Busca do consenso

Arbitragem que envolve administração pública avança com processos bilionários

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29 de janeiro de 2024, 8h51

Em junho do ano passado, um tribunal arbitral de Brasília manteve uma sentença favorável à Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) em uma disputa bilionária que envolve a concessionária Aeroportos Brasil-Viracopos, vencedora de licitação para administrar o aeroporto homônimo, em Campinas (SP).

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Grupo de arbitragem da AGU atua em processos cujos valores ultrapassam meio trilhão de reais

Essa decisão envolve a quantia de R$ 372 milhões — o processo, ao todo, chega a R$ 2,5 bilhões. A posição dos árbitros, favorável à autarquia, foi obtida graças ao trabalho de uma equipe especializada em arbiragem da Advocacia-Geral da União (AGU).

A disputa entre Anac e concessionária é um bom exemplo da evolução das arbitragens que envolvem a União — o que inclui empresas estatais, autarquias e outros órgãos federais. Os procedimentos arbitrais que têm a administração pública (federal, estadual ou municipal) como parte, por enquanto, representam apenas 10,7% do que chega às câmaras brasileiras, conforme dados do estudo “Arbitragem em Números e Valores” — mas lideram em valores.

Somente nas 23 disputas arbitrais que envolvem as agências reguladoras federais, o montante ultrapassa R$ 500 bilhões. Nessas arbitragens, as autarquias são representadas pela Equipe Nacional Especializada em Arbitragens (Enarb) da Procuradoria-Geral Federal.

Esse mecanismo de solução de conflitos tem sido eficiente para os órgãos públicos, mas há problemas quanto à perícia, à disponibilidade de árbitros que não tenham conflitos de interesses e ao deslocamento de servidores federais para atuar na defesa técnica da União e das agências reguladoras, segundo os especialistas no assunto entrevistados pela revista eletrônica Consultor Jurídico.

“É benéfico para a administração pública ter a arbitragem como mecanismo para solução de casos complexos, e aqui complexo significa sensível do ponto de vista do interesse público, como gestão de aeroporto e linha de transmissão de energia”, diz Nilo Sérgio Gaião Santos, procurador da AGU e coordenador da Equipe Nacional de Arbitragens da Procuradoria-Geral Federal.

“E, em termos qualitativos, dificilmente eu olho uma sentença arbitral e penso: ‘Não ficou legal’. No Judiciário temos mais surpresas negativas.”

Para dar conta do volume de arbitragens de Direito Público, que ganharam força após sua regulamentação, em 2015, a equipe liderada por Santos selecionou profissionais que já atuavam na área nas agências reguladoras para formar um grupo especializado. Apesar de serem vantajosas para o Estado, diz o coordenador, as arbitragens demandam deslocamento de servidores por causa do tamanho e da complexidade dos processos.

“É um problema porque, se por um lado estamos adotando a arbitragem em uma escala cada vez maior, por outro os bons servidores estão sendo deslocados de suas funções regulatórias para fazer essa atividade de defesa. Em casos da ANP e da ANTT, que são as mais demandadas, é muito evidente um certo prejuízo que o aumento da demanda da arbitragem gera para a atividade regulatória”, diz Santos.

11 processos
Em outro flanco, o núcleo especializado em arbitragem da AGU (NEA/AGU) trabalha atualmente em 11 processos arbitrais. Nos últimos cinco anos, desde a fundação do grupo, as ações em que ele atua movimentaram R$ 184 bilhões, entre perdas evitadas para a União e vitórias que garantiram mais dinheiro aos cofres públicos. Hoje, conforme os dados mais atualizados, sete dos 11 processos têm valores bilionários.

As informações disponíveis mostram que o crescimento das arbitragens envolvendo a administração pública foi puxado pelo setor de infraestrutura e pelo societário, desde 2018. Esse crescimento coincide com o período em que os governos implementaram políticas de privatizações e concessões. Em 2020 e 2021, foram 29 e 27 novos casos desse tipo de arbitragem, respectivamente; em 2022, o número passou para 38. A proporção — quase 11% do total — é a maior dos últimos cinco anos.

Em 2023, a AGU passou um pente fino nos processos de arbitragem e constatou que os órgãos públicos federais assinaram 542 contratos com cláusulas de resolução de controvérsias, sendo que 216 (40%) deles são por meio de convenções de arbitragem. Desde dezembro, o núcleo de arbitragens da AGU tem feito um treinamento para os órgãos da administração pública federal, tendo em vista o mapeamento feito.

As arbitragens também acontecem em contratos com municípios e estados, mas em menor escala, tendo em vista que é um processo custoso para as empresas. Assim como na administração federal, em geral são casos que envolvem concessões e parcerias público-privadas.

“Em termos de valor, certamente as arbitragens no âmbito federal correspondem à grande maioria do total. Há também um problema de que os municípios têm baixa capacitação para tocar arbitragens, ponto que já foi resolvido na União e nos estados maiores”, diz Floriano de Azevedo Marques, sócio-fundador do escritório Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques Sociedade de Advogados e ministro do Tribunal Superior Eleitoral.

Famosos e gargalos
Há casos emblemáticos tramitando nos tribunais arbitrais, incluindo disputas bilionárias com as empresas Claro, Telefônica (Vivo) e Oi, além de um processo em que acionistas minoritários da Petrobras buscaram uma arbitragem, por meio da bolsa de valores B3, para responsabilizar a União pelo descumprimento de seus deveres como controladora da estatal, e, assim, pleitear indenização por prejuízos causados pela “lava jato”. Nesse caso, a AGU conseguiu no Tribunal Federal Regional da 3ª Região (TRF-3) que a União fosse excluída da arbitragem, o que a isentou de pagar mais de R$ 160 bilhões.

Um dos pontos, no entanto, que têm sido identificados como problemáticos na área é a escassez de árbitros de excelência que não tenham conflito de interesses com a administração pública. Isso porque muitos dos árbitros e peritos já atuaram em áreas como as procuradorias federais, ou advogaram para empresas públicas, por exemplo, o que impossibilita sua participação em arbitragens.

Perícia e falta de qualificação são gargalos na arbitragem no Direito Público

“O mercado é muito restrito e, no final das contas, quando vamos indicar um perito, são várias tentativas seguidas. Já houve casos em que foram indicadas quatro ou cinco equipes peritas diferentes e sempre na revelação você acaba se deparando com problemas de impedimento. Ao menos é um sinal de que a revelação está sendo feita”, diz Paula Butti, coordenadora do Núcleo Especializado em Arbitragem da AGU.

Segundo Paula, a perícia tem influenciado diretamente no tempo de duração das arbitragens, que tendem a ser mais céleres do que os julgamentos no Poder Judiciário. Quando há necessidade de perícia técnica, os casos duram cinco anos; quando não há, o tempo diminui para dois.

Outro ponto muito debatido é o próprio conceito de arbitragem que envolve órgãos do Estado. Na administração pública, o mecanismo tem características próprias, como a obrigação de publicidade ao contrário do que acontece no setor privado, cuja regra geral é o sigilo. Há um debate sobre se o litígio em si tem relação com o interesse coletivo da sociedade ou se é meramente patrimonial.

“Nos termos do art. 1º, §1º, da Lei de Arbitragem, apenas os conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis podem ser resolvidos pela arbitragem, o que, para a administração pública, pode ficar restrito ao interesse público secundário, isto é, ao interesse puramente patrimonial do Estado, enquanto pessoa jurídica, e não com o interesse da coletividade em si”, diz Gustavo Mizrahi, sócio do Vieites Mizrahi Rei Advogados.

TCU entra na roda
Na esteira do crescimento das arbitragens que envolvem órgãos públicos, o Tribunal de Contas da União criou a Secretaria de Controle Externo de Solução Consensual e Prevenção de Conflitos (SecexConsenso), em dezembro de 2022. O órgão adotou a solução consensual de litígios como prioridade para 2023. Os casos que envolvem arbitragem podem ser levados à Secex com a anuência de todas as partes, e um consenso só é atingido se os dois lados aceitarem o que foi estabelecido pelo TCU, mesmo que com ressalvas.

Seja pelas recentes vitórias da União nos processos bilionários de arbitragem, seja pelo alto custo do procedimento, a ConJur escutou de uma fonte que há uma tendência recente de busca da Secex por parte de empresas que têm cláusulas de arbitragem em contratos com a administração federal.

No ano passado, conforme dados do TCU, 21 processos foram levados à Secex, sendo que cinco deles já tiveram decisões do tribunal e dois foram encerrados. Os litígios que envolvem energia, infraestrutura e telefonia dominam a lista. E 13 deles ainda não têm relator definido na corte e constam como “solicitações de resolução consensual”.

O movimento de levar ao TCU as pautas que poderiam correr em tribunais arbitrais pode ser exemplificado com um antigo e célebre caso, que envolve uma disputa de R$ 10 bilhões entre Anatel e Telefônica (Vivo).

A ação tem relação com a concessão de telefonia que foi assinada em 1998. A empresa alega que, passadas mais de duas décadas, há desequilíbrio econômico-financeiro nos contratos e que a situação é insustentável, tendo em vista uma série de fatores econômicos e tecnológicos. Já a Anatel sustenta que a empresa deve assumir a responsabilidade sozinha e cobra indenização por serviços que deveriam ter sido prestados pela empresa (instalação de Postos de Serviço Multifacilidades e obrigações no Plano Geral de Metas para a Universalização do Serviço Telefônico) e acabaram não sendo cumpridos.

Em 8 de dezembro passado, a Telefônica entrou com pedido de solução consensual entre as partes no TCU, que está em andamento.

As razões dessa movimentação das empresas, especula-se, têm relação com o tempo, já que durante as arbitragens os contratos ficam interditados, e com a alta taxa de vitórias da administração pública nos tribunais arbitrais.”O Estado obteve muito mais vitórias do que derrotas desde 2015, e a parte privada tem pensado duas vezes antes de entrar em um litígio caro e complexo contra a administração pública”, diz a fonte à ConJur.

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