedido a informação da Procuradoria-Geral da República (PGR), segundo a qual há mais de 17 mil processos em andamento sobre a mesma questão apresentados na Justiça do Trabalho até o mês de maio de 2023. Ainda, foram incluídos dados da Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec) que citam a existência de exatas 12.192 reclamatórias trabalhistas [10].

Se, de um lado, o STF irá se debruçar sobre a existência ou não do vínculo de emprego eventualmente existente entre motoristas/entregadores e as plataformas; lado outro, o texto da proposta do Projeto de Lei Complementar deixa claro que nesta relação não haverá, como regra, vínculo de emprego, sendo indevidos os direitos daí decorrentes.

Proposta do governo

De acordo com o texto do PLC, o trabalhador que prestar este serviço via aplicativo será considerado trabalhador autônomo por plataforma.

Nesse sentido, para que haja o enquadramento nesta nova categoria profissional diferenciada que passa a ser criada, pressupõem-se os seguintes requisitos:

Presidente Lula assina projeto que regula atividade de motoristas de aplicativo

i) a inexistência de qualquer relação de exclusividade entre o trabalhador e a empresa, ficando assegurado o direito de prestar serviço por intermédio de mais de uma empresa que opera aplicativo de transporte remunerado privado individual de passageiros no mesmo período;
e ii) a inexistência de quaisquer exigências relativas a tempo mínimo à disposição e de habitualidade na prestação do serviço, o que será objeto inclusive de fiscalização.

Noutro giro, no denominado “pacote de direitos” para os trabalhadores via aplicativos, o governo federal propôs as seguintes garantias [11]:

i) período máximo de conexão do trabalhador a uma mesma plataforma não poderá ultrapassar 12 horas diárias;
ii) remuneração mínima proporcional ao salário-mínimo, fixada em R$ 32,10 por hora trabalhada, sendo que R$ 8,03 refere-se a retribuição pelos serviços prestados e R$ 24,07 de ressarcimento pelos custos do trabalhador na prestação do serviço;
iii) pagamento de contribuições previdenciárias dos motoristas e das empresas de aplicativos equivalente a 7,5% (motoristas) e a 20% (empresas) do salário de contribuição;
e iv) as mulheres trabalhadoras terão acesso aos direitos previdenciários mínimos previstos para as seguradas do INSS.

Outrossim, a plataforma será obrigada a apresentar, mensalmente, ao motorista/entregador, um relatório indicando todas as corridas, assim como tudo o que aconteceu naquela relação de trabalho durante esse período.

Lição da especialista

Por certo, esta nova legislação irá trazer inúmeros debates tendo em vista a própria essência e raízes históricos do Direito do Trabalho, sendo oportunos os ensinamentos da Professora e Pesquisadora Viviane Vidigal [12]:

Em Moraes Filho (2014) e Catarino (1982) aprendemos que a existência do Direito do Trabalho é explicada a partir da necessidade histórica de proteger o ser humano que, para sobreviver na sociedade do capital, precisa “vender” sua força de trabalho (SOUTO MAIOR; SEVERO, 2017).

A proteção é a própria razão da existência de regras próprias e a função do Direito do Trabalho no contexto capitalista.

Em uma sociedade fundada na troca entre capital e trabalho, na qual o trabalho não é apenas um meio de realização do ser humano, mas principalmente uma forma de subsistência física do trabalhador — sem uma proteção minimamente adequada — será transformado em coisa (mercadoria) durante o tempo de trabalho (SOUTO MAIOR, 2019)

(…). Se novas formas de trabalho pedem regulamentações que as abarquem e se as mudanças demonstram, por vezes, necessárias, demanda-se uma flexibilidade do Direito do Trabalho. Todavia, como leciona Marco Tulio Viana, o princípio protetivo que lhe é estruturante, deve ser rígido.

Conclusão

Não obstante a assinatura da proposta do Projeto de Lei Complementar pelo presidente da República, certo é que a sua discussão e deliberação final ficará a cargo do Parlamento, que, no exercício do seu papel institucional de criar as normas em nosso país, viabilizará a participação da sociedade civil, entidades de classe, associações, sindicatos, empresas e, sobretudo, de especialistas no assunto, tornando mais plural e democrática a aprovação da futura legislação que servirá, inclusive, de modelo para os demais países.

E até que isso aconteça, espera-se que a Suprema Corte realmente paralise nacionalmente o andamento de todas as reclamatórias trabalhistas em curso hoje perante o Poder Judiciário, afinal, eventual decisão a respeito do vínculo de emprego pelo STF, por certo contaminará o debate em torno da aprovação do PLC que deve, repita-se, ser restrito ao Poder Legislativo.

 

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[1] Disponível em https://www.conjur.com.br/2023-jan-26/pratica-trabalhista-tst-uber-motoristas-terao-direitos-trabalhistas-2023/. Acesso em 5.3.2024.

[2] Disponível em https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2023/10/25/renda-dos-trabalhadores-de-plataformas.htm. Acesso em 5.3.2024

[3] Disponível em https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/38160-em-2022-1-5-milhao-de-pessoas-trabalharam-por-meio-de-aplicativos-de-servicos-no-pais. Acesso em 5.3.2024.

[4][4] Disponível em https://olhardigital.com.br/2023/10/25/pro/brasil-tem-21-milhoes-de-trabalhadores-de-aplicativo-revela-ibge/. Acesso em 5.3.2024.

[5] Disponível em https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/noticias/2024/03/lula-pl-dos-motoristas-de-aplicativos-e-201cmarco-no-mundo-do-trabalho201d. Acesso em 5.3.2024.

[6] Disponível em https://www.brasil247.com/economia/nao-podemos-voltar-a-epoca-em-que-so-havia-deveres-e-nao-direitos-diz-lula-ao-assinar-proposta-para-motoristas-de-aplicativos. Acesso em 5.3.2024.

[7] Disponível em https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202403/proposta-de-projeto-de-lei-cria-pacote-de-direitos-para-motoristas-de-aplicativos. Acesso em 5.3.2024.

[8] Se você deseja que algum tema em especial seja objeto de análise pela Coluna Prática Trabalhista da ConJur, entre em contato diretamente com os colunistas e traga sua sugestão para a próxima semana.

[9]Disponível em https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/03/04/uber-pede-suspensao-de-processos-sobre-vinculo-de-trabalhadores-apos-stf-determinar-repercussao-geral-para-o-tema.ghtml. Acesso em 5.3.2024.

[10] Disponível em https://bahiaeconomica.com.br/wp/2024/03/04/uber-solicita-suspensao-de-processos-sobre-vinculo-de-trabalhadores-apos-stf-determinar-repercussao-geral-para-o-tema/. Acesso em 5.3.2024.

[11] Disponível em  https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/noticias/2024/03/governo-federal-propoe-pl-que-cria-pacote-de-direitos-para-motoristas-de-aplicativos. Acesso em 5.3.2024.

[12] Capitalismo de plataforma: as facetas e as falácias – Leme-SP: Mizuno, 2023, página 41 e 42.

Autores

  • é professor, advogado, parecerista e consultor trabalhista, sócio fundador de Calcini Advogados, com atuação estratégica e especializada nos tribunais (TRTs, TST e STF), docente da pós-graduação em Direito do Trabalho do Insper, coordenador trabalhista da Editora Mizuno, membro do comitê técnico da revista Síntese Trabalhista e Previdenciária, membro e pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social, da Universidade de São Paulo (Getrab-USP), do Gedtrab-FDRP/USP e da Cielo Laboral.

  • é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito, pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela PUC-SP, pós-graduando em Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, membro da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista da OAB-SP, auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô e pesquisador do núcleo O Trabalho Além do Direito do Trabalho, da USP.

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