Paradoxo da Corte

20 anos depois: o diálogo do Dr. Theotonio com a jurisprudência continua vivo!

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

26 de janeiro de 2024, 8h00

Há exatos dez anos escrevi um artigo em homenagem ao saudoso advogado Theotonio Negrão. Hoje, 20 anos depois de seu passamento, reproduzo com muito carinho aquele escrito com algumas pequenas alterações, porque o seu fundamental diálogo com a jurisprudência continua vivíssimo!

Instado, por força de pesquisa acadêmica, a examinar a doutrina de Francesco Galgano, renomado privatista da Universidade de Bolonha e autor da mais completa obra que já foi escrita sobre negócio jurídico, deparei-me com o título de um artigo que me chamou a atenção: Il contraddittorio processuale è ora nella Costituzione (Contratto e impresa, v. 3, Padova, Cedam, 2000, pág. 1.081/1.085).

Galgano, em princípio, preocupara-se com a nova redação do artigo 111 da Constituição italiana, introduzida em 1999, que passou a contemplar, de modo expresso e incisivo, a garantia do contraditório efetivo em toda espécie de processo contencioso.

Imaginei que se tratava, até mesmo pelas dimensões do escrito (apenas cinco páginas), de um simples comentário, de um jurista teórico, sobre tema de Direito Processual Constitucional.

No entanto, atraído pela curiosidade, fiquei realmente surpreso com a indagação preambular formulada pelo referido autor, qual seja, onde é que se encontra a legitimação do juiz para proferir o julgamento?

Respondendo que a investidura do juiz provém da lei, mas a legitimação da sentença decorre da concreta participação e defesa dos litigantes, Galgano destaca ser produtiva a atuação profissional do advogado.

Costuma-se indicar os sujeitos da argumentação jurídica com a fórmula “doutrina e jurisprudência”. Mas a literatura que o juiz utiliza ao proferir a sentença é, no mais das vezes, a doutrina individuada, selecionada e ilustrada pelo advogado, cuja obra passa despercebida. Mais: costuma-se afirmar que são a doutrina e a jurisprudência as fontes responsáveis pelas inovações no campo do Direito.

Spacca

Contudo, quantas vezes essas inovações, cuja paternidade é atribuída aos tribunais, foram sugeridas nos arrazoados dos advogados. Assim, sob esse aspecto, que não é de secundária importância – aduz o jurista peninsular –, a contribuição criativa do advogado à administração da justiça merece ser certificada e valorizada…

Esforço conjunto
E, assim, nesse contexto, vem sobrelevado o fundamental papel do advogado na construção da jurisprudência. Longe de constituir obra exclusiva do órgão jurisdicional, assevera Galgano, à luz da experiência prática do Direito, que a produção e constante evolução dos precedentes judiciais é fruto do esforço conjunto dos juízes e dos advogados.

A estes, de um modo geral, cabe a criação e o aprimoramento das teses jurídicas que são diuturnamente submetidas à apreciação daqueles. Ato contínuo, a orientação adotada pelas cortes de Justiça presta-se, a seu turno, a subsidiar os arrazoados dos defensores dos interesses em jogo, que passam a invocar os posicionamentos pretorianos já consolidados, e assim por diante.

Desse modo, sobretudo nos países de Direito codificado, estabelece-se um diálogo perene entre os operadores do Direito, na consecução de um fim perseguido por todos, vale dizer, a interpretação e aplicação do Direito ao caso concreto.

O método “theotoniano”
Não é preciso salientar que a leitura do enxuto, mas significativo, ensaio de Galgano, provocou-me a lembrança da relevância indubitável da contribuição de Theotonio Negrão, falecido há exatos 20 anos e a quem volto a render homenagem reproduzindo o presente escrito.

Importa observar, a propósito, que o Dr. Theotonio, em 5 de abril 1955, foi nomeado pelo então presidente da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP), Américo Marco Antonio, membro de uma comissão, integrada também pelos advogados Carlos Afonso do Amaral e Sérgio Marques da Cruz, visando a “imprimir nova orientação ao boletim da Associação, de modo a torná-lo de maior utilidade prática aos associados” (o primeiro número do boletim é datado de maio de 1945, editado sob a responsabilidade do dr. José Maria D’Avila, então diretor-secretário da AASP. Para mais detalhes, v. meu escrito Uma página da história da AASP: as origens do “boletim”, Revista do Advogado da AASP em homenagem a Luiz Geraldo C. Ferrari, n. 55, julho/99, pág. 57 ss).

Estando a AASP instalada em nova sede, na Praça da Sé, nº 385, 6º andar, a “nova orientação” que se pretendia imprimir foi efetivada apenas em outubro de 1958.

Sob forma de comunicado semanal, Theotonio Negrão ficou responsável pela elaboração do periódico da AASP. Com estrutura sóbria, simples e impessoal, predicados que emergiam, aliás, da personalidade de seu ilustre idealizador, aquela “ferramenta” de trabalho trazia o essencial para tornar menos árdua a missão do advogado.

A partir do nº 19, publicado em 28 de fevereiro de 1959, época em que Theotonio Negrão fora eleito presidente da AASP, o comunicado volta a receber a antiga denominação de boletim.

Como a pesquisa semanal de Theotonio Negrão era alentada, muito material recolhido dos repertórios de jurisprudência, a despeito do interesse para o advogado, não tinha espaço para ser publicado no boletim.

Não obstante – como certa vez me confidenciou o Dr. Theotonio –, passou ele a ter o hábito de arquivar em fichas as respectivas ementas e pequenos trechos de acórdãos, inclusive com algumas anotações pessoais.

Estava aí instituído o método “theotoniano”, que nada tem a ver com a mera recolha de julgados, mas, sim, com a seleção criteriosa e paciente da jurisprudência. É evidente que o êxito dessa hercúlea tarefa conta em muito com o talento de seu factor…

Com o fluir do tempo, revelando invulgar desprendimento, Theotonio Negrão imaginou que seu arquivo pudesse ser útil aos operadores do Direito, em especial, aos advogados.

Bússola do Direito
Foi assim que a metodologia, toda particular, desenvolvida pelo Dr. Theotonio, veio a ser compartilhada pelos seus pares, com a primeira edição, tirada em abril de 1974, do Código de Processo Civil e Legislação Processual em Vigor.

Fadada a estrondoso sucesso, a obra, como é curial, em sua 55ª edição nesse ano de 2024, estampada pela prestigiosa Editora Saraiva, descortina-se extremamente útil àqueles que se dedicam à prática do Direito.

O Código de Processo Civil do Dr. Theotonio constitui – nas palavras veementes de Luís Camargo Pinto de Carvalho – verdadeira bússola para o desempenho das múltiplas atividades ligadas ao Direito (Theotonio Negrão: evocando…, Informativo Iasp nº 61, março/abril de 2003, pág. 9).

É importante frisar que a precisa percepção de Galgano, antes aludida, delineia-se integralmente confirmada pelas vicissitudes que marcam o referido trabalho de Theotonio Negrão.

Realmente, verifica-se que dificilmente os arrazoados forenses, em matéria civil, deixam de invocar um precedente judicial catalogado pelo Dr. Theotonio. O mesmo ocorre com os acórdãos. Ademais, a opinião crítica do grande advogado, procurando iluminar a coletividade jurídica menos experiente acerca da melhor tese, continua auxiliando em muito o exercício profissional.

Raríssimas são as obras na literatura jurídica que estabelecem essa integração com a jurisprudência.

A master piece do Dr. Theotonio, ao lado do Código Civil, que têm recebido prestimosa atualização dos ilustres e estimados drs. José Roberto F. Gouvêa, Luis Guilherme A. Bondioli e João Francisco N. da Fonseca, ensejou e continua ensejando, 20 anos depois de sua morte, fecundo “diálogo” com a jurisprudência, em permanente tensão dialética, interagindo e formando um arcabouço de soluções, colocadas à disposição, indistintamente, de todos os operadores do direito…

A renovação metodológica que me parece mais significativa, considerados os propósitos de Theotonio Negrão, reside nas erupções da tópica, diante da necessidade, pressentida pelo experiente advogado, de colmatação de frequentes lacunas que irrompem na praxis forense.

Autores

  • é sócio do Tucci Advogados Associados, ex-presidente da AASP (Associação dos Advogados de São Paulo), professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

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