Opinião

Direito, relações raciais e democracia no Brasil contemporâneo

Autor

25 de abril de 2024, 20h42

Este artigo surge a partir de algumas reflexões realizadas no âmbito da minha pesquisa de pós-doutorado intitulada Educação Jurídica Antirracista e a Formação de Docentes e Pesquisadores em Direito e Relações Raciais: Uma Análise da Produção Acadêmica no Âmbito do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de São Paulo, Largo de São Francisco, de 1980 a 2021. A pesquisa está sendo financiada pela Prip USP, no âmbito do Edital nº 001/2023, que instituiu o Programa de Bolsas para Doutoras Negras e Doutores Negros.

Propomos o debate que aborde a relação existente entre “Direito, Relações Raciais e Democracia no Brasil Contemporâneo” no âmbito do Departamento de Direito do Estado, integrante de uma das Faculdades de Direito mais antigas do Brasil; com o apoio do programa de Pós- Graduação em Direito da USP, o mais antigo programa de pós-graduação em Direito em funcionamento ininterrupto no Brasil; e com o apoio Laboratório de Estudos Étnico-Raciais — Quilombo Oxé, conduzido pela professora doutora Eunice Aparecida de Jesus Prudente.

Uma das justificativas está relacionada com alguns fatos históricos que constituem a nossa formação social. Neste sentido, é importante ressaltar que após a declaração de Independência do Brasil surgem os primeiros esforços para a criação de cursos jurídicos no país. Este esforço já aparece na Assembleia Constituinte de 1823, convocada pelo então imperador. No ano de 1827, são instaladas as duas primeiras escolas de Direito do país para formar uma elite de juristas que pensasse as questões nacionais da recém-independente nação em Olinda e em São Paulo.

Além disso, em 2023, completamos o bicentenário da Assembleia Constituinte de 1823, com poucas reflexões sobre este acontecimento. E, neste ano de 2024, os 200 anos de constitucionalismo no Brasil, com a outorga da Constituição de 1824, que teve impactos importantes sobre os debates referentes ao papel do liberalismo e de um ensaio de democratização do país. E, ainda, neste ano de 2024, o fechamento da Década Internacional dos Afrodescendentes instituída pela Organização das Nações Unidas, no período de 2015-2024.

A necessidade de uma pedagogia politicamente engajada

Diante deste contexto, é importante lembramos que os cursos de Direito no país apresentam enquanto características fundantes o bacharelismo, o legalismo e o formalismo que foram utilizados para delinear instituições racistas, elitistas e fortemente hierarquizadas. Isto porque o Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão no ano de 1888 a partir de processos de mobilização abolicionista de escravos, livres e libertos e proibiu durante todo o período imperial que os escravos se matriculassem nas escolas e faculdades brasileiras.

Este resgate histórico é importante para que possamos refletir acerca das possibilidades e limites para proporcionar “justiça racial” no Brasil, tal como defendem Adilson Moreira, Philippe Almeida e Wallace Corbo no livro Manual de Educação Jurídica Antirracista, publicado no ano de 2022, depois de quase 400 anos de utilização de trabalho de escravizados indígenas e negros que gerou um déficit de cidadania, notadamente, em relação à população negra, conforme explicitei em artigo de minha autoria publicado em 2022, sob o título Educação Patrimonial Antirracista nos Cursos de Bacharelado em Direito: uma Prática Decolonial é Possível?. Neste sentido, a proposta de promover justiça racial a partir do sistema de justiça impõe a necessidade de uma pedagogia politicamente engajada nos cursos de graduação em Direito.

Dessa forma, nosso objetivo geral consiste em problematizar as relações existentes entre Direito, relações raciais e democracia no Brasil contemporâneo para estabelecer um debate sobre estes temas a partir dos olhares de juristas negras e negros de diferentes instituições de ensino jurídico do país.

Spacca

Isto porque o exercício do direito à educação sempre foi compreendido pelo movimento negro como um dos principais mecanismos de enfrentamento e superação do racismo no Brasil, conforme expôs Nilma Lino Gomes, no livro Movimento Negro Educador: Saberes Construídos nas Lutas por Emancipação, publicado no ano de 2017.

O pensamento social de juristas negras e negros como fundamento

E, ressaltamos, ainda, o papel fundamental da educação, que é um direito social previsto no artigo 6° da Constituição da República Federativa do Brasil e também está previsto nos artigos 205 a 214, na Seção I do Capítulo III do Título VIII, que dispõe acerca da Ordem Social no texto constitucional. Por ser direito de todos e dever do Estado, nos últimos anos muitos esforços têm sido realizados para garantir a sua fruição por parte de ativistas e profissionais da educação, não obstante os cortes orçamentários realizados no que se refere ao seu financiamento.

Diante disto, minha perspectiva no que se refere à democracia para a população negra brasileira tem por fundamento o pensamento social desenvolvido por intelectuais negras e negros e juristas negras e negros. Isto porque, advogado negro e abolicionista, Luiz Gama, ainda no século 19, apresentou propostas bastante inovadoras sobre o papel a ser desempenhado pela educação no processo de inclusão da população descendente de escravizados na ordem social que estava em disputa naquele momento histórico.

Ainda hoje, vivemos em constante disputa pela democratização do acesso à educação e continuidade das políticas públicas para a promoção da igualdade racial e ações afirmativas voltadas à população negra. O campo político está sempre sendo tensionado por grupos que são avessos à democracia e às instituições republicanas.

É necessário aprofundar o debate

Então, minha perspectiva sobre a democracia para as pessoas negras brasileiras é constituída por este contexto que, para alguns, seria considerado de “longa duração”, por outros, marcado por “acontecimentos” que possibilitam mudanças sociais ou, ainda, em outra perspectiva, pela “colonialidade” enquanto formas de entender as maneiras como o racismo opera no país.

A democracia não é uma forma fechada. É um campo de possibilidades abertas. E o Direito é um dos mecanismos mais importantes para a disputa política, na Modernidade. Ou, pós-modernidade, se prerirem. E o racismo constitutivo dos nossos tempos é o motor dessa disputa.

Diante destas considerações, afirmo que existe urgente necessidade de aprofundamento do debate sobre a relação existente entre Direito, relações raciais e democracia no Brasil contemporâneo. A urgência do tema para o âmbito jurídico pode ser atestada através da recente obtenção da posição de professor titular de Direito Eleitoral na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, obtida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, após aprovação aprovação em concursos público de provas e títulos.

A tese do ministro Alexandre de Moraes, intitulada Direito Eleitoral e o Novo Populismo Digital Extremista: Liberdade de Escolha do Eleitor e a Promoção da Democracia se inicia sob o argumento do papel historicamente restritivo da democracia no Ocidente e do papel da cidadania e do sufrágio universal para a sua ampliação, analisa a legislação de combate à desinformação, notícias fraudulentas e discursos de ódio e antidemocráticos e aborda o papel desempenhado pela Justiça Eleitoral no combate a essas violações de direitos e liberdades individuais e seus efeitos deletérios para a sociedade brasileira. Neste sentido, trata-se de tema clássico para o Direito, a Ciência Política e a Sociologia.

No âmbito jurídico, o tema adquire novas nuances a partir do processo de redemocratização do país, no contexto das lutas empreendidas por diferentes movimentos sociais rurais e urbanos, que se mobilizaram contra a ordem institucional, fundamentada em determinada perspectiva política e jurídica, instituída pela ditadura civil-militar instaurada a partir do golpe ocorrido no ano de 1964, que colocou os militares no poder com o apoio de segmentos considerados conservadores no Brasil.

Movimento negro e a democracia representativa no Brasil

É neste contexto que o debate sobre a cidadania negra ganha relevo através de diferentes narrativas por direitos elaboradas por representantes do movimento negro brasileiros em diferentes estados da federação naquele período. Importante momento de síntese das demandas políticas elaboradas pelo movimento negro brasileiro naquele momento é a “Convenção Nacional o Negro e a Constituinte”, realizada no ano de 1986.

Mas o fato é que, após a promulgação do atual texto constitucional, no dia 5 de outubro de 1988, ocorreram muitas modificações que impactaram o exercício democrático dos direitos previstos no novo pacto constitucional do Brasil, elaborado ao longo dos debates elaborados no âmbito da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-8 (ANC), na qual o movimento negro teve importantes participações, tal como destacam Natália Neris dos Santos, em sua dissertação de mestrado em Direito, Thula Rafaela de Oliveira Pires, na sua tese de doutorado em Direito e na minha tese de doutorado em Direito, ao destacar a participação das ativistas e intelectuais negras, Lélia Gonzalez e Helena Theodoro, na ANC.

Na atualidade, após quase 36 anos de promulgação do atual texto constitucional, as demandas políticas do movimento negro são mais incisivas no que se refere ao papel a ser desempenhado pela democracia representativa no Brasil, notadamente, no que se refere ao tema da representatividade, a ser garantida através de cotas nos partidos políticos, que ainda carecem de regulamentação em nível federal, cabendo a cada estado e município adere ou não a esta política pública para promoção da igualdade racial e financiamento especificamente destinado às candidaturas de mulheres negras e homens negros, através do Fundo Eleitoral.

Esse financiamento foi garantido a partir da decisão do Supremo Tribunal Federal, que decidiu pela instituição da cota para candidaturas negras, após provocação realizada na Consulta nº 0600306-47.2019.6.00.0000 – Classe 11552 – Brasília – Distrito Federal, realizada pela deputada federal, Benedita da Silva, junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), no ano de 2019, tendo por relator, à época, o ministro Luís Roberto Barroso.

Mas as fake news também são temas relevantes para a agenda política do movimento negro brasileiro, notadamente, no que se refere ao papel da regulamentação dos provedores de serviços de internet, a fim de garantir a responsabilização dos propagadores de discursos de ódio e racismo nas redes sociais.

Dessa forma, concluímos provisoriamente que a relação existente entre Direito, relação raciais e democracia no Brasil contemporâneo, merece mais atenção e análises por parte da intelectualidade jurídica do país, para que possamos avançar em relação à garantia dos direitos fundamentais e dos direitos humanos para a população negra brasileira.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!